Affonso Romano de Sant´Anna envolveu-se com a vanguara dos anos 50 e 60 atuando em vários grupos. Nos fala, aqui, de arte contemporânea e da produção dela no século XX.
Alerta: Lamento muito em informar que ao contrário do que se acreditou no século XX, a arte não acabou, a arte é uma fatalidade do espÃrito humano e arte não é qualquer coisa que qualquer um diga que é arte, nem é crÃtico qualquer um que escreva sobre arte.
E arremata: Em geral é uma crÃtica de endosso, é a crÃtica institucional de uma arte "institucionalista
Em O enigma vazio, com lançamento previsto para outubro, o poeta e ensaÃsta vai além da crÃtica de arte e produz uma "crÃtica da cultura". Para dar forma a seu novo livro, o autor revisitou por cinco anos todos os mais importantes museus do mundo.
Os textos produzidos se relacionam com seus trabalhos anteriores: "Barroco, do quadrado à elipse" (Rocco), "Desconstruir Duchamp" (Ed. Vieira & Lent) e "A cegueira e o saber"(Rocco).
O Jornal Fala Brasil recebeu da editora de Affonso a entrevista que republico a seguir
De que forma a crÃtica da crÃtica pode auxiliar na reflexão dos caminhos que a arte contemporânea tomou no século XX?
AFFONSO: Há, pelo menos, três tipos de "crÃtica". A primeira é a critica informativa - de caráter jornalÃstico, tipo prestação de serviço ao público e uma outra que chamaria de crÃtica celebrativa. Esta é a crÃtica de endosso, feita à s vezes de encomenda. A imprensa tende a misturar as duas, sobretudo depois da emergência dos divulgadores, curadores, galerias. Isto está mais para o "release". Outra coisa é a crÃtica reflexiva, que se preocupa realmente em analisar obras e autores objetiva e independentemente. Segundo os estudiosos, desde os anos 60 estabeleceu-se um certa confusão nesses campos. O que estou fazendo é uma metacrÃtica, a crÃtica da critica: pegar os grandes analistas (O. Paz, Jean Clair, Derridá, Barthes, etc) e ver alguns equÃvocos do discurso crÃtico deles. Se os grandes cometem tais erros, imaginem os diluidores?!
O exercÃcio de desconstrução dos argumentos que você faz como quem pensa criador e criatura passaria por um processo semelhante da desconstrução e questionamento da linguagem artÃstica – ou o que é arte? – feita pelos artistas e crÃticos de nosso tempo?
AFFONSO: Estou indo além da "desconstrução" posta em moda por Derridá: ouso dizer, ironicamente, que estou desconstruindo a desconstrução, que se julgava um método limite, insuperável, por que acreditava na onipotência de sua retórica e de certos sofismas. Esse repensar a arte se insere dentro de um esforço de repensar a cultura globalmente. Isto faz parte de meu projeto de rever os descaminhos do século XX. Sou um filho do século XX que está ousando questionar o pai. Há quase 20 anos, na poesia, escrevi o Epitáfio para o sec.20. No ensaio, explico isto.
Não seria natural que crÃticos – humanos que são – sucumbissem à subjetividade em um terreno bastante pantanoso que é a análise da obra artÃstica? Ou você acha que a isenção, objetividade e reflexão foi claramente afetada pela falta de limites formais sobre o que é ou não arte na arte contemporânea?
AFFONSO: Sim, como diria Terêncio, os crÃticos são humanos e nada do que é humano lhes é estranho. Como, aliás, diria Nietzsche "humano, demasiadamente humano". É bom que se reconheça certos autores como "humanos" e não como "super-homens" nietzscheanos. O que tento deslindar é um problema recente fascinante e grave: alguns crÃticos são romancistas e poetas frustrados. Barthes queria ser ficcionista, Derridá tinha um complexo de James Joyce mal resolvido. Pode parecer irônico, e o é, que seja eu, um poeta a dizer a certos crÃticos que parem de misturar as coisas e comportem-se primeiramente como crÃticos.
Marcel Duchamp transferiu para o espectador a responsabilidade por pensar a arte, transformando todos em artistas e crÃticos de arte. E qual foi (ou deveria ter sido) a responsabilidade dele? Pelo que hoje Duchamp teria de responder?
