Sempre ouvi dizer que quando fosse à Liberdade, tradicional bairro oriental na zona central de São Paulo, teria a sensação de estar no Japão. É possÃvel imaginar o tamanho da minha decepção, portanto, ao sair da estação de metrô na principal praça do bairro e, ao invés de me transportar para outro paÃs, deparar-me logo com uma baiana de acarajé. Nascida em Salvador, a última coisa que esperava na Liberdade era me sentir em casa.
O formigueiro de gente em torno da feira que ocupa a região aos domingos e o cheiro do dendê onde esperava sentir o do shoyu não chegaram a me causar uma sensação de acolhimento, mas de estranheza. Em poucos minutos, a idealização que tinha de que o famoso bairro teria ruas limpas e organizadas a partir de um padrão equilibrado que caracteriza a arquitetura japonesa também foi por terra.
Sim, as lanternas “suzuranto†decoravam a rua Galvão Bueno e os letreiros em ideogramas ditavam o clima oriental, mas o conglomerado de turistas com sacolas de produtos de beleza e tecidos bordados vendidos na feira insistia em sobrepujar qualquer naturalidade cultural.
Não gostei e, por meses, não voltei, a não ser com amigos turistas que insistiam em conhecer o bairro apesar das minhas (não) recomendações. Após três anos ignorando o que talvez todo mundo visse ali, menos eu, precisei por força da obrigação profissional, não de vontade própria, mergulhar na história do bairro. Como jornalista, entender como se deu a ocupação oriental em São Paulo foi apenas o meu primeiro dever de casa neste ano, quando se comemora o centenário da imigração japonesa no Brasil.
Foi quando assisti ao documentário “Liberdadeâ€, dos jovens cineastas MaurÃcio Osaki e Miriam Ou, sobre a história do bairro, contada por quem vivenciou sua transformação em reduto oriental. O filme foi o primeiro produzido com patrocÃnio do projeto “História dos Bairrosâ€, das secretarias de Cultura e Educação de São Paulo e é exibido desde 2007, quando foi lançado, em Centros de Educação Unificada (CEUs) da capital paulista.
Os 26 minutos do documentário foram suficientes para derrubar mais uma vez a imagem que tinha erroneamente reconstruÃdo do bairro. Na verdade, percebi que a Liba, como é carinhosamente chamada por seus fãs, não é um bairro oriental “fake†e sim retrato de como a cultura brasileira é capaz agregar tradições e “abrasileirá-lasâ€.
Em “Liberdadeâ€, fica claro como a mistura de japoneses, chineses e coreanos resultou em um bairro com o espÃrito receptivo do brasileiro, em uma mistura de culturas que não possui paralelo em nenhuma outra cidade, nem mesmo na Chinatown novaiorquina.
Cinema acolhedor
Em 1908 chegou ao porto de Santos o navio Kasato-Maru, trazendo os primeiros imigrantes japoneses, que vinham para o paÃs para trabalhar na lavoura do café. Os que não se acostumavam à rotina de trabalho quase escravo da roça deixavam o campo e iam ganhar a vida na capital do estado.
Até o inÃcio da Segunda Guerra, a maioria já havia fixado moradia na região da Liberdade. No entanto, durante o conflito, quando Japão e Brasil faziam parte de grupos de aliados opostos, o bairro foi esvaziado pelos japoneses, que eram perseguidos e proibidos de falarem sua lÃngua mãe.
Foi interessante para mim perceber que, assim como o cinema me vendeu o bairro, foi também a sétima arte que reagregou os japoneses na Liberdade após a guerra. Pouco tempo após o fim do conflito, eles começaram a voltar ao bairro para ver filmes de produção japonesa em sua lÃngua original no extinto Cine Niterói, na rua Galvão Bueno.
Fundador do cinema, Sussumu Tanaka é um dos entrevistados de MaurÃcio e Miriam em “Liberdadeâ€. Ele nasceu em Osaka e veio para o Brasil com a famÃlia aos 10 anos, em 1923, para trabalhar na roça. Anos de trabalho depois, Sussumu decidiu comprar sua própria fazenda, mas foi dissuadido por um irmão visionário, que o convenceu a construir um cinema.
Em 1953, o Cine Niterói foi inaugurado com a exibição de “Os Amores de Genjiâ€, de Kozaburo Yoshimura. O sucesso do empreendimento foi tanto que cerca de 20 mil pessoas se sentavam em uma das 1500 poltronas do cinema por semana. Alguns dos atuais comerciantes da Liberdade já admitiram que apenas se instalaram na região para aproveitar a movimentação de gente provocada pelo Cine Niterói.
Outros empresários também encararam a boa onda e criaram outros cinemas, como o Tokyo e o Nippon. Todos deixaram de existir com o tempo, uns viraram igreja e o Niterói foi desapropriado em 68 para a construção da avenida Radial Leste. A reunificação dos japoneses, no entanto, já estava feita e em 69 foi proposta a transformação estética da região em um bairro tipicamente japonês.
