A Praça da Sé não dorme

Pedro Rocha
Feira da Sé, o shopchão
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Pedro Rocha · Fortaleza, CE
19/1/2007 · 272 · 6
 

O Centro de Fortaleza à noite é um órgão da cidade em isquemia. Sem irrigação sangüínea, vira pântano na selva de pedra; teto para desabrigados; ponto de venda de corpos travestidos e prostituídos. As ruas, barulhentas em horário comercial, calam-se, mas não dormem, apenas espreitam. Confortável por ali nesses horários, poucos ficam, apenas quem dali já é íntimo. A classe média, como os que contam essa história, é cachorro amedrontado, mesmo que seja como nós, apenas uma tensão fina e latente.

A Catedral da cidade, grande, cinza de pontas góticas, se impõe nesse silêncio. O desavisado que passa por ali mal sabe. Nas primeiras horas do dia, um burburinho estranho se insinuará sob os olhos do templo católico. Em um movimento urbano e diário, mercadorias, produzidas em dezenas de fábricas de fundo de quintal, cortam a cidade e são montadas no chão da Praça da Sé em cima de carros, penduradas nos galhos de algumas árvores, no orelhão, nos antebraços de alguns vendedores. Até mesmo Dom Pedro II faz pose em bronze no meio da praça, como mais um corpo travestido à venda no Centro.

Se você passar um pouco mais tarde, por volta das cinco horas da manhã, verá um emaranhado de gente que de longe se decifra: é feira. A Feira da Sé que todo dia, com exceção do domingo, monta acampamento por volta das duas ou três horas da manhã para desmontá-lo às oito, horário em que o “rapa”, como todos falam por ali, chega expulsando e ameaçando recolher a mercadoria. Depois de ameaçar acabar com a feira, o acordo foi feito com a Prefeitura. O acordo determina: às oito a feira demonta o circo. O preço é baixo demais e poderia prejudicar os lojistas que estão, a essa hora, prestes a abrir seus comércios.

A Feira da Sé – ou o “shopchão”, como alguns anunciam aos gritos - é um dos maiores pontos de comercialização de confecções no Ceará. As roupas e acessórios, em geral, são produzidos pelos próprios ambulantes que as vendem, muitas vezes em suas próprias casas ou em sistema de “facção”, no qual a produção é dividida por costureiras autônomas.

Nessa quinta, Nonato, um dos organizadores da feira, espera movimento grande, umas três mil pessoas vendendo; cerca de 10 a 12 ônibus, vindos principalmente do Rio Grande do Norte (Mossoró), Maranhão e Pará (Belém); mais ou menos mil compradores – fora os avulsos de Fortaleza; tudo isso botando pra rodar uns três milhões de reais. Números que não podem ser checados.

As segundas-feiras são os dias mais movimentados, é quando chegam ônibus com compradores de quase todo o Nordeste ou mesmo, dependendo do dia, de Cabo Verdade. Cerca de quarenta ônibus. As quintas têm o segundo maior movimento. Nessa que estamos, dia 21 de dezembro, a expectativa é ainda maior. Domingo, próximo, dia 24 será o Natal.

Miranda e Gracinha estão ali naquela madrugada, oferecendo as camisas bordadas. O casal fica em um pedaço de chão de pouco mais de 1,5 m². No começo da conversa, Gracinha ri e fala um pouco, mas quem explica de tudo é Miranda mesmo. Gracinha está ocupada em atrair as freguesas. Volta e meia pede ao marido pra trocar um dinheiro. Mas ela fala pouco.

Há mais de dois anos eles estão naquele ramo. Antes de começar a vender na Praça da Sé, já passaram por vários locais de confecção: Monsenhor Tabosa, Setur (Secretaria de Turismo do Estado), Mercado Central, Beco da Poeira e a Feira de Cascavel (62 km de distância de Fortaleza). Todos pontos em que o comércio de confecção é forte. O melhor lugar até agora para eles foi na Praça da Sé. “Aqui temos bom movimento. Vendo à vista. Tem encomenda certa para a barraca”, explica Miranda. O fato de vender à vista é uma enorme garantia. Do último negócio, ainda paga dívidas por causa de um rombo levado por problemas com cheque. Vendendo à vista, eles também podem comprar toda a mercadoria de uma vez e na hora. Nisso, eles conseguem até 30% de desconto. Por mês, vendem até quatro mil peças de blusas que custam entre 10 e 15 reais. Todas as camisas são bordadas à mão. Para ajudar nessa empreitada, eles contam com o serviço de 10 bordadeiras e seis costureiras.

Seu Miranda garante que o bom mesmo é trabalhar à noite. Apesar do dia puxado, às vezes, o casal só termina as peças por volta de 23h, após terminadas as vendas, no máximo às oito da manhã, ele ainda aproveita o dia de trabalho. Mesmo cansado, as vendas vêm trazendo bons frutos. No último mês, ele comprou um carro zero. Ainda mais, esse cansaço não é diário. Eles estão na feira apenas na segunda, na terça e na quinta.

Evangélico, seu Miranda acredita nas mensagens de Deus. “Aqui é uma porta pequena que Deus me avisou. Mas essa porta pequena é dentro de uma grande porta que o Senhor me abriu. Foi uma indicação de Deus”. Eles estão no ramo de confecção há pelo menos 23 anos. Mas a mensagem de Deus é misericordiosa. Miranda tem fé que em breve ele terá uma lojinha própria, uma distribuidora de suas peças na sua residência, onde poderá montar uma pequena fábrica. Mas tudo tem seu tempo. Chegou ali por indicação dos amigos. “No começo foi um pouco difícil vender aqui. Mas depois tivemos o nosso local marcado certo melhorou muito”. Enquanto aguarda a vontade e o chamado d’O Senhor, Miranda propaga mensagens de Deus. Na hora de fazer as notinhas para os clientes, ele utiliza papéis com textos e mensagens bíblicas. Naquele dia, estava escrito “você é importante para mim”.

O casal fica em um pedaço de chão de pouco mais de 1,5 m². No começo da conversa, Gracinha ri e fala um pouco, mas quem explica de tudo é Miranda mesmo. Gracinha está ocupada em atrair as freguesas. Volta e meia pede ao marido pra trocar um dinheiro. Mas ela fala pouco.

O ramo é competitivo. Os pedaços de madeira espalhados antes da feira começar servem para marcar os lugares de alguns vendedores. O ponto é conquistado pelo tempo que você o ocupa e existe um respeito