- E por falar em saudade, onde anda você...
- Sempre gostei disso.
- Hã?
- Sempre gostei de quando você canta essa música do VinÃcius.
- Tem algum tempo que não canto, né? Acho que é essa coisa meio melancólica, de noite, com um pouco de vinho... ainda tem mais vinho?
- Tem, você quer?
- Quero, obrigado. Pode deixar que eu me sirvo. Esses momentos me lembram músicas. Canto em tudo que é lugar, tomando banho, trabalhando, na rua... sempre fui de cantar. É uma coisa meio sozinha, sabe? Do momento mesmo, de quem passa o dia fora de casa e precisa matar o tempo no trânsito. Coisa de quem pensa muito. Essa melancolia ainda me mata.
- Sei.
- Você não tem disso às vezes?
- Às vezes... sei lá. Tem vezes que me vejo como num filme.
- Filme?
- É, como se tudo fosse um filme, com trilha sonora, longas tomadas aéreas. Essa coisa de gente que lê pouco. Somos uma sociedade que lê pouco e vê muito filme, muita tevê. Aà a gente acaba querendo imitar o que vê.
- Pois é.
- Eu tenho uma trilha sonora, aliás, várias, para coisas diferentes. Eu tenho uma pra você.
- Jura?
- Juro.
- E o que tem nela?
- Ah, muitas músicas. Também gosto muito de música.
- Alguma em particular?
- Bowie.
- David Bowie?
- É. É a minha trilha sonora. Com você.
- Você só pode estar brincando.
- Por quê?
- Nunca fui cara de ouvir David Bowie. Não pensando numa garota.
- Mas eu ouço, e sempre me lembro de você. Não sei por quê, acho a sua cara. Tem Roxette também. Adoro Roxette. Ouvia muito quando a gente se conheceu. Acho que ainda tenho o disco. Você sabia que Roxette é da Suécia?
- Não. Mesmo? Muita coisa estranha vem da Suécia.
- Roxette é perfeito.
- O que mais?
- Dido, eu acho. É mais meu lado menininha.
- Sei.
- E é claro, algumas mais clássicas, como Beatles. Penny Lane.
- Nada de música brasileira?
- Tem brasileira sim. Chico, é claro. Não consigo ouvir "A Rita" sem me lembrar de você cantando.
Ele sorri. Ela continua:
- E você, tem alguma música especial que te faz lembrar de mim?
- Não sei, eu me pego cantando tanta coisa, gosto de tanta música...
- Mas sempre tem uma...
- CecÃlia.
- Como?
- CecÃlia, do Chico Buarque. "Tantos artistas entoam baladas..."
- Sei qual é. Mas não me chamo CecÃlia.
- Eu sei, mas a música é linda, é profunda.
- É frustrante. Ele nunca pôde chegar perto da CecÃlia, só sonha com ela, murmura de longe.
- É...
Silêncio.
- O que mais?
- Travis. Flowers on the window, ou alguma coisa assim.
- Sei qual é, é bonitinha.
- É alegre. Me lembram seus cabelos vermelhos, são como flores. Me traz a imagem da moça olhando a janela com uma jardineira florida no parapeito, esperando alguém. E tem tudo a ver com essa casa, ou teria se você tivesse jardineiras floridas nas janelas.
- Bonito. Eu gostaria de ter flores aqui, mas não paro em casa, não tenho tempo de cuidar. Ia secar tudo. E o vinho acabou, você quer que eu pegue?...
- Não, obrigado, estou bem. Não posso demorar muito mesmo. Quer ouvir este outro disco?
- Não, já ouvi. Pode deixar.
- Mesmo?
- Mesmo.
- Tudo bem, então. Acho que já vou. Tome a fita de 98 e o CD que gravei ano passado. Os outros CDs eu levo. Aà você fica com as melhores músicas e eu fico com mais. Pode ser?
- Pode.
- Tem problema não?
- Não.
- Então tá.
Levantaram-se abanando os farelos de tira-gosto do colo. Juntou as coisas, beijinho, beijinho, ainda meio desajeitado.
Ele desceu, cortando pelo gramado da 103 Sul. Em silêncio. Depois de tudo isso ainda tinha de pegar um ônibus.
Esse texto me lembrou Cazuza...Seria essa a situação?
"Quando a gente conversa, contando casos besteiras.
Tanta coisa em comum, deixando escapar segredos.
E eu não sei que hora dizer, me dá um medo (que medo)
Eu preciso dizer que te amo...tanto..."
Obrigado, gente!
Rangel, acho que a situação é quase essa. Pode parecer meio viagem o que vou comentar, mas gostaria de explorar um pouco mais a cara de BrasÃlia em textos assim. É uma cidade com muito espaço aberto. A separação das personagens precisaria mostrar um vácuo, um espaço para caminhar sozinho, quase melancólico.
Mais do que oportunidades perdidas, são espaços vazios que precisam ser cruzados.
Abraços!
Espaços dá "pano prá manga" de conflito, solidão, angústia.
Esse texto tá mais leve....
"Leve" é a palavra! Espero ansioso o tempo para eu ousar mais...
Abraço!
Tão familiar... Muito bom!
Abraços!
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