Um conto criminoso

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Vanessa Anacleto · Rio de Janeiro, RJ
24/9/2008 · 112 · 20
 

Casou por casar. Essas coisas acontecem muito mais do que se possa imaginar. A vida era monótona sozinha. Não era azeda mas, sem sal. Sustentava-se por conta do trabalho como gerente de loja de meias femininas. Naquele tempo, mulheres não viviam sem pares novos de meias. Graças a esta verdade, trabalhava e vivia sem maiores problemas.

Casou por necessidade de fuga . E quando conheceu aquele que viria a ser o seu marido, não se empolgou muito. Ele não era feio nem fracassado, mas alguma coisa não encaixava. Procurou não pensar nisso, já que ele a convidava para um passeio diferente a cada semana e gostava de conversar, qualidade rara nos homens. Passados alguns meses de passeios e conversas, um dia ele chegou em casa com um anel na mão e lágrimas nos olhos, propondo união. Aceitou ao mesmo tempo intrigada com a atitude, surpresa com a paixão e aliviada com o fato de não passar mais as noites sozinha.

A vida de casada era menos monótona, mas o sentimento de vazio não desapareceu. Ele, pelo contrário transbordava felicidade. Cega felicidade, enquanto ela não correspondia e ele sequer notava. Alguns anos de monotonia medida se passaram até o dia em que tudo mudou.

Conheceu Alberto quando voltava do trabalho em uma tarde chuvosa. Ele abriu a porta do carro para ela entrar com um embrulho de compras. E daquele momento em diante o desassossego deu lugar á conhecida monotonia. Encontros furtivos, beijos acalorados, loucura. Ausência de tédio e de vazio. Paixão. Alberto bebia um pouco além da conta, não era rico, bonito ou particularmente interessante mas, que fazer se fora acometida do mal do amor e, melhor de tudo, a recíproca era verdadeira?

Dentro de casa a cena também modificou. O marido, de companheiro adequado passou a estorvo. Com a impaciência que costuma acometer os amantes, ela se pôs a arquitetar uma maneira de eliminar o problema. Fator complicador de seus planos era a certeza que não sairia do casamento com facilidade pelo meio civilizado da separação. O marido era apaixonado e não permitiria, como já havia dito, desde que aceitara seu pedido, que algo os pudesse separar. Como se não bastasse Alberto era pobre e somente com os bens do marido, ela pensava, poderiam viver bem.

Curioso. Nascia um ser perverso após o encontrar sentimento considerado tão nobre. Apesar de decidida, não tinha idéia de como executar o plano . Temia ainda contar a Alberto sua idéia. O objeto de seu amor cultivava uma ética insuportável e jamais concordaria. Por semanas buscou uma solução ao seu dilema até ler, em uma revista na sala de espera do médico, a respeito de uma planta capaz de curar doenças sérias em doses mínimas e matar instantaneamente uma vez errada a medida, sem deixar vestígios. Bastaria criar coragem, obter o extrato da planta e misturar a bebida do marido. Simples e limpo.

Após alguma pesquisa nos mercados da cidade, finalmente encontrou a planta e disse ao balconista que se tratava de um caso sério do coração . O homem extraiu o sumo da planta e recomendou, várias vezes, cuidado com a dose.

Triunfante, foi ao encontro do amante com uma pequena garrafa do whisky preferido do marido já com o sumo da planta. Naquele fim de tarde o amor pareceu mais doce. Apesar de ser impossível contar a Alberto seus planos, não podia disfarçar sua alegria. Logo iria para casa receber seu marido com um copo de veneno e um sorriso de boa esposa. Enquanto se vestia distraída ouviu atrás de si um baque surdo, o corpo de Alberto caía no chão.Ao seu lado, a pequena garrafa preparada pela metade.

A morte do bancário foi notícia dos jornais em pequena nota dias depois. A causa da morte segundo o legista foi parada cardíaca. Alberto Lima não tinha família nem muitos amigos, caso encerrado. Ela havia voltado para casa mais tarde naquela noite e deu uma desculpa. Não houve desconfiança. Continua casada com um homem estreito e feliz.

Sobre a obra

Fator complicador de seus planos era a certeza que não sairia do casamento com facilidade pelo meio civilizado da separação. O marido era apaixonado e não permitiria, como já havia dito, desde que aceitara seu pedido, que algo os pudesse separar.

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Saramar
 

Menina, este conto pode vir a ser um filme!
Que capacidade impressionate de concisão, dentro de uma história riquíssima! Que final desolador!

Gostei imensamente.

beijos

Saramar · Goiânia, GO 21/9/2008 21:19
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Compulsão Diária
 

Peripécias bem contadas. Primoroso. mas, será que ela não teria cometido um célebre lapso: afinal, quantas mulheres juram que a monotonia do casamento é cruel mas o fator complicador pra saída é muito mais delas do que a resistência dos maridos?

Compulsão Diária · São Paulo, SP 22/9/2008 03:48
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Vanessa Anacleto
 

Saramar Um filme? Legal não tinha pensado nisso.