AFFONSO: Essa afirmativa de Duchamp é uma de suas conhecidas falácias. É uma esperteza enorme. Jogou nos outros a responsabilidade pseudo-artÃstica. Até ensaÃstas que adoram Duchamp, como Octávio Paz e Jean Clair reconhecem que aà ele pisou na bola. O processo artÃstico não depende só do receptor, é mais complexo. Essa simplificação interessa aos carreiristas e aos que querem ter os 15 minutos de fama.
Quais os riscos do action writing? A partir de que ponto a obra sai das mãos do artista e torna-se obra do crÃtico e de suas idéias?
AFFONSO: Chamo de action writing essa paródia do action painting, é uma escrita desvairada, pretensamente literária, um blá-blá-blá pretensioso que se pretende hermético, para iniciados e é um rol de sandices. Se aplicarmos técnicas de análise de discurso e análise retórica, vemos como esses são discursos vazios, tão vazios quanto os "enigmas vazios" a que se referem. Esse tipo de crÃtica é tão má literatura quanto certa "arte conceitual".
Para você, qual a função da crÃtica de arte? E como se faz para escapar dos devaneios artÃsticos-literários deste crÃtico-artista? Quais elementos constituem uma boa crÃtica de arte?
AFFONSO: A função da crÃtica é ampliar a leitura e propiciar o entendimento da obra. O crÃtico deve exercer o que chamo de "terceiro olhar". A função do crÃtico é discernir, clarear, estabelecer categorias e não cair em armadilhas alheias, como ocorreu com Rosemberg, Danto e Geenberg. Quando você fala de "devaneio" é bom alertar que a crÃtica, como o processo de criação, não é a casa da mãe Joana. Essa bobagem que Duchamp disse que todo mundo é artista, todo mundo é crÃtico, não chega a ser engraçado. É apenas uma frase tola. Ele era o rei de frases tolas, nas quais as pessoas viam profundo saber. Num certo momento de sinceridade, aliás, ele disse: "cada palavra que lhes digo é estúpida e falsa". Ele mesmo se chamava de "pseudo", e assim por diante. Por isto é que uma das teses deste meu livro é que se deve analisar o discurso duchampiano, pois suas obras só têm sentido em relação a esse discurso. Espantosamente essa análise nunca foi feita antes.
Fale mais sobre este enigma vazio, esta tentativa de decifrar "algo", dando a este "algo" alucinações crÃticas de obras insignificantes.
AFFONSO: Dizia Hanna Arendt, enquanto judia e filósofa, que se não conseguisse entender a lógica do nazismo, enlouqueceria. O mesmo eu me dizia a respeito da arte de nosso tempo. Isto tem que ter uma lógica, eu me dizia, deve haver um modelo de análise para essa anomia, para esse caos, essa entropia, para todas essas contradições discursivas. Acredito ter tocado no cerne da questão. Diferentemente de enigmas verdadeiros, a arte contemporânea está cheia de enigmas vazios que muitos tentam preencher com uma verborragia igualmente insossa.
Como você vê a arte contemporânea hoje – particularmente a brasileira?
AFFONSO: Esclareço uma vez mais que não sou "contra" a arte contemporânea. Aponto alguns de seus descaminhos. E dentro desse imbróglio há muitos artistas que admiro. Tentam, no entanto, confundir a questão dizendo que sou o "inimigo número 1" da arte contemporânea. Tolice. Ela não precisa de mim para isto. Seus inimigos estão dentro dela. Duchamp é um deles e ele cinicamente reconheceu isto ao dizer no fim da vida: "Este século é um dos mais baixos na história da arte". E o próprio Jean Clair que o admira e fez a primeira retrospectiva dele em 1977, reconhece que foi ele quem abriu a "Caixa de Pandora". Por isto, é que insisto que há que voltar a Duchamp para uma releitura, que não seja como essa que anda por aÃ, de pura louvação, acrÃtica. E essa leitura tem que ser feita na área da filosofia, da retórica, da teoria da literatura como mostro no meu livro.
E, por conseguinte, como vê a crÃtica de arte hoje?
AFFONSO: Em geral é uma crÃtica de endosso, é a crÃtica institucional de uma arte "institucionalista" como a definiu o antropólogo Howard Becker. E é uma crÃtica esquizofrênica, que está no poder, fingindo que é margem. Aliás, a figura da falsa "margem" tem servido bastante a essa esquizofrenia. Por isto, analiso no livro o fenômeno do "double bind", do laço duplo, dos oxÃmoros ideológicos da modernocontemporaneidade.
