Um colega disse já não mais compreender a utilidade dos sebos de livros usados numa realidade pós-estante virtual. A mim, muito pelo contrário, eles ainda fazem todo o sentido. Na minha defasada opinião de jovem nascido há mais de duas décadas, não há melhor passeio para um sábado de manhã do que pegar um ônibus, descer no centro, tomar um café-da-manhã por ali mesmo, olhar uns livros e, pra finalizar, dar um trato no visual para ir bonito almoçar com a patroa.
Na intenção de pagar visita a algumas livrarias costumo, ali na Av. Borges de Medeiros, dobrar à esquerda na Riachuelo e depois descer a General Câmara, fazendo o percurso que a prefeitura optou por chamar “Caminho dos Livrosâ€. Do alto desta última e Ãngrime rua, avistei o Salão Dia e Noite. E foi assim que a literatura me levou para dar uma aparada no bigode.
No caso de homens, cortar cabelo sempre é difÃcil porque durante boa parte da vida só se tem um barbeiro: aquele que é como herança, passa de pai pra filho. Apenas alguns minutos de espera não me deixam mentir: logo entra um senhor de terno e gravata, recebido com apertos de mão e um alegre “Opa, doutor!â€, trazendo um meninote ostentando uma juba. O pai aponta, enfático: “Corta curto o barato desse guri. Tá muito 'moderno'â€.
De fato, o Dia e Noite é uma barbearia bem à moda antiga: na porta, dois engraxates. Entrando, um corredor extenso, com cadeiras, espelhos e lâmpadas por todos os lados. Tem sempre ligado um rádio ou uma TV. Jornais e revistas sobre assuntos masculinos (leia-se futebol e mulher), lotam a cesta de leitura. Os comentários que rondam os freqüentadores do salão são, em sua maioria, sobre esses tópicos. Eles se mantêm atualizados.
Cortei o cabelo com o Seu Anselmo, um senhor para lá de seus 70 anos de idade, na profissão desde 1953. Iniciou no ofÃcio por inaptidão aos serviços militares. Natural de IjuÃ, sua habilidade com a tesoura o trouxe até a capital, em 1959. Está no salão desde 1960. Falamos muito sobre os velhos tempos, idos de uma época em que vir ao barbeiro era sair de casa para encontrar com os amigos. Mas como a cidade já é outra, o centro não é mais o melhor dos bairros e a profissão vem sendo substituÃda com o advento de anglicismos como hair-stylist (“Com essas exigências da gurizada, eu não trabalho. Não sei desenhar nem com lápis, agora que não vou aprender mesmo... ainda mais com tesoura, com máquina"), a coisa não é mais como era antes. Sente falta?
“Não, não... a gente se acostuma. O tempo vai passandoâ€
Com tanta lucidez e experiência, nada pude fazer senão elogiar o corte: Seu Anselmo escondeu muito bem uma cicatriz que tenho na cabeça. Fez curso? “Não, não, não. Aprendi fazendo. Naquela época quando chamavam a gente pro serviço, mandavam a gente chegar cedo de manhã, afiar as navalhas, sentar e olharâ€
Em épocas em que o prefixo da vez é pós, talvez tenhamos um monte o que aprender com os tempos pré-modernos.
muito bom! meu barbeiro, Seu Otávio, também é sensacional - tenho plano antigo de fazer um documentário com ele - sabe recitar de cor o texto do livro de história que estudou no primário!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 24/11/2008 13:34
E é o mesmo de quando tu era menino, Hermano? Antes de me mudar pra Porto Alegre, meu barbeiro anterior cuidava do meu corte desde muito novo, desde os cinco, seis anos. E como a barbearia era no meio do meu caminho para a escola, nos vÃamos todos os dias. Me fazia todas as vontades de menino birrento, colocava até cadeira na calçada para me cortar o cabelo me distraindo com o movimento, num desses dias quando eu não queria porque não queria de jeito nenhum.
Mudar foi difÃcil pra mim. Não me dou com "cabelereiros". Mas me encontrei com o Seu Anselmo. Só que acho que se eu tentar isso da calçada, capaz dele me dar é uma baita "surra de relho", como dizem por aqui...
não... mudei muito na vida... mas esse tem uns 10 anos... grande conversa semanal! me lembrei o nome do autor do livro de história: Rocha Pombo!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 24/11/2008 20:29era. eu sempre cortava com o AÃrton.
Jorge Adeodato · Porto Alegre, RS 26/11/2008 21:09viva a pré-modernidade e esses ambientes cheios de aura.
VÃtor Schneider · Porto Alegre, RS 26/11/2008 22:10
bá, que jóia, Jorge!
lá em Pelotas, minha terra-natal, os barbeiros nas lojinhas ao redor do Mercado Público são folclóricos.
pois, infelizmente, tenho ido raramente ao barbeiro. e, bueno... confesso: tenho este aparelinho (pós)moderno de cortar barbeiro. ehehehe!
mas sei que perco um momento grandioso para conhecer e meditar sobre o mundo.
baita abraço, dMart.
Me fez lembrar do João Gambá, meu barbeiro lá de Itabira. Preço bom e a garantia de um corte preciso.
Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 27/11/2008 15:58
dMart, Mercado Público, acho que em todo lugar do Brasil, é sempre o melhor lugrar pra tu encontrar gente... pitoresca. Minha próxima nota de guia é uma travessia dia-tarde dentro do daqui de Porto Alegre.
Sérgio, um tio meu que sempre costuma cortar com esses caras. Com ele não tem meio termo: ou é hardcore ou é iniciante. Ele vai no mais barato. Tem até a audácia e a coragem de aparar o bigode com eles... Nunca na vida deve ter pago mais do que cinco pila por um corte. Heh.
É... depois de navegar um pouco pela pós-modernidade (ainda que teoricamente), tenho esses meus lampejos de saudades da pré. Esse tempo bom, que não volta nunca mais mas insiste em se viver em alguns espaços.
Talvez eu volte totalmente pra pré. DaÃ, mandarei meus textos à máquina de escrever e via correio para os editores do Overmundo.
Ah cara, muito bom o texto. Me fez lembrar do barbeiro que eu ia aqui no centro de fortaleza, perto da praça do ferreira. Acho q depois dos 14 anos eu parei de ir lá com o meu pai. O cara parece q tinha morrido. Desde de então, eu mesmo corto meu cabelo ou peço pra minha irmã ou mãe da uma aparada com tesoura. Bem mas descobri outro barbeiro no centro, mas não era como o anterior, o ambiente é meio pesado e os cara não tão nem ai pra vc. De certo modo, vou ter q ir agor ano final do ano de novo. Grande Jorge, abraços pré-modernos, a gente se vê.
Anderson S · Fortaleza, CE 29/11/2008 19:51
Texto agradável. Gostei do "almoçar com a patroa". A barbearia é um ponto de encontro pra lá de interessante,
Um abraço afetuoso, Faraó
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