Já li em alguma reportagem que a Parada Gay de São Paulo do ano passado teve 40% de pessoas que se declaravam heterossexuais. Talvez seja um 'achômetro' tosco, mas não deixa de ser um ponto de partida para se pensar a pluralidade da festa. Deculpe-me pela falta de precisão da fonte, mas resolvi escrever este texto munido apenas das minhas impressões pós-passeio na Paulista. Acredite: é divertido pacas. Para tudo quanto é público.
Aos eremitas abrigados em uma caverna escura que não têm noção de como é uma parada gay, ou jamais ouviram falar no assunto, tentarei usar meu poder de sÃntese para ilustrar a cena. Imagine uma micareta. Cheia de trios. Agora troque os gritos de 'aiê aiê aiê', 'são Salvador! são Salvador!' e demais encontros vocálicos que sonorizam o carnaval da boa terra pelo bate-estaca eletrônico. Predominantemente house. Retire o sistema de castas provocado pelos abadás em troca de uma livre circulação por toda a área da Parada. Adicione uma massa de curiosos e simpatizantes que vão desde vovós acompanhadas por enfermeiras até crianças histéricas com seus tênis de rodinha no calcanhar, capotando pelos cantos. Eu acho estes calçados assassinos. Sério.
Tem mais, claro. O comércio de isopores lotados de cervejas, como é de se prever em eventos de massa como este – foram 2,5 milhões de pessoas –, esteve a pleno vapor. Vendiam desde energéticos e bebidas até toneladas de souvenirs em barracas próximas. Pingente? Bandeirinha? Pulseira com as cores do arco-Ãris? Tem de tudo. Disneylândia perde feio. De graça, só as camisinhas distribuÃdas a quem transitasse pelas ruas.
Em meio a tanta organização, uma falha estratégica me chamou atenção. Uma enorme garrafa de vinho (daqueles de pobre) era vendida por apenas R$ 5 pelos ambulantes. Para quem queria economizar em escala, era a melhor opção para terminar a noite bêbado, deitado inconsciente numa calçada e com a boca lambida pelo cachorro da rua. Só que o vinho manchava os dentes de quem o bebesse, deixando-os avermelhados, e a cor acumulava de forma mais acentuada nas frestas entre os dentes.
Parecia que a cobaia que se aventurasse a provar a birita estava com gengivite. Numa festa em que o clima de azaração entre gays é pulsante, não teve outra: o estoque de vinho foi um encalhe, pois dava péssima aparência. Sem saber destes problemas, perguntei despretensiosamente quanto custava uma garrafa.
- Cinco reais – disse o ambulante, com semblante tenso.
Agradeci e prossegui o trajeto. O cara simplesmente correu atrás de mim e começou um leilão.
- Eu faço por quatro reais! Quatro! Anda! Compra! - implorava.
Depois dessa, um cara veio em seguida e levou a garrafa por R$ 3. Os vendedores devem estar com zilhões de garrafas guardadas em casa até hoje, coitados.
Mas uma das cenas mais interessantes foi com as crianças. Sem querer cair na nostalgia barata de dizer que os velhos tempos eram melhores, chamou atenção a histeria que elas tinham patrocinada pela tecnologia dos tempos de hoje. As drags eram disputadas a tapa para tirar fotos com as máquinas digitais. Quanto mais coloridas e 'cheinhas', melhor. E, sem querer, a criançada parecia semear a discórdia no mundinho drag.
Lembro-me de uma delas, vestida de preto, com maquiagem carregadÃssima e um aplique quilométrico nas melenas, formando duas chucas dignas de Rapunzel. Ela esbanjava largos sorrisos com os incessantes pedidos de fotos; não deixava de atender nenhuma solicitação da garotada – que se amarrava. Eis que surge nas redondezas outra drag, de roupa mais colorida, peitões em forma de cone no vestido rosa, acessórios escalafobéticos por todo corpo e um cabelo loiro-tocha-água-oxigenada. Dezenas de crianças largaram a drag de preto. Uma horda de cybershots ensandecidas corria atrás da senhora de roupas berrantes, que lançou um olhar blasé-vitorioso para cima da drag rejeitada. Pareciam aqueles manos fantasiados de Pato Donald ou Mickey a disputar a atenção dos guris. Estou quase chegando à conclusão de que a Parada Gay é um misto de Disneylância com micareta, só que embalada por Ãcones do mundo GLBT.
Entre os trios que passavam pela Paulista, havia alternativas ao baticum eletrônico. Um dos carros não-eletrônicos mais concorridos era o da festa Trash 80's, que toca os hits-farofas da década perdida. Mas havia espaço também para executar as boas bandas brasileiras da época, como Titãs. O set list era mais eclético que a equivalente carioca Ploc 80's, por exemplo, onde as tosqueiras e a produção prestigiada dos anos 80 não são tão misturadas.
