"O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente."
(Fragmento do poema "Mãos Dadas" de Carlos Drummond de Andrade)
Segundo o escritor matogrossense Ricardo Guilherme Dicke, é na literatura que reside "o esplendor da linguagem. Um povo sem literatura é um povo sem alma, sem história, sem memória."
Apesar de estar há décadas escrevendo e conquistando prêmios nacionais, Dicke, que ultrapassou a marca dos 70 anos de vida, ainda permanece como novidade, pois sua obra é inacessÃvel ao grande público. Mesmo o leitor mais culto não consegue ter acesso a seus vários romances publicados, pois sempre foram editados com tiragem reduzida e nunca foram alvo de uma distribuição mais planejada. Na opinião de muitos ele é um escritor para poucos, é pouco atrativo para um mercado que privilegia obras fáceis, de rápida degustação, como um fast-food, tipo os indefectÃveis livros de auto-ajuda que se espalham pelas prateleiras das livrarias. O mercado vive das ondas passageiras da moda, dos best-sellers descartáveis, como seringas a aplicar doses de mediocridade no leitor que segue a cartilha do sucesso, mediado pelas listas dos mais vendidos.
Mas quero colocar aqui uma questão que venho matutando: o que é novo em literatura? O que é novidade? O escritor jovem ou as letras de um velho escritor que permanecem inéditas? Ora, a novidade pode estar em ambos os casos, em algum deles ou em nenhum. Certas escritas são extemporâneas como toda obra de arte que tem o poder de atravessar o tempo e passar a ser referência fundamental para a história humana.
Para um momento como esse que vivemos, de extrema saturação da informação, de permanente criação de novos meios de difusão, do fenômeno internet, com os blogs se multiplicando como praga e possibilitando publicar todo tipo de produção, escrita, falada, cantada, fotografada ou filmada, enfim, fica extremamente difÃcil definir uma tendência dominante como se sucedia até recentemente na história das artes. Os movimentos artÃsticos eram manifestamente sucessores de movimentos imediatamente anteriores, se tornavam escola, um substituÃa o outro, rompia com os preceitos que vigoravam. Novo é o quê, se a maioria daquilo que se apresenta como nova literatura não se qualifica para continuar sendo lida depois de seu tempo? Rimbaud, por exemplo, será tão velho que os jovens não precisem conhecer sua obra mÃnima? Claro que, quem trabalha com criação tem mais é que procurar conhecer seus semelhantes, suas referências, seus interlocutores, seus pares, nessa sandice que é escrever.
A maioria dos escritores não permanecem, não resistem ao tempo, isso é óbvio. DifÃcil é acreditar que só por ser jovem alguém seja capaz de ocupar o lugar de determinados escritores que reúnem muito mais condições de vencer o espaço-tempo e continuar sua trajetória na história humana. É muito comum que determinados movimentos de jovens escritores surjam com a impetuosidade tÃpica de quem quer desbancar os escritores "mais velhos" em nome da renovação. Mas isso é complicado
Existe uma idéia que perpassa várias cabeças pensantes em Mato Grosso de que vem acontecendo um boom literário jamais visto por aqui. Muito dessa impressão vem pela quantidade de pessoas que estão escrevendo, pela ampliação das facilidades para se publicar, pelos vários movimentos que vêm se aglutinando em núcleos onde escritores, professores universitários, editores e livreiros debatem questões como circulação, incentivo à leitura, o papel das novas editoras, enfim, pessoas que estão agindo para fomentar a cadeia produtiva e estimular o mercado desse segmento.
Mato Grosso tem uma tradição literária de peso que avançou para além fronteiras com os escritores e poetas: Ricardo Guilherme Dicke, Wlademir Dias Pino, Silva Freire e Manuel de Barros, que também é matogrossense, se destacaram numa linha de ruptura, de experimentação, de um diálogo com as vanguardas literárias. Outros bons escritores e poetas, que dialogaram com a tradição, como os poetas João Antonio Neto e Ronaldo de Castro, ambos de uma geração sonetista com pinceladas de modernismo. Tivemos um poeta-acadêmico (Academia Brasileira de Letras) que foi o Dom Aquino Corrêa; a estranha modernidade de José de Mesquita do começo do século passado e que só agora começa a chamar a atenção de alguns estudiosos.
A literatura de vanguarda do Wladipino, por exemplo - ele nasceu no Rio de Janeiro mas adotou Cuiabá como sua cidade - não passou em branco diante dos cÃrculos literários mais importantes do paÃs, tanto que se envolveu numa rusga com os concretistas de São Paulo, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari & cia, através de manifestos públicos em que se contrapunham frontalmente em embates cientÃfico-estéticos, cada um querendo afirmar seu modus operandi; o instinto barroco-surrealista do genial Ricardo G. Dicke que faturou diversos prêmios nacionais e ainda hoje demonstra um vigor extraordinário com sua obra que vem despertando cada vez maior interesse das pessoas.
