André Pessego
“...a
cobra não tem braços,
não
tem pernas,
não
tem mãos e não tem pés,
e como ela sobe e não subimos
nós....”(1).
Aquela
era uma noite de festas um tanto
profano, um tanto religioso: a antepenúltima noite das esmolas do Divino. Os presentes em tudo variado: das
distâncias; das idades; dos cabedais.
Mestre Benicio buscava conversas
entremeadas de filosofia e misticismo –
para agradar, atrair e alegrar a todos.
Pediram-no para falar da última viagem, da Capoeira em Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro – dos feitos dos Mestres.
- “O
Mestre de Capoeira antes não dependia das cidades, pós-libertação é
necessariamente urbano-periférico. Analfabetos ou pouco letrados, assumem o
domínio do povo – dos “capoeira” aos presentes, passando pelos da circunvizinhança.
Quase todos vivem num ambiente limitado: numa visão missionária; há os que
imprimem viagem mundo afora. Conforto restrito, quase de pobreza material
absoluta; de tão absoluta a compensa no seu imaginário pela fama, também
absoluta – adquirida num encanto intelectual não se sabe de que origem; mas
encanta, cativa, prende os praticantes, como os presentes quaisquer que sejam”.
-
“A
Capoeira não tem fim, não teve começo.
Já mestre - é a primeira distinção
conferida a uma pessoa em reconhecimento
pelo fazer,
ensinar e disciplinar - do plantio ao
cultivo; da caça à pesca; da dança às crenças”. Mestre Benício, professor,
cantador e “contador”, negro de família forra, alforriada pelos Castro Alves”,
como gostava de dizer. Dizia para enfatizar os valores de ser livre, conversava
em zigue-zague, assim atraia a atenção de todos, e a todos satisfazia.
Ainda noitinha, frio de maio cortando, vento soprando leve mas constante, fogueira já com labaredas altas ajudando o clarão da lua. O anfitrião despacha mais uma rodada de licores em doses e espécies variadas – jenipapo, caju, mangaba, até de “pau-ferro” – “iche Maria!”.
Aduziu mais algumas considerações a este perfil e contou-nos da simbiose homem-arte-crença.
- "Adquire ele todo o orgulho do
seu estado, da sua condição. Recebe dos
seguidores, dos freqüentadores, uma
marca de superioridade do seu meio; uma marca de elevação, de supremacia, de
predomínio, que nem um outro ser humano
consegue.
Mestre Benício a nada definia a tudo comparava. Como todo bom
“capoeira”, quer trazer todos para o centro da conversa, precisa provocar uma
discussão, dá margem à participação, dar a si a vaidade da contenda:
- “Toda relação de obediência pressupõe uma troca
que traga um ganho ou afaste um medo”. Muitos dos presentes aproveitaram para
cada um dar uma pitada. Platéia variada, uns lidos e corridos, outros nem
tanto, conversa solta...
-
“Mesmo a nossa obediência para com Deus
requer troca. Troca pela vida eterna; a
volta da saúde meio abalada...”
Chamando
mais para o centro da Roda, provocando bem ao feitio
de quem melhor conhece a alma humana – “para com o f e i t i c e i r o”,
falou pausado – “dono de forças situadas entre o divino e o temporal; entre o
ético e o safado - a obediência está na
base de trocas de mesmo calibre – à
volta da mulher traidora, safada, porém gostosona; o namoro com o filho do vizinho; a traição com o primo, paixão de
meninice, com quem não se casou impedida pelos pais.” Certa inquietação. Agora
sim, chegou a hora! - “Quem mais
recorre ao feiticeiro é a mulher, quem mais faz promessas a todos os santos – é
a mulher, quem antes enjoa do cônjuge é a mulher...” – provocou, para completar
– “O Mestre de Capoeira encerra em si o
nível de obediência mais sadio, a mais voluntária das obediências entre pessoas, fora das relações estritamente
familiares. Entre ele e os seus não há um apelo, uma oferta, uma promessa. Na
maioria das vezes ele, o Mestre, é o mais pobre do seu meio”.
Diante do sorriso geral, um cuxixo e outro, prosseguiu impassível, não diria sádico, mas sem um gesto de dó:
- "Na
sua grande maioria, como que errantes, e os são; esguios pelos exercícios
estafantes e o mau passadio; nutrem-se
como agentes da consciência do prestígio; dos
valores da inteligência voraz, iletrada
- a construir uma FAMA que o alimenta - apoiados na reverência
dominadora, de um lado; de outro na crença que só é possível em quem julga ser
responsável por uma banda do Mundo". Depois de tecer explicações do
caminho percorrido, completa - "No passado muitos eram sapateiros,
estivadores e tantos ferreiros, com forjas ordinárias no quintal acanhado da
casa rota; alguns alfaiates - Mestres de Capoeira são vaidosos, gostavam de
ostentar “as mãos finas”; hoje, tantos são pedreiros, serventes, pequenos
comerciantes, carpinteiros; tantos meros biscateiros. Os que têm (tinham) meios
de vida, afora a Capoeira, a tudo abandonam, se um projeto lhe surge - viagens
noutras paragens, no estrangeiro, nos navios, para "levar a tradição".
