Os vizinhos, os amigos, a vergonha. Era um turbilhão de pensamentos. Talvez tivesse a graça de encontrar algum malfazejo pelo caminho, quem sabe assim encontraria paz para meu espÃrito, ele acabaria com o que restava de mim.
Pensei em atirar-me embaixo do único carro que vinha ao longe. Andava pela Avenida e olhava para aquele carro que se aproximava, tinha pouco tempo para decidir, sabia que se fosse para a estrada o carro se desviaria. Não conseguia calcular o momento exato de ficar à sua frente, e o carro passou, era preto e lustroso.
Cheguei à clÃnica e logo chamei a atenção dos que ali estavam. Eu, uma menininha linda, branquinha de cabelos lisos e negros, chorando. Cada pessoa que se aproximava curiosa perguntava o que acontecera, se estava perdida ou procurando alguém, eu chorava ainda mais, mal conseguia balbuciar entre soluços – minha mãe, eu quero minha mãe. Um soldado já havia sido chamado, quando falei:
– Doutora Angélica.
Aproximou-se uma amiga da minha mãe que, me reconhecendo, abraçou-me preocupada e nos dirigimos à sala de descanso dos médicos. Ela chegou com olhar surpreso. Chorando quis atirar-me em seus braços, porém fui impedida por suas mãos que seguraram os meus mantendo distância, como se aquele ato fosse uma fraqueza jamais permitida na famÃlia. Indagou:
– Que está fazendo aqui menina?
Aquela sua atitude deixou todos ali pasmados fazendo gestos de reprovação, o que a fez dissimular o tom e levar-me a outro aposento dando uma indiferente desculpa aos seus pares que já conheciam seu ar indisfarçável de superioridade. Ao ver-se sozinha comigo ameaçou-me:
– Está louca? Que faz no meu trabalho a esta hora?
Eu gaguejando tentava entre soluços repetir o que houvera, mas ela resoluta não me deixava terminar, apertando meu braço dizia para calar-me; para todos os efeitos eu tivera um pesadelo e ponto final. Botou-me para dormir com a cabeça em seu colo. Extenuada dormi.
Em casa, ao amanhecer, meu irmão quis saber o que houve, porque eu estava chegando com minha mãe. Ela fria manteve um tom ameno com ele e repetiu o que já havia determinado:
– Foi um pesadelo e sua irmã irresponsavelmente saiu de madrugada para ir à clÃnica.
Olhando para mim com ar de reprovação, continuou:
– Que desagradável. Esse incidente não mais se repita! Aquela exposição no trabalho, o incômodo às pessoas, as especulações, o que haveriam de falar!
Reprimida, bombardeada pelas suas preleções deixava aos poucos aquele aprendizado bombástico tomar conta de mim e com ele vinham modos de defesa em forma de rejeição, desprezo e desconfiança. Forçosamente a dissimulação daquele dia ia assumindo o lugar da minha natural espontaneidade, que descobri minha mãe tanto rejeitava. Aquela mulher era uma incógnita.
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