As novas gerações se sucederam e hoje vem surgindo uma novÃssima que aparece com um discurso renovador mas que não oferece ainda um painel tão claro de suas produções, ainda não dá para definir uma revolução na escrita, não há novidade no sentido de uma literatura que estremeça o chão desse imenso Matão e se afirme a despeito de tudo que ainda vem se firmando.
O recém formado Coletivo Arcada Dentária reúne parte desses jovens escritores que se lançam com manifesto e tudo mais, adeptos de novas ferramentas, tipo internet, cooperativismo e receitas mercadológicas, que são importantes, mas não refletem uma mudança radical na escrita, no modo de narrar, de compor um poema,ou isso perdeu o sentido? Vi no Zine nº 1, impresso, reflexos do velho surrealismo, flertes com a literatura pós-guerra do século passado, dos beatniks, do existencialismo, enfim, referências diversas que apontam para uma escrita bastante pertinente com esses tempos cibernéticos onde nada permanece, onde tudo passa velozmente. Hoje você compõe um poema e já o publica, ou melhor, posta, e essa produção multifacetada se nutre de elementos tÃpicos da contemporaneidade, incorporando a internet e outras influências da cultura de massa. Mas isso não basta para se afirmar como novidade.
Existe uma produção literária em Mato Grosso que vem se delineando desde a década de oitenta e que só agora está se consolidando: Lucinda Persona, por exemplo, vem sendo reconhecida como uma das mais importantes poetas da cena contemporânea do Brasil; Yvens Scaff vem conquistando espaços há muito tempo com uma produção que mantém uma regularidade em publicações, com poemas, contos e textos voltados para o segmento infanto-juvenil; Gabriel de Matos é outro que vem escrevendo, publicando e conseguindo distribuir seus livros com uma boa constância, até mesmo nas escolas, via programa nacional de incentivo à leitura; Wander Antunes está conquistando importantes mercados internacionais, sendo premiado como um dos melhores roteiristas publicados em solos europeus. Tem outros nomes surgindo, tem mais gente boa por aqui. O poeta Antonio Sodré, do núcleo literário do bando Caximir, que desde a década de 80 vem consolidando sua carreira; nos cÃrculos da UFMT, agora surgem novÃssimos e bons poetas como o Odair de Moraes, Gláuber e outros.
Juliano Moreno, poeta, contista, produtor cultural, editor da revista Fagulha, expôs com muita sinceridade: "O que tem de prevalecer é o desejo de fazer. Se o princÃpio é o mercado para fazer literatura, tem que analisar o perfil do brasileiro que não foi educado para ler como fonte de conhecimento e prazer. O processo é muito dinâmico. Aqueles que colocarem a literatura acima do conceito de fama, sucesso, egocentrismo é que irão permanecer e serão avaliados no futuro. O que mais importa é essa vontade de comunicar, o desejo de escrever é que deve mover. Expor ali a sua visão de mundo, suas inquietações. Acho que a gurizada não deve se preocupar muito com politicagens. Literatura exige um exercÃcio permanente de escrita e um mergulho na gente mesmo pra produzir e tem que ser radical."
O velho poeta Drummond, tão (e)terno. De novo o poema "Mãos Dadas":
"Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros."
Sei lá! O mundo é tão grande! O (n)ovo estará sempre por nascer.
Novidade é o sol nascer todo dia e a gente poder sentir que hoje tudo é diferente de ontem.
Muito Bom!!! Inclusive lembramos o Raimundo Maranhão que talvez tenha sido o pioneiro da arte-mail no mundo e editava em diversos idiomas, no interior do Matão (Guiratinga)... Êta terra boa, hein?!
certeza claudio: raimundo maranhão é figura importantÃssima nessa história toda. balbino já havia chamado a minha atenção para essa figura que editava um jornal de poesia com poemas de autores europeus, americanos, brasileiros, na primeira metade do século passado, no interior de mato grosso (por sinal a cidade que nasci: guiratinga que fica a cerca de 300 km de cuiabá). mas depois falo mais dele: acho que merece um artigo só para falar dele...). grande abraço.
eduardo ferreira · Cuiabá, MT 9/10/2006 18:12Carácoles, Eduardo! Acabei não te mandando meu endereçol! Fá-lo-ei o mais rápido possÃvel! Quero ler a literatura nova desse Mato Grosso velho de guerra!