A presença de um carro da CUT e do Sindicato dos Enfermeiros de São Paulo foi, no mÃnimo, pitoresca – não imaginava mesmo achar isso por lá. Mas minha maior surpresa, contudo, foi ver uma ala do PSTU marchando pelas ruas. Além de combater os sangüinários banqueiros internacionais, eles apóiam a causa gay. Na mesma avenida que carregava os rapazes mais burgueses e emperequetados com grifes carÃssimas. Viva a diversidade!
O público muda de acordo com o horário. No começo da tarde, casais hétero, crianças com rodinhas assassinas munidas de cybershots e velhinhas-reaça-que-votavam-no-maluf-e-assistem-gugu-à -tarde enchiam os arredores da Parada. O clima de harmonia impera. Só vi uma briga na festa toda, quando um grupo correu atrás de um sujeito que batera a carteira de um cara. Entre os casais hétero, não era raro ver rapazes usando pingentes ou pulseiras com as cores do arco-Ãris, andando tranqüilamente com suas namoradas.
A quantidade de senhoras que levavam netinhos ou cachorros (tinha muita gente passeando com cães durante a Parada) para ver a passagem dos trios era enorme. A massa de simpatizantes diminuÃa com o escurecer do dia, à medida em que a Parada ia em direção à Praça Roosevelt – ponto final da festa, que começara no Masp.
No clima receptivo da galera que freqüenta o lugar, não é difÃcil fazer amizades ou levar cantadas – para os héteros que não sabem levar na esportiva uma olhadela interessada, é melhor nem se arriscar a fazer uma aventura antropológica por lá. Há quem critique – inclusive entre os gays – as Paradas, acusando-as de terem se desvirtuado do propósito inicial, da busca pela visibilidade e luta por direitos, em troca da pegação descerebrada. Sinceremante, não me sinto apto para levar este debate adiante. Apesar de achar o universo da militância e da diversão perfeitamente conciliáveis. Mas a seção de comentários aqui do Overmundo, logo abaixo do texto, está aà para isso mesmo, para quem quiser prosseguir a discussão. Aliás, quem foi à Parada e viu outro mundo diferente do que percebi, está mais do que convidado a compartilhar suas impressões. Afinal, como os caras fizeram questão de mostrar, o mundo é da diversidade.
Só terei sérias dificuldades em concordar com alguém que tenha gostado do vinho à venda por lá...
Ãcida, mas bacana a sua visão. Por aqui também houve uma parada GLBT, mas foi bem mais simplória. Porém, não menos divertida.
gostei muito do tom do texto! ácido como foi dito acima, mas isso é mais do que bom!
Debb · Rio de Janeiro, RJ 26/6/2006 12:11
Adorei o texto, Saulo! Tá uma delÃcia de ler. Este ano eu não fui na Parada Gay daqui, uma pena.
O pessoal GLBT do Piauà está entre os mais politizados do paÃs, eles conseguiram inclusive a criação de uma Delegacia das Minorias, que tem policiais treinados para receber denúncias de preconceito e discriminação contra gays; a delegada é mulher e os gays se sentem à vontade lá, ao contrário do que acontece em outras delegacias, onde eles normalmente eram tratados com chacota.
beijo pra vc
Valeu pelos comentários, sempre ampliam horizontes. Nem eu tinha percebido que o resultado final pudesse ser considerado ácido. :)
Poxa, Nat, não sabia que Teresina tinha uma parada também. Quem sabe para 2007 a gente não vê um relato seu aqui? Tô curioso pra saber como é.
Adorei seu poder de sÃntese: divertido e crÃtico! Quanto ao vinho, digamos, barato e não de pobre! Abraços em tons de arco-Ãris.
Márcia Cordeiro · Salvador, BA 26/6/2006 19:45A Parada gay de Tokyo eh tao sem graca... Mas, nao era um evento politico? Pareceu mesmo um carnaval fora de epoca!
Roberto Maxwell · Japão , WW 21/8/2006 09:34
Eu tava viajando pela Europa e cheguei em Amsterdam no dia 4 de agosto. Tentei reservar um lugar pra ficar com 2 semanas de antecedência, e tava tudo lotado.
Sem entender bem o que estava acontecendo, fui pra lá assim mesmo, na esperança de arrumar uma vaga em um dos muitos albergues de lá.
E foi só quando cheguei que descobri que, naquele dia, começava a parada gay. Muita música, muitas bandeiras do arco-Ãris e um desfile de barcos em um dos canais da cidade. Foi sem dúvida uma grande festa, que tomou conta da cidade inteira.
Roberto, acho que, no final das contas, há uma mistureba - salutar - de carnaval com manifestação polÃtica. Acaba sendo divertido.
E, Daniel, tinha vinho de R$ 5 em Amsterdam? ohohohohoh
Saulo, estive na Parada Gay de SP este ano - um dia antes de embarcar de volta para Natal - e posso afirmar com o olhar crÃtico de quem viu de perto o que se transformou a Parada.
