O clima pesou no boteco. Os crentes com suas bÃblias e folhetos evangelÃsticos não arredavam pé. Os bebuns já estavam prestes a perder as estribeiras. VersÃculos sagrados e palavrões disputavam cada milÃmetro cúbico de ar. Todos suavam. Num canto, sentado, com uma enorme barriga caindo sobre as coxas, garrafa de pinga à mesa, um senhor de barba grisalha assistia ao furdunço. Tinha um quê de volúpia no rosto. Observava fixamente uma senhora baixinha, na casa dos cinquenta, de cabelo armado com laquê, trajando saia e casaquinho abotoado, com um broche dourado em forma de pombo espetado na lapela. Era quem coordenava o grupo. Esbanjava confiança, gesticulava, contemporizava, sorria. A mais xingada e a que mais sorria. Um sorriso franco, doce, que revelava suas fileiras de dentes amarelados pelo tempo.
- Morena! - disse o barbudo, com uma voz grave, imponente, que parecia não sair de sua boca, como que dublado por alguém.
A senhora baixinha estancou. Parecia que a haviam puxado da tomada. O bate-boca cessou. Os crentes passaram a observá-la com curiosidade, tentando descobrir se haveria alguma mudança de estratégia no embate. Os bebuns também se calaram. Queriam o saber o que de tão horrendo havia sido dito, já que esgotaram seu repertório de xingamentos e nada tirara o sorriso daquela mulher. A senhora aproximou-se lentamente do homem barbudo enquanto a expectativa enchia o lugar de silêncio. O homem barbudo se levantou meio cambaleante e a mulher o abraçou calorosamente.
- Aleluia! Aleluia! - gritavam os crentes.
O homem barbudo tomou o rosto da mulher entre as mãos e afundou-se nele, num beijo fumegante.
- Caralho, mas que porra é essa? - perguntou um dos bêbados.
Um crente alto, mulato e corpulento, de camisa social fechada nos punhos e no pescoço, saiu dentre a multidão e separou os dois com rispidez, jogando o barbudo contra a parede e postando-se diante dele, como quem espera qualquer movimento para desferir o golpe fatal.
- Eliezer, calma! Eu conheço. - disse a senhora.
Os dois saÃram do bar e sentaram-se nuns banquinhos da praça que ficava em frente ao botequim. Eliezer e os outros crentes sentaram num grupo de banquinhos mais afastado e estudavam atentamente cada movimento dos dois.
- Esses putos vão ficar ali? - perguntou o barbudo.
- Eliezer é meu marido. - respondeu a senhora baixinha.
O barbudo caiu na gargalhada.
- Sabia que tu ia casar, morena. Eu sabia.
- Demorei anos até...
- Teve filho?
- Dois. Bianca e Maikon.
- Porra! Meu filho nunca se chamaria Maikon.
- Foi Eliezer que escolheu.
Os bebuns vieram para a porta do botequim. Apontavam, gesticulavam e gritavam:
- Olha o corno lá! - e apontavam para Eliezer. - Cansou de pregar, chifrudo?
Eliezer bufava, o suor lhe encharcava o colarinho da camisa. Levantou seu corpanzil do banquinho onde estava e caminhou em passos épicos na direção da mulher. Antes que dissesse palavra, foi interrompido.
- Esse é o Almir. Lembra? - disse a senhora.
Eliezer hesitou. Olhou desconfiado. Parecia diante de um personagem de ficção. Almir limitou-se a dar mais uma golada na garrafa de pinga.
- Almir... Pensei que já tivessem te matado. - disse Eliezer.
- Deus bem que tentou.
- Talvez faltasse só o instrumento.
- Tá falando contigo, morena.
- Pára de chamar minha mulher de morena. O nome dela é Laura! Laura! Tá me entendendo?
- Calma, Eliezer. - interveio Laura - Ele está bêbado. Não tá vendo?
- Você tem dez minutos. - disse Eliezer, afastando-se.
Almir deu outra golada na garrafa. Laura o observava com olhar maternal.