A partir de então, foram instaladas as lanternas “suzurantoâ€, placas e letreiros bilÃngües e um portal vermelho - o Torii - na rua Galvão Bueno. Também nos anos 70, outros imigrantes asiáticos se fixaram no bairro, onde hoje é possÃvel ver, por exemplo, templos budistas japonês e chinês a poucos metros de distância.
Da forca à liberdade
Até o século 19 a região onde hoje fica o largo da Liberdade era conhecida como Campo da Forca. O nome era uma referência direta à pena aplicada na época a infratores e escravos fugitivos. Apenas no final do século, a Câmara Municipal alterou o nome do local para o que conhecemos hoje.
Diz a lenda que em 1821 Francisco José de Chagaso, lÃder de uma revolta que pregava a igualdade de tratamento entre soldados brasileiros e portugueses, foi condenado à forca. No momento da execução, porém, a corda teria arrebentado duas vezes. Na primeira, o povo presente no largo teria clamado por sua vida com gritos de “liberdade!â€. Na segunda, os brados teriam sido de “milagre!â€. Na terceira, a corda teria “funcionadoâ€.
Mas o caráter milagreiro resistiu à morte de Chaguinhas, como era conhecido. A devoção do povo foi tanta que dizem que foi por causa dele que o lugar passou a ser chamado de Liberdade. Em sua homenagem também foi construÃda a Capela Santa Cruz das Almas dos Enforcados, na Praça da Liberdade, e, ainda hoje, muitos vistam a Capela dos Aflitos no mesmo bairro, localizada no cemitério onde ele foi enterrado, próximo à rua dos Estudantes.
Aninha,
gostei muito do teu texto – ótimas informações e descrições, escrita limpa e precisa... a leitura flui prazerosa. Acho este tipo de matéria muito importante. Resgata histórias locais, valoriza as peculiaridades regionais e as comunidades culturais do paÃs, ensina e encanta!
Beijos,
Em tempo,
o tÃtulo também está ótimo!
Olá, LetÃcia.
Que bom que gostou do texto, obrigada pelos elogios.
Beijo.
Excelente trabalho. Parabéns!!
Estive só uma vez na LÃba, mas agora que li o seu texto, parece que foram várias.
Aninha, a foto é nota dez. Sou louco pra conhecer o lugar. Já o texto, sem palavras...
bjo.
Recentemente, quando estive pela primeira na Liberdade, a minha reação também foi de decepção ao sair da estação do metrô. Mas dois quarteirões adiante eu almocei em um restaurante em que apenas a garçonete falava (mal) português.
Essa mistura é bem representada por aquela galeria da praça 7 nipo-brasileira que tem lá. Andares e andares de lojas de anime...
Ana, eu adorei o texto pois senti o mesmo quando conheci a Liberdade. A mesma decepção e a mesma falta de vontade de retornar ao bairro. Mas como você já me prometeu, voltarei lá com as suas novas dicas!
Bjs
Pois é,
A propaganda, sustentada na mentira, por mais de século, nos leva a todos até mesmo a querer transmudar um pedaço do Brasil não sei para onde.
Eu ando na avenida paulista, depois de ouvir, em rdios tv, etc. ler nos jornais a investida de órgão publicos contra certos
desleixos em cozinhas de bares e restaurantes. E todos concordam. Ai na Av. Paulista, encontra-se kombis etc. vendendo
comida japonesa em pleno descampadão - todo mundo compra e bate palma. Como se aquilo fosse imune à sujeira.
Quem tinha de ser limpo, bem tratado etc. "bem" não tinha de ser só a liberdade. No Broklin, na Princesa Isabel tem a região dos alemães. Com sujeira. Afinal está no Brasil.
Ainda bem, que as crenças, as lendas os feitos vão sobrevivendo e nas crenças - e só nas crenças, do pós morte o negro resiste. Assim na Liberdade, no que pese a "Queima de Rui Paulista", estão lá a igreja, a crença, as velas e a dor do Negro
Brasileiro. Ninguém disse que a mudança foi exigência do governo, do império japonês.
Infelizmente ninguém notou que no comércio de japones não tem negro empregado. Nem um. Infelizmente ninguém nota.
Ninguém diz que o "coitado" do japones, cada um, já veio com um pedaço de terra assegurado. E tutu do Banco do Brasil.
Este é o Brasil
Não me refiro contra a matéria que adorei. Aliás marca da Bahia de São Salvador,
andre.
OLÃ, PARABENS. MEU VOTO Tà LÃ. CONTO COM VC NO RAPP DO INDIVIDADO. BRIAÇÇO DO ZÉ DO CÓRGO
tatto · Valinhos, SP 28/3/2008 20:43
Aninha,
Dia virá em que irei à Sampa,
e nem que a vaca tussa,
nem que dê cachorro em setenta,
nem que as laternas acendam mais tarde,
eu andarei livre e encantada,
por toda "Liberdade".
A cultura nipônica me fascina, menina,
parabéns, tá lindo de tudo, um tudo.
Beijos, lida, comentada, e votada.
Nossa, Dora, que chique seu comentário poético, adorei!
Aninha Freitas · São Paulo, SP 29/3/2008 00:35Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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