Realmente é salutar misturar carnaval com posicionamento polÃtico, o problema é ficar só no carnaval - que foi o que vi na avenida Paulista. Decepcionante!!
A turma que estava por lá só queria farra e sexo (seguro, ainda bem!, mas fácil, bem fácil e banal). Os heteros pareciam mais abestalhados que os homos: a 'melhor' cantada que ouvi dos caras era "ô gatinha, vc gosta de homem?".
E tinha gente dizendo: "esse ano foi tttuuuuuuuudddddoooooo!". Pelamordeus, onde é que alguém consegue atenção com uma cantada dessas??, que traduziu bem a verdadeira zona que tomou conta da Parada: depois que ela (a Parad) passou só sobraram lixo e vômito pelas esquinas.
Olha, antes de julgamentos saibam que não sou gay, não sofro do mal chamado preconceito, já participei de outras Paradas Gays aqui no RN, tenho muitos amigos e amigas homossexuais, às vezes vou a bares ditos GLS, já produzi eventos direcionados para o público GLS/GLBT, nunca tive problemas esse público apenas deixei de levar a Parada Gay à sério.
Não restou nada de luta de classes, de conscientização, de minorias que querem igualdade de direitos ... vamos ver qual o futuro dessa 'Parada'.
abraços,
Valeu pela opinião, Yuno. É ótimo ler pontos de vista distintos para enriquecer o olhar.
Este lado frÃvolo que você falou estava nÃtido, concordo. Mas ainda penso que o simples fato de mobilizar uma multidão enorme e - ao menos simbolicamente por um dia - pautar os principais jornais do paÃs dando visibilidade ao debate ainda justifica as paradas.
Elas ainda fazem um barulho do cão - e relembram a necessidade de discutir o assunto para quem não gosta ou finge não ver o que se passa.
Bom, segue a discussão em aberto para todo mundo. Achei muito dez você ter levantado essa lebre com os exempos que viu.
abração
Pois eh, se as pessoas vissem a Paradga Gay de Tokyo e como a situacao dos gays eh desconfortavel aqui no Japao, pensariam setecentas vezes antes de achar que a Parada Gay eh apenas um carnaval fora de epoca. No Brasil, qualquer ato politico eh ridicularizado. Se vc pensa em seriedade, vc eh tratado como anormal. No proprio meio gay, pensar no movimento como um ato politico eh motivo de chacota. "Levantar bandeira", como diziam os militantes de antigamente, virou "cafonice", merecendo, inclusive, comentarios jocosos e desrespeitadores de uma das mais populares cantoras brasileiras, no momento em que ela, pretensamente, saia do armario. Ou seja, ter posicao politica definida acerca do fato que os gays sao cidadaos de segunda categoria no Brasil eh visto como ridiculo. Soubessem quantos gays morrem assassinados por ano no Brasil - e que uma das proximas vitimas pode ser o cara que vc esta "chupando" debaixo da bandeira ou vc mesmo - as pessoas teriam menos motivos para comemorar na Parada Gay. Alias, estivem conscientes do inferno que eh perder seu companheiro e ter que se degladiar com a familia dele para obter direitos, muitos dos cocotes das Paradas de S. Paulo serviriam mais a sociedade.
Roberto Maxwell · Japão , WW 13/9/2006 17:10
oi Saulo, o problema é a perda da credibilidade do movimento.
Uma hora vai cansar a mÃdia e o próprio cidadão, mas tenho certeza que o carnaval continuará.
Então que se assuma de vez que é apenas uma festa.
abraço
O texto está fabuloso. Um ótimo retrato da Parada. Pena não ter ido para a de Aracaju esse ano...só me restou ouvir comentários de terceiros =/
Mas entrando na discussão proposta pelo Yuno, eu concordo com o "cansaço" da mÃdia e do cidadão. Se a Parada segue sempre o mesmo padrão de manifestação, e se torna uma espécie de "ritual" como o próprio carnaval, talvez passe a ser visto apenas como tal e perca todo o rigor ideológico primeiramente proposto. Talvez devessem ser feitas outras grandes ações do movimento GLBT que complementem a Parada e devolva a essa a mesma visibilidade polÃtica a que se propõe.
A sua descrição está fabulosa Saulo! Muito bom mesmo. É claro que cada pessoa tem um olhar diferencia acerca de uma mesma 'coisa', portanto não sei se eu teria visto tudo da forma como você viu. Mas imaginei, e isso me bastou para ficar impressionada com a beleza do 'desfile'.
Aqui em Montes Claros (Norte de Minas) a Parada funciona paralelamente a cursos, palestras e oficinas realcionados ao assunto. Preconceito, DST´s e PolÃtica Social ligada ao movimento GLBT são os principais temas.
Apesar de ter se transformado, em muitos aspectos, em mais um 'carnaval fora de época', acredito que, por aqui, A PG ainda funcione direitinho..
Abraço!
p.s.: ótimos comentários Yuno..
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