Lembra-se do Michael Douglas n’Um Dia de Fúria. Lembra-se do Michael Douglas entrando na WhammyBurgers, todo suado e de mochila. Michael Douglas é Bill Foster. Bill Foster deseja tomar café-da-manhã, pois está faminto depois de haver espancado o coreano da conveniência que não quis lhe fazer troco sem que antes comprasse uma Coca-Cola. Mas Bill Foster não terá o prazer de untar os beiços com o desejado desjejum. Depois das 11h30 serve-se apenas almoço. E o almoço constitui-se de um cardápio completamente diferente. São 11h33. Bill Foster diz algo como “você já ouviu a expressão ‘o cliente tem sempre razão?’†, sim, já, responde a atendente do estabelecimento. “Well, here I am, the costumer.†Michael Douglas só queria tomar café. Michael Douglas que é Bill Foster faz então o que todos nós gostarÃamos de fazer e saca da bolsa que trazia à tiracolo uma TEC-9, metralhadora semi-automática 9mm. É isso que faz Michael Douglas, que é Bill Foster, e que é foda.
Contudo, Bill Foster ainda tem fome e decide-se por uma das opções elencadas no menu de almoço. O combinado de [hambúrger + fritas + refrigerante] lhe chega. O êxtase é tremendo porque Michael Douglas, que é Bill Foster, fica mais uma vez puto. Com razão, porque o seu sanduÃche não é nem de longe parecido com o hambúrger suculento e generoso que ostenta, como um troféu, a propaganda luminosa do restaurante fast-food. (O hambúrger da foto é o que Bill quer comer, não o misto-quente que lhe entregam.) Bill Foster, todo suado e muito puto, distila invectivas, buscando inocuamente concretizar a promessa que lhe fora feita quando estamparam naquele anúncio um hambúrger recheado e apetitoso e soberano e saboroso. “Senhor... eu sinto muito...â€, é o que diz a atendente, as mãos trêmulas e a calça cagada. (Eu também me cagaria as calças se encarasse o Michael Douglas todo suado e muito puto.) “Well... I’m sorry too!â€, é o que lhe responde Bill Foster, a TEC-9 novamente o seduzindo, o gatilho implorando pra ser espancado. Não se precisa ver o filme para adivinhar o que faz Michael Douglas, que na verdade é Bill Foster, e que na verdade é uma ovelha negra.
A lembrança lhe ocorre no ano de 2007. O ano de 2007 é um interstÃcio importante porque indica o marco temporal do advento do maior de todos os fenômenos sociais. Não é o ano do Porco do calendário chinês lunissolar. Não é o ano do Urubu do calendário futebolÃstico. Não é o ano do Asno do calendário polÃtico nacional. É o ano do Michael Douglas. É o ano do Bill Foster. É o ano da Ovelha. (Da Ovelha Negra.)
Sim, da Ovelha Negra. Porque neste ano de 2007 a Ovelha Negra descobriu que nem todas as Ovelhas do mundo têm lá a lã tão branquinha como ela imaginava. E que seus novelos de matiz ebanizados não eram assim tão destoantes. O ano de 2007 foi o ano em que a Ovelha Negra descobriu não estar só. Pois é.
Percebeu que nem todas as Ovelhas usavam Nike Shox. E que nem todas as Ovelhas usavam calças da Diesel. Que nem todas as ovelhas curtem raves. Ou que curtem vaquejadas. Ou, melhor, descobriu que nem todas as Ovelhas são alvas e não sabem o que de verdade curtem; e flainam, sempiternamente e com igual desenvoltura, das luminescências estroboscópicas das tendas eletrônicas para os currais empoeirados dos parques bovinos. (Sim, a Ovelha Negra admite o ecletismo, mas não a falta de personalidade.) E a Ovelha Negra percebeu que nem todas as Ovelhas compram CD’s piratas do Ferro na Boneca. Ou do Aviões do Forró. E a Ovelha Negra concluiu que nem todas as Ovelhas reproduzem o CD que adquirem no mercado informal (quando poderiam perfeitamente adquiri-lo licitamente e que por isso financiam o tráfico de drogas, o roubo, a prostituição, a evasão de divisas, a lavagem de dinheiro e o aprofundamento das desigualdades sociais), nos sistemas de som automotivo contendo um Sub-Woofer de 12" Pionner de 400Wrms SPL Bubina dupla, dois Super Tweeter RodStar, duas Cornetas Selenium, um Módulo Power One 2400 para o Sub-Woofer, um Módulo RoadStar 2000 para o resto e uma Bateria auxiliar de 180A que ocupa quase que a totalidade da caçamba da off-road 4x4 presenteada pelo seu pai, o Carneiro. E a Ovelha Negra se deu conta de que nem todas as Ovelhas freqüentam as academias de ginástica para tentar justificar que a mudança repentina em seus corpos não decorreu de cirurgia plástica. (Sim, a cirurgia plástica é o tosquiar das carnes.) E confabulou que não, nem todas as Ovelhas escolhem estudar uma ciência que execram, mas que as habilita a prestar um concurso para determinado cargo público onde realizará para