A primavera havia começado chuvosa na capital gaúcha. A turbulência climática que toma conta do planeta parecia que iria vigorar pra valer aqui, esfriando o tempo, enebulando o céu, prorrogando o inverno por uns bons dias. Era um troço tão perene que, em meus pesadelos, os dias viravam meses e de meses assim seguiam, intermináveis e ininterruptos, por tanto tempo que meus edredons teriam que ser lavados de maneira tão frequente que a lavanderia me levava à bancarrota. E tudo foi quase verdade até essa segunda 24 quando, para minha surpresa, brotou no céu um azul tão bonito, mas tão bonito que era um verdadeiro pecado ficar em casa. Aí mandei às favas os afazeres, pus uma roupa limpinha e bem caída, decretei-me em feriado e tratei de arrumar algo melhor pra fazer.
Quando se tem tempo sobrando e com ele quer tentar a sorte, ir ao Mercado Central da cidade é uma boa pedida. Tanta gente, tantos interesses, bancas tão distintas, um só lugar, que simplesmente não dá pra prever o desenrolar dia. Foi com essa alegria de apostador que, imbuído de coragem e indolência, tomei a condução e fui.
Era pra lá das dez quando o ônibus, vindo da Avenida Mauá, deu ali suas voltinhas e parou a uma rua de distância. Passei o Palácio Municipal, seus leõezinhos na entrada, atravessei a Siqueira Campos, e... dentro. Entrar ali é uma coisa. Impossibilitado de descrever a sensação, eis um vídeo meu disponível no Banco de Cultura que ilustra bem o que haveria a se dizer.
Saquei uma maçã da mochila e fui ver o que o destino me reservara. Subi a escada rolante e vi uns caixotes sendo espalhados, empilhados por ali, na entradinha do segundo andar. Organizando uma das pilhas estava um senhor já calvo, de nariz gozado, camiseta listrada e voz saltitante: era Seu Charell.
Ele quem me explicou o que estava acontecendo: uma feira de vinis que acontece uma vez por mês. Cerca de dez expositores ficam por ali por uma semana, juntos a caixas e caixas de discos que fariam a alegria de qualquer garimpador. “É que o vinil tá voltando, né?”, declarou. Seu Charell não tem loja. Trabalha há vinte anos, apenas aos domingos, num box no Brique da Redenção (outra feira que acontece aos finais de semana no Parque Farroupilha – um típico “passeio de porto-alegrense”, como ele mesmo definiu) e faz seu próprio material de divulgação utilizando-se do velho esquema tesoura-cola-papel-e-xerox. Pra ele, essas atividades que o Mercado Público organiza (e, pelo que sei, acontece o mesmo também com quadrinhos) ajudam bastante. “Não é uma feira do livro, não tem tanta divulgação, mas já acontece há uns quatro anos. Hoje é o primeiro dia e no primeiro dia não tem muito movimento. Primeiro o pessoal tem que descobrir que tá acontecendo”.
Uma rápida olhada por cima dos caixotes dá pra notar a variedade: vai de Caetano Veloso a Beatles; de discos de cunho religioso como o “Na gira de Mamãe Oxum” a Bob Dylan, passando por Gretchen e Cartola.
Já eram mais de onze quando me dirigi ao já centenário bar capitaneado por Paulo Naval para aquecer o estômago com uma cervejinha. Nas paredes, fotos de frequentadores cativos como Lupicínio Rodrigues (“Ele pedia uma caninha e sentava ali perto da porta”, confidencia Paulo), algumas celebridades e políticos locais. Além de garçom, Paulo também faz poemas. Reza a lenda que até já cantou a Dilma Rousseff. Declamou para a ministra, com seu vozeirão de radialista. Conta que ela ficou toda prosa.
Bolinhos de bacalhau me serviram de entrada. Almoçaria noutro lugar. Mas não dá nada, Mercado: à tarde eu volto.
Os guias que tens publicado são ótimos.
Adorei! Agora já fico aguardando o próximo, tri curiosa.
depois da' para publicar tudo em livro: Porto Alegre segundo Jorge Adeodato!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 29/11/2008 02:45
mas daí para realçar o caráter coletivo de onde as notas foram originalmente publicadas, a Cristiane divide algumas das fotos com a Mariana, o Hermano prefaceia, o dMart solta algo na imprensa pelotense... e assim seguimos.
heh.
mas, de sério mesmo, só o obrigado. fico muito contente.
uma outra coisa que eu tinha de ressaltar: dêem uma olhadinha nessa foto com a publicidade artesanal do Seu Charell. notem que no panfleto em que tem uma caixa com um monte de discos, tem esses cangurus, um deles acomodado dentro da bolsa do outro, de onde segura um vinil. Seu Charell, em sua perspicácia, não pensou nem repensou: foi lá e tascou, à caneta, um "Fácil de guardar!"
maravilhas que só se vê no mercado...
Esses mercados grandes no meio das cidades possuem um clima muito particular. Imagino que todos eles se pareçam um pouco. Aqui em BH também tem o famoso Mercado Central. Perto da minha casa tem um menor, mas tão cheio de histórias quanto: O Mercado do Distrital do Cruzeiro.
Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 1/12/2008 20:07
O clima é, em todos, parecido mesmo, Sergio. Em Fortaleza, tem o Mercado São Sebastião que frequento desde muito pequeno. Meu pai só compra frutas e verduras lá, ele e meu tio, religiosamente todos os domingos. Em minha última visita, acompanhei-os.
Demoram umas duas horas. Os preços no fim não são menores ou maiores que os do Supermercado, mas sempre passíveis de pechinchação -- o que torna tudo muito mais divertido. Perguntei ao meu pai qual era a diferença: "Mais barato não sai mesmo não. Eu venho aqui pela folia". Páram para tomar café, comer tapioca, discutir futebol... na ocasião Patrícia Saboya, ex-mulher de Ciro Gomes e candidata à prefeitura, estava lá para distribuir santinhos e apertos de mão. Ouvi alguém gritar: "Patrícia, que mão o quê: me dá aí dez reais pra eu tomar uma coca-cola!"
Diz muito sobre o espírito.
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