Depois de longo silêncio, João Pequeno, garimpeiro
não negro, deu uma pitada: "Homens contaminados pela magia poderosa da
música; pela perspectiva a que a luta vencida nos conduz; pela vaidade da
exibição física; pela nobreza com que nos afaga o poder intelectual.”. Pedindo
desculpas devolve a palavra ao Mestre Benício, que vai falando, agora dos seus
receios –”.
- “De quanto ganha, pouco se
sabe. O que se vê - é ser muito
inferior ao valor do trabalho
efetivo realizado. Sempre pronto a
acudir em
cada biboca. De concreto é que tudo faz pela arte, os elogios, pela
admiração do povo; após cada luta, cada
apresentação continua como antes. Eu nunca quis saber como chega em casa, de mãos vazias, a cada dia. Como patrimônio
ou consolo - sempre querido, cercado; trilhando soberbo e doce. Na morada,
afora grande acervo de áudio, vídeo e
escritos variados - nada tem que passe de um mocambo. Muitos viveram assim;
muitos vivem ainda assim”.
- Dona Vitória Gama, mulher negra, professora, garimpeira, cantadeira e rezadeira, sempre pronta a ajudar a Mestre Benício com
as datas e os nomes dos autores de cada feito,
mantinha-se calada e sentada. Em nada coubera uma data, um nome, conversa
genérica. Temperou a guela e interveio:
-
“A
superioridade cria inimigos, este é o mais geral princípio da guerra”.
Consentida a intervenção, com gentilezas e mesuras
pelo Mestre e
interesse pelos presentes, vai explicando o que conhece bem, estudos
variados – Guerra e Revolução.
-
“Não
pensem que as relações na Capoeira são mornas. Não. São estremecidas. Não raro
ao extremo. Nos encontros entre
Mestres, os mimos não duram mais que poucos minutos
e já surgem as alfinetadas - tão maliciosas, sutis, para atingir a fama
do outro; quanto cuidadosas, para zelar da pessoa. A fama é o objeto da contenda. Esta é das diferenças entre
guerra e Revolução: a renúncia à
superioridade faz a Revolução; a luta pela superioridade, causa a
guerra”. (2)
-
“Embora
toda cultura seja conservadora, sendo a capoeira extremamente conservadora,
pelo seu caráter igualitário eu diria
ser a
Capoeira a única ação revolucionária no Brasil. A
que avança, embora lentamente, como soe ser”. E finalizou - “ao “capoeira” para com seu Mestre – nada
lhe é mais de ofício que
engrandecer-lhe; que ouvir de
outros referências elogiosas”. E alfinetando, para manter a tradição - “Eu gosto é de elogios e não de
crítica, por isto procuro fazer bem feito, proclama cada Mestre”,
finalizou.
Foguetes no alto do Morro
Azul, (absurdo) o mais vermelho dos lajedos -
estão chegando, as esmolas, a bandeira, o Divino...
O velho Mestre vai arrematando da última viagem – “felizmente vi, soube
e até conversei, com alguns Mestres doutores, de anel no dedo e tudo, e olhe que todos novos, 30 a 40 e poucos
anos. Não me lembra de
ninguém já nos 50 anos. Tem tantos já escrevendo livro, quem diria?”. E tacou
nas notícias que o empolgavam – “Mestre dando aula na Inglaterra – ensinando
mesmo, especializações diversas, nas Universidades, para formar doutores
também”. E completa – “soube também de muitos “capoeiras”, entrando nas
universidades; como vi, eu próprio,
muitos das universidades entrando na Capoeira...", parou, voz impostada.
Notava-se um fio de esperança naquele negro “de família forra”, como dizia
– “Meu Deus, cinco séculos de
escravidão e descaso!!!
Nota do autor: Validando as últimas afirmações de Mestre Benício,
neste semestre, julho/agosto, o meu Mestre João Coquinho, Mestre do Grupo
Berimbau Brasil, 42 anos de idade, e
quase isto de Capoeira; de muita luta e igual quantum de dificuldades,
botará anel no dedo, bacharelando-se em Ciências Contábeis, aqui em São. Em
data ainda não acertada.
(1) Canção
de domínio público, africana; (2) “Os Jacobinos Negros”, CLR James.