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 10/10/2006 09:06novo é o que é original. novo é o que é original? mas esse negócio de inventar, de criar, de descobrir, de refazer, é estranho, estranho porque é diferente, único e pessoal, e não (necessariamente) original. é novo para quem fez. velho para quem descobriu e não quis procurar motivos para tal "inércia" - pois existem vários, sempre. estranhamente obrigatório para aqueles que dizem viver para. original para quem gostou, para quem ainda vai descobrir e se encontrar ali ou em decorrência daquilo. só que para mim isto é apenas uma experiência divertida.
fochesatto · Cuiabá, MT 10/10/2006 10:54
a nau portuguesa. origens. essa sim: original. letras várias. variadas. algumas avariadas como náufragos sem rumo no imenso mar das letras.
a lÃngua é matriz. veio de nau. não! d lá pra cá. à deriva. numa bolsa que caminha pero no vaz. carta do anônimo. S/A. sos.
os Ãndios daqui são pelados.
pé na tábua.
pela de medo: flechas mortÃferas.
cuidado: feras.
cuidado: conteúdo sob pressão.
viva as vanguardas: viva a morte das vanguardas
viva eu viva o chico barrigudo.
atrás da literatura só não vai quem já morreu.
me divirto também
fazendo isso e não
aquilo.
Grande Eduardo! Textos viscerais e palavras sinceras! Aqui no próprio Overmundo dá para notar que MT pulsa nas letras! Q lugar bom para semear pessoas e pensamentos! Várias coisas vêm a cabeça, pq esta obra não circula, pq não posso comprar o livro do Dicke q estou enlouquecendo pra ler, como os cuiabanos são produtores compulsivos e se organizam em grupos, quantos solitários malucos também, no rio Cuiabá q deságua no rio Paraguai, na sua veia alucinada de guerra que jorra letras boas na tela de um computador e na arte... na arte... na arte de criar. a criação! este momento imortal que transforma o humano em ser! q bom t conhecer Edu! abs a todos os cuiabanos!
Rodrigo Teixeira · Campo Grande, MS 10/10/2006 23:27
puxa rodrigo, valeu meu bróther! boto fé também no mundo das artes com seu poder de transformação: no mÃnimo transforma nossa trágica condição em beleza além-ornamental: acredito no poder da linguagem como coisa orgânica: coisa necessária: sem a qual viramos peixe fora dágua: o aquário não é o limite!
rodrigo: estamos aguardando os livros do dicke - (re)lançamos Deus de Caim, seu primeiro livro premiado nacionalmente. aqui mesmo no Overmundo podemos fazer contato para envio de livros...tem o meu também: eunóia. hehehe. vai uma nóia a� grande abraço, irmão del sul!
Eduardo, adorei o texto que você escreveu sobre a Ana. Fiquei comovida com sua sensibilidade. Ela é mesmo muito especial!!!Sobre o que é novo ou velho, parece mesmo que vivemos a anulação de barreiras temporais. Tudo neste mundão é um unico tsunami quântico com suas espirais expressivas, rotatórias de todas as vanguardas que nascemorrem no cio. Tenho uns poemas talvez possa divulgar? abraço desta amiga que muito te admira!
marta catunda · Cuiabá, MT 15/10/2006 11:49marta, coloque seus poemas no banco de cultura. se quiser passe para mim: caximir@hotmail.com. é um prazer enorme te ver por aqui. acho que você pode contribuir, e muito, pro overmundo, com toda sua qualidade. beijão. (admiração recÃproca!)
eduardo ferreira · Cuiabá, MT 17/10/2006 19:03bacano o que cê diz sobre 0o Sodrézinho, ele é além, outro nÃvel de pessoa, vive no próprio mundo e passeia pelo nosso, esse mundinho muitas vezes sem graça ou estÃmulo, a propósito, alguns poemas meus foram lançados juntoamente com uns dele(sodré) e do Juliano Moreno. o nome do livro é Trafegandop Com Poesias. O novo não depende da idade mas da idéia!!!
A. Wagner Oliveira · Cuiabá, MT 30/10/2006 19:50
Olá Eduardo. Gostei de seu trabalho. Importante para a classe artÃstica poder contar com pessoas sensÃveis e preocupadas com os Valores de nossa Cultura. um grande abraço e saudações Ayrumânicas!
jbconrado.
Eduardo, me registrei recentemente no Blog e só agora li o seu texto "A nova literatura no Mato grosso". O texto é bem coerente sobre a questão da produção de obras de arte literária, que aliás está cada vez mais difÃcil de ver, pois a indústria cultural tem tomado cada vez mais espaço por meio dos meios de comunicação de massa. Esses por sua vez são embasados "cientificamente" pelos que se denominam "Pós-modernos" presentes dentro das universidades do paÃs. Dessa forma, a "literatura" de auto-ajuda tem feito cada vez mais parte do nosso cotidiano, reforçada agora na Academia Brasileira de Letras pelo "literato" Paulo Coelho. No Mato Grosso temos uma leva desses que rascunham qualquer coisa e já categorizam como "obra de arte". Ainda, como vivemos numa sociedade onde a crÃtica tem cada vez menos espaço sob a justificativa de não "agredir" as manifestações da diversidade temos cada vez menos espaço para manifestar.
Por isso, fico muito feliz em ler o teu texto.
Anderson Flores
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