o resto da vida um trabalho abominável, mas que lhes renderá em recompensa remuneração polpuda e suficiente para comprar todas aquelas coisas de que não precisam. E que nem todas as Ovelhas idolatram a moda. E que nem todas as ovelhas são fashion. E que nem todas as Ovelhas lêem Caras. Ou Paulo Coelho. Ou Sidney Sheldom. Ou Dan Brown. E se iluminou quando viu que nem todas as Ovelhas querem pastar em lugares-comuns. E se regozijou quando notou que nem todas as Ovelhas falam em trejeitos convencionados, repassando construções lingüÃsticas meta-cognoscÃveis porque assim falou Zarathrusta. E notou que nem todas as Ovelhas fazem jiu-jitsu e saem arranjando briga por aÃ. Ou que nem todas as Ovelhas fazem estiramento, impregnando suas lãs de formol e dotando suas fibras de um aspecto artificial e repugnantemente esticado. Ou que nem todas as Ovelhas tem como ideal de vida profissional a necessidade de dispensar 8 horas diárias de seu tempo ovÃdio numa caixa hermeticamente selada realizando um serviço eminentemente descartável. Descobriu, a Ovelha Negra, que nem todas as Ovelhas são doutrinadas, direcionadas, emparelhadas, assemelhadas, inutilizadas. Assim, descobriu que nem todas as Ovelhas se submetem obedientemente à s convenções sociais que se lhes são impostas: algumas delas questionam o porquê do hambúrger da foto ser mais bonito do que o hambúrger repulsivo jazendo sobre a bandeja.
Não! Pois que lhe tocou o ombro uma equivalente Ovelha, Negra como ela. Não, não estava mais só, a Ovelha Negra. Não, disse a Ovelha Negra recém-chegada, há muitas outras Ovelhas como nós, negros os pêlos e claros os pensamentos. Que haviam formado uma Sociedade, congraçando as Ovelhas Negras de todas as partes. Que sim, minha cara! Há Ovelhas Negras que usam havaianas e demais alpercatas, mas não porque estão na moda, mas porque são confortáveis e fazem bem. Que há Ovelhas que detestam raves, que conjuram o forró: há Ovelhas, pasme tu, que escutam Jazz, Samba, MPB, Heavy Metal e até Música Clássica! Que há Ovelhas que pagam seus impostos e que tem plena consciência do mundo que as rodeia. Que há Ovelhas Negras que lêem. Mas não, minha cara, quando falo em ler não digo Caras ou Veja ou Paulo Coelho ou Dan Brown ou Arnaldo Jabor ou Jô Soares. Há Ovelhas Negras que lêem livros de verdade! (Sim, compreendo a estupefação.) Há ovelhas que lêem Tchekov, que lêem Baudelaire, que lêem Kafka, que lêem Hobsbawm, que lêem Montaigne, que lêem Descartes, que lêem Nietzsche, que lêem Machado, que lêem Rosa, que lêem Euclides, que lêem Sabino, que lêem Braga, que lêem Cascudo, que lêem o Mangabeira, que lêem Isaac Bruno. Pois é, há Ovelhas Negras que compram livros. Há Ovelhas Negras que freqüentam sebos. Há Ovelhas Negras que economizam algumas miseráveis parcelas de seus ordenados e não compram tênis da moda ou jeans do momento ou camiseta do instante; nem saem para os bares in ou habitam as festas do jet-set ou freqüentam as colunas sociais: em seu lugar, utilizam as Ovelhas Negras seu patrimônio para verterem-se-lhes saber, conhecimento, cultura, crescimento. E que sim, há também Ovelhas Negras que sabem escrever! Mas não, minha cara, quando falo em escrever não quero dizer enfileirar uma série de palavras ordinárias, mas sim concatenar um seqüência admirável de vocábulos que traduzem com precisão toda a beleza e complexidade de um pensamento! (Não, espero que não lhe cause apoplexia a afirmação de que há Ovelhas Negras que pensam!) Há Ovelhas Negras, minha cara, que portam TEC-9 em suas mochilas e que não admitem a inflexibilidade do absurdo animal.
É a Confraria das Ovelhas Negras que nos congrega, minha cara. Lá, construÃmos um espaço democrático, onde o prazer e o conhecimento caminham xifópagos. Lá nos libertamos dos grilhões das obtusas convenções ovÃdias e lá somos livres para nos abstrairmos, ainda que por um breve momento, do retrocesso que governa a nossa espécie. Convido-te para juntar-se a nós. Para fazer parte do nosso grupo. Do nosso clube. Da nossa Confraria. Lá, serás Michael Douglas. Lá, serás Bill Foster. Lá, terás sempre razão. Lá, serás foda. O que me dizes?
Pois é meu amigo, há ovelhas negras que acreditam na utilidade de atitudes descoisificantes dos seres humanos.
Vamos juntos nessa......
Abraços
Ovelhas negras? Faz sentido, Mangabeira.
fada · Natividade, TO 13/1/2008 21:57Em meio ao rebanho de pacÃficas ovelhinhas brancas, Fada cara...
Mangabeira · Natal, RN 13/1/2008 22:02Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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