CD Concordo com vc, ela cometeu uma série de lapsos, o primeiro casar por casar. Mas se perguntar a ela , sempre dirá que a culpa é do patético marido.

obrigada!!

Vanessa Anacleto · Rio de Janeiro, RJ 22/9/2008 08:28
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clara arruda
 

Vanessa,não sei por que motico,mas juro que já li esse conto
vc já o tinha colocado no over?maravilhoso minha querida.

clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 22/9/2008 16:45
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Vanessa Anacleto
 

Clara, Nunca coloquei este conto no overmano , ele foi publicado no meu blog em janeiro de 2006.


bjs

Vanessa Anacleto · Rio de Janeiro, RJ 22/9/2008 16:49
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Vanessa Anacleto
 

Opa, tentei colocar o link pro conto original no blog mas não apareceu

Conto criminoso

Vanessa Anacleto · Rio de Janeiro, RJ 22/9/2008 16:50
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Juscelino Mendes
 

Abro a sua votação com um abraço.

Juscelino Mendes · Campinas, SP 23/9/2008 17:38
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Raiblue
 

Adorei seu conto,Vanessa!
A vida como ela é....hehe...e que final ,hein? ...nem todo plano é perfeito...

Parabéns,querida!
Um beijo azul
Blue

Raiblue · Salvador, BA 23/9/2008 18:27
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clara arruda
 

Achei mravilhoso,retorno e deixo meu carinho.

clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 23/9/2008 18:39
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Sônia Brandão
 

É, a perfeição não existe mesmo. A mulher capricha no plano mas dá com os burros n'água.
bjs

Sônia Brandão · Bauru, SP 23/9/2008 23:27
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Fifo Ribeiro
 

Menina, este conto pode vir a ser um filme!

E tenho sorte de tu escrever contos, porque se fosse daquelas romancistas de 400 páginas eu ia penar pra ler 2 e 3 vezes os teus escritos!

bjs!

Fifo Ribeiro · Porto Alegre, RS 24/9/2008 00:52
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Ailuj
 

Adorável conto,bom mesmo
Beijos

Ailuj · Niterói, RJ 24/9/2008 01:51
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Vanessa Anacleto
 

Pessoal , obrigada pela força. Agradeço a visita carinhosa.
Fifo, essa é boa. Quem sabe um dia eu me arrisque a escrever um tijolão!!

Vanessa Anacleto · Rio de Janeiro, RJ 24/9/2008 10:07
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Doroni Hilgenberg
 

Vanessa,

Maravilha!
Que conto bem estruturado
" O castigo em dose dupla".
bjssss

Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 24/9/2008 10:55
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Doroni Hilgenberg
 

Prazer em levar seu conto ao banco
Parabéns!
bjsssss

Doroni Hilgenberg · Manaus, AM 24/9/2008 10:56
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Turbilhão Psicodélico
 

Uai... no começo eu achei que ela ia matar o marido, depois conheceu o amante, achou que ele era pobre... e depois que o cara morre ele aparece (morto) como bancário?
aliás... quem morreu?

Gosto de contos que me deixam intrigados... às vezes por minha leitura meio desatenta, e às vezes pelo fato do conto ser enigmático.

ME EXPLICA POR FAVOR O QUE ACONTECEU!!!

Tá legal pra caramba. Gostei

Turbilhão Psicodélico · Cuiabá, MT 24/9/2008 17:40
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Vanessa Anacleto
 

Por favor Turbilhão, releia!!! Tá tudo explicadinho. Agora entendi o porque do turbilhão, é a cabeça fervilhando que não deixa vc ler com calma :-).

Vanessa Anacleto · Rio de Janeiro, RJ 24/9/2008 17:48
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Marcos Pontes
 

O cime não compensa? Nosso consolo continuar a acreditar nisso. Mais uma muito boa narrativa.

Marcos Pontes · Eunápolis, BA 24/9/2008 20:23
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Paulo Ednilson
 

Como você explorou bem esse nosso cotidiano tema. Adorei o desfecho rodriguiano! Parabéns moça!
Paulo.

Paulo Ednilson · Corumbá, MS 25/9/2008 09:39
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Turbilhão Psicodélico
 

Aaaaaah, agora sim, entendi! Hoje eu li com calma, do jeito que vc falou. :D
Meu alter-ego me chamou de Burro e eu mandei ele tomar no c*...

Muito massa... :D
Talvez seja sim, esse turbilhão na minha cabeça... sei lá. De perto ninguém é normal. E eu gosto muito de ser anormal às vezes...

Ótimo texto, sem dúvidas. Estranho, como o narrador mesmo disse:
"Curioso. Nascia um ser perverso após o encontrar sentimento considerado tão nobre."
As pessoas mudam... e a paixão catalisa a reação.
Gostei pra caramba, Vanessa.
Abração!

Turbilhão Psicodélico · Cuiabá, MT 31/10/2008 12:47
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