Em O enigma vazio você também aborda questões como a mercantilização da arte, que muitos consideram um retorno ao mecenato. Por que você discorda desta comparação?
AFFONSO: Sem se estudar isto não se entende o "êxito" e a anomia geral das artes. Ela serve à sociedade da aparência, da falsa cultura. Ela virou um apêndice da bolsa de valores, até se fala de "bolsa de artes". E as ações e valores dos quadros são virtuais, sobem e descem de acordo com a circunstância. Há livros fundamentais analisando isto e eu também entro nessa questão.
Futurólogos sempre arriscaram previsões como o fim da pintura, por exemplo. E hoje ela continua aà e é cada vez mais valorizada.
Arriscando um exercÃcio de futurologia, como você vê os caminhos que a arte pode tomar?
AFFONSO: É sintomático que o século XX, que matou mais gente que qualquer outro, tinha mania de matar tudo, a arte, o romance, a poesia, a história, o "homem". Verdadeira tanatomania. Hitler, Mao Tse Tung e Stalin ficam muito bem num século em que outros tentaram matar a arte e até a própria história. Pois não houve o caso daquele pensador da CIA Francis Fukuyma, que anunciou o "fim da história" e dez anos depois veio pedir desculpa, dizendo que se enganou, que a história continuava? Duchamp fez a mesma coisa, no final da vida entrou para o Instituto Nacional de Letras e Artes dos Estados Unidos. Cinismo ou autocrÃtica?
Finalizando: o que é arte para você?
AFFONSO: Essa pergunta é inevitável nas dezenas de palestras que tenho feito pelo paÃs e no exterior. É uma pergunta mal colocada. Se não aprendemos a colocar as questões não teremos respostas razoáveis. O modo apropriado, depois de cem anos de acertos e muitos erros, é inverter ou tratar questão pelo avesso: o que não é arte?
Muitos produtos que estão aà nos museus e galerias pertencem à psicanálise, outros à sociologia, ao marketing, à antropologia, à literatura, à filosofia. Quando essas disciplinas se debruçarem devidamente sobre a questão, então poderemos voltar à pergunta sobre arte. Por isto, insisto nessa operação multidisciplinar para afastar o entulho.
De resto, os que pregam o "fim da arte" equivalem-se aos ateus, têm que falar de Deus para serem ateus. Lamento muito em informar que ao contrário do que se acreditou no século XX, a arte não acabou, a arte é uma fatalidade do espÃrito humano e arte não é qualquer coisa que qualquer um diga que é arte, nem é crÃtico qualquer um que escreva sobre arte.
Em geral é uma crÃtica de endosso, é a crÃtica institucional de uma arte "institucionalista"
Querido Adroaldo
Imagino que difÃcil e prazerosa deve ser uma entrevista com uma homem inteligente e sensÃvel como Affonso Romano de Sant'anna. Tive o privilégio de conhecê-lo e à sua mulher, Marina Colasanti. Adoro suas crônicas. Agora, uma curiosidade: O que será que ele acha da arte de Andy Warol?
bjk
Que lindo manda o fala pra mim.
Afonso é um grande sonetista e amigo!
parabens
claudinha
Adro,
Como a arte poderia acabar se nos antecedeu? Mesmo quando nos todos formos para o beleléu (no fim do nosso tempo). As coias que ficarem testemunharão a expressão artÃstica de nossa estada e derrocada. Uma explosão multicolorida, uma aurora 'boreal' em outra latitude, sei lá.
Abs
Oi Adroaldo. Esta entrevista foi feita pela equipe da editora do livro, é isso? Abs
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 18/9/2008 17:15Gente, a intimidade de vocês com Aldroaldo e Afonso Santana, me constrange, já que não conheço nem um, nem o outro(pessoalmente). Acho, contudo, um prazer enorme em ler textos tão profundos, inteligentes, em uma época tão árida.Abraço a todos. Lila Su
Lila Su · São Paulo, SP 18/9/2008 20:02
Lila, somos todos o pequeno grão de areia citado pelo Spirito.
Nada aqui deveria te constranger.
