Quando se pensava que a gastronomia daqui se limitaria sempre a maniçoba, tacacá e pato no tucupi, o marasmo foi movimentado por uma releitura das culturas indÃgena, negra e portuguesa
À primeira vista, o lugar é um pouco estranho: um quintal coberto com palha e madeira, circundado por um lago artificial, artesanato de motivos indÃgenas e uma escadaria que dá acesso a uma casa na árvore, de onde é possÃvel avistar o sol colorindo o teto das casas de alaranjado enquanto se põe na periferia de Belém. Estamos no auge do verão, que no Pará acontece em julho, e o calor se mistura ao som altÃssimo, que despeja Umagumma, do Pink Floyd, em nossos ouvidos. Escondido em algum canto da casa, o chef Ofir, caboclo da cidade de Bragança e mago das experimentações culinárias, prepara um banquete para mim e mais três amigos. Uma comida de raÃzes indÃgenas, feita à base de peixe, frutos do mar e mandioca, que se desmembra em uma sopa de caranguejo e lula, peixe ao molho de tucupi e castanha do pará e uma porção de beju, espécie de biscoito Ãndio aqui incrementado com ervas finas e champignon. O calor, a mistura de sabores e algumas cervejas colaboram para uma espécie de transe gastronômico coletivo. Lá dentro, o Pink Floyd continua a despejar suas viagens progressivas e experimentações musicais.
Enquanto como, seu Ofir senta para conversar e tenta explicar a origem de sua cozinha. Um pouco enrolado e dado a digressões, ele afirma que o que faz é uma releitura da comida feita pelos Ãndios da região bragantina, com quem teve contato durante a infância e a juventude. É uma evolução técnica e conceitual da comida que lhe garantiu um certo sucesso nos anos 80, quando, em Paris, ganhou a vida cozinhando pratos tÃpicos da região amazônica para os europeus, como a maniçoba e o pato no tucupi. Alguns anos depois, já no começo da década de 90, voltou para Belém e radicalizou ainda mais a sua proposta. Fez da mandioca o ingrediente-chave de seus pratos, foi atrás das raÃzes da culinária indÃgena e se recusou a voltar a ser dono de restaurante, preferindo receber as pessoas no quintal de sua casa. Até o momento, a opção por radicalizar ainda mais a sua proposta parece ter dado certo, uma vez que Ofir está sempre à s voltas com clientes de toda parte do Estado, que vão até a sua casa experimentar as suas alquimias gastronômicas.
A visita à casa de Ofir era parte de uma aventura em busca da nova cozinha paraense, que se completaria ainda com os pratos do chef Paulo Martins e com um passeio pelo mercado do Ver-O-Peso acompanhado de "seu" Francisco, um ex-contabilista que, após perder o emprego, criou, quase que por acidente, o restaurante Remanso do Peixe.
Boa-praça, jamais havia passado pela cabeça de "seu" Francisco virar dono de restaurante. Até que perdeu o emprego e viu o negócio que havia montado após ser demitido ir à falência. Na garagem de sua casa montou um restaurante caseiro, que logo evoluiu para o Remanso do Peixe, uma das mais concorridas peixarias de Belém. Sem nenhum tipo de formação acadêmica, "seu" Francisco criou pratos como a Moqueca Paraense - com jambu, azeite de dendê, frutos do mar e o filhote, um dos peixes mais gostosos da Amazônia - e uma espécie de adaptação brasileira da Paella, que utiliza peixes e frutos do mar encontrados na costa atlântica do Pará e temperos da culinária regional. Menos digressivo que Ofir, Francisco não tem grandes explicações para os pratos que faz. Sua cozinha é totalmente empÃrica e intuitiva. Como ele mesmo afirma, seus pratos são criados na base da tentativa e do erro.
A essa altura já consigo entender como a nova culinária paraense está conseguindo oferecer alternativas que vão além de seus três pratos-chave: a maniçoba, o tacacá e o pato no tucupi. Uma gastronomia que parecia estagnada, mas que foi tirada do marasmo por uma nova releitura das culturas indÃgena, negra e portuguesa e se mistura progressivamente à nova escola da culinária brasileira e internacional.
Cujo ponto de confluência está na figura do chef Paulo Martins, que conheci gravando um documentário sobre culinária paraense. Na cozinha de seu restaurante, ele concilia as mais diversas vertentes culinárias em uma eterna busca por uma certa nouvelle cuisine amazônica, um território ainda pouco explorado e sem regras definidas, mas que, por isso mesmo, é capaz de permitir grandes ousadias. Há mais de 20 à frente do Lá em Casa, um dos restaurantes mais tradicionais do Pará quando se fala de comida regional, ele vem progressivamente abandonando a função de cozinheiro para se dedicar a palestras e eventos sobre a culinária amazônica. É o caso do Ver-O-Peso da Cozinha Paraense, que reúne em Belém chefs de todo o Brasil em um workshop sobre os ingredientes da gastronomia local. Ao mesmo tempo, Paulo vai buscar nos conceitos da cozinha européia as fórmulas que usa para sofisticar a cozinha paraense. Com isso, promove a categoria de comida refinada ingredientes comumente encontrados nos mercados da região. É daà que nasce o camarão com creme de pupunha, o peixe defumado com castanha do pará, o filhote ao molho de bacuri, raviolli de maniçoba...A lista é imensa. E a julgar pelo gosto do chef pela experimentação parece ser o ponto de partida de uma nova escola gastronômica que, aos poucos, se configura no norte do Brasil. Quem sabe o passaporte que irá garantir a sua aceitação nas outras regiões do paÃs e do mundo.
Eu também fiquei com agua na boca. A culinária paraense me encanta.
Walesson Gomes · Belo Horizonte, MG 12/4/2006 22:18Vladimir, só faltou o endereço para irmos lá desfrutar tb....
Julio Vellame · Salvador, BA 26/5/2009 23:16Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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