- Porra, você acabou comigo. - disse Almir.
- Mas tentei de tudo pra salvar tua alma.
- Minha salvação era você.
- Almir!
- Não vem com esse papo de mulher casada.
- Tentei ou não tentei?
- EgoÃsta! Vocês são todos uns egoÃstas.
Silêncio, à exceção de uma brisa que assobiou sobre a praça. Almir observava os efeitos do tempo no rosto de Laura. As bochechas antes rijas agora estavam como que derretendo. Os olhos pareciam tristonhos, com pequenos sulcos se formando nas pálpebras, e a boca de lábios pontudos e ariscos, um convite aviltante ao pecado, havia se transformado numa rosa murcha, sem cor. A vitalidade pulsante da alma de Laura ainda estava lá, patente, perene, mas encoberta pelos pesados véus do tempo.
- Sabe, - disse Laura, distante, pensativa, apertando os olhinho sulcados - segui aquilo que eu acreditava. Mas às vezes me pergunto, mesmo assim, se foi o certo.
- O certo às vezes é seco, amargo.
- Amargo como a morte.
- Não chora, vai.
Eliezer apareceu novamente e pegou Laura pelo braço.
- Vambora, anda. - disse.
- Olha quanto bêbado tem ali pra tu pregar. - intrometeu-se Almir. - Não enche a porra do saco!
Buf! Foi um soco de mão fechada bem no meio do rosto. O punho de Eliezer era uma grande massa marrom, calejada e disforme. Almir caiu de costas no chão e ali ficou, com o rosto banhado em sangue. Os bêbados do outro lado da rua se alvoroçaram. Parecia gol do Flamengo.
- O corno se revoltou! Êeeeee! Uhuuuu! - gritavam.
Os outros crentes abandonaram seus banquinhos e correram à toda. Os homens chegaram num pulo e trataram de cercar Eliezer. As irmãs corriam como podiam, batendo as perninhas dentro dos saiões e arrastando as sandalinhas na terra.
- Se controla, vaso de Deus. Olha o testemunho! - disse um dos homens.
Eliezer tentava se desvencilhar da confusão que se formou à sua volta, mas não conseguia. Havia crentes por todos os lados, uns repetindo palavras de consolo, outros de repreensão, mas todos falando ao mesmo tempo, sem que se pudesse entender palavra. Quanto mais Eliezer se agitava na tentativa de escapar, mais lhe seguravam. Era um besouro caÃdo num formigueiro.
Encoberta pelo tumulto, Laura, de joelhos no chão de terra batida, sustentava o tronco de Almir entre os braços, numa pietá de beleza inefável e maldita.
- Aleluia! Aleluia! - gritavam os crentes.
O homem barbudo tomou o rosto da mulher entre as mãos e afundou-se nele, num beijo fumegante.
- Caralho, mas que porra é essa? - perguntou um dos bêbados.
gostei do texto.votei.
O NOVO POETA.(W.Marques). · Franca, SP 2/8/2008 22:29
Realismo fantástico...
Adorei !
Um abraço !
Parabéns,
Meu voto pelo lindo trabalho
Venha conhecer meu trabalho ok
Edson Rufo
.
Cômico e reflexivo, muito bom, parabéns! Daria uma bela peça de teatro. Bjs. Dê
Denise A Souza · Guaratinguetá, SP 3/8/2008 20:02Gostei da originalidade do texto, muito bem construÃdo, com alternância de ritmo e de linguagem nas diversas passagens. Muito bom!
Marcos Pontes · Eunápolis, BA 3/8/2008 20:29
Excelente. O texto prende o leitor até o final . e o final não decepciona.
abraço
Interessante o seu texto, mostrando com uma certa dose de humor, os acontecimentos que se escondem sob os véus do tempo.
Um abraço.
DivertidÃssimo! Gostei mesmo!
Renato de Mattos Motta · Porto Alegre, RS 3/8/2008 23:06
MUito bom,adorei o senso de humor nos aconcimentos
Publicado!
Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!