Helena,
Sim! Como está dito: O Jornal Fala Brasil recebeu da editora de Affonso a entrevista que republico a seguir
A entrevista foi enviada pela editora do livro novo do Affonso para publicação no Fala Brasil em razão de que ele estava na europa em viagem e não pudra enviar em setembro a coluna que faz pro mensário de que é colaborador.
Não pus as perguntas na identidade do Fala Brasil porque não sei como foi o tratamento que a editora do jornal, Rosane Scherer, que me enviou o texto, definiu, se em nome pessoal ou do jornal, ou de uma terceira identidade, a Rocco, por exemplo.
Aliás, após tua pergunta, pesquisando se a máteria era só nossa, descobri alguns sÃtios que já a têm, em outros formatos e que, não chega a ser um erro, porque há lançamento previsto para a Feira do Livro de Porto Alegre, em outubro, a obra já estaria em vendas, do que que não quis eu tratar no texto.
Claudinha, tens que fazer contato com jfalabrasil@terra.com.br e vê com a Rô. sóprecisa enviar os selos.
Cris, não fiz a entrevista. É da Rocco. Tivemos foi um super-chá, em agosto, de umas duas a três horas agradáveis. É uma figura Ãmpar. E da conversa com o Danúbio e ele sobre arte e crÃtica, então, só de ouvir, sai lasca.
Tem mais um atigo do Affonso sobre o tema aqui chama O vazio, as marmotas e a arte
Adroaldo Bauer · Porto Alegre, RS 18/9/2008 21:33
Adroaldo,
grande texto
Sempre que posso leio as crônicas
de Afonso de Sant´Ana.
Ah! essa nossa Arte é imortal.
bjsssss
Affonso Romano de Sant´Anna é um grande intelectual contemporâneo. Sua lucidez e sua cultura continuam a impressionar cvada vez mais.
Parabéns pela divulgação do pensamento do Affonso.
Oi Adroaldo, sem erro, claro. Só me chamou atenção porque ele critica bastante o que chama de "crÃtica institucionalizada", aà achei curioso ele fazer isso numa entrevista que, de certa forma, é institucionalizada também (feita pela editora). Nada de errado nisso, só curioso mesmo. Abs
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 19/9/2008 11:56
Helena,
Eu não tenho dúvida de que Affonso é polêmico, quer a polêmica e utiliza a instituição para desconstituir a instituição.
Não obteria resultado algum gritando de um caixote em praça pública.
Não nos dias de hoje, com tantos profetas "anunciando o fim do mundo e o inÃcio dos tempos do além*", e mais os pastores de todos os credos.
Não tenho sequer credencial dele, de modo algum, para essa fala.
Eu é que penso assim do que é atribupido a ele no texto.
Servir-se de uma entrevista distribuÃda à imprensa para dar opinião é um recurso cada vez mais usual, mas não foi fundado agora.
Os jornais grandes do nosso paÃs são o que são, os pequenos jornais são jornais, e servem a descontituir muitas vezes os jornais grandes, mas pertencem à grande instituição jornais.
Então: há instituições e instituições.
O rilisi, a entrevista da editora é isso, serve aos objetivos da editora e do autor.
Porque tua pergunta referiu à minha participação é que estou te explicando.
Considerei imporante ter aqui os conceitos de Affonso.
Não tinha o livro, tive acesso ao rilisi, publiquei o rilisi dizendo que se tratava de tal.
Eu não sou um bom entrevistador em Artes.
Se os há, com certeza, procurarão Affonso para o propósito.
Ou não...
Ah! O tÃtulo é meu e tenho total acordo com ele.
Um amigo dizia-me que lhe bastava a manchete para ter a matéria. Ainda considero isso um bom pensamento.
E, por certo, bem declarada a autoria, resta mesmo a opinião,que não é de nenhuma Suzana Flag ou Myrna, mas do próprio Affonso, mas respostas que lhe são atribuÃdas.
Adroaldo, fiquei um tanto ou quanto impressionada com a onipotência do projeto do homem.
Ele quer fazer crÃtica da cultura, fazendo crÃtica da análise de Otávio Paz (dos outros eu nem falo nada), vendo alguns equÃvocos do discurso crÃtico dele. Quais serão os parâmetros? Devo ter entendido errado. Vou voltar à leitura depois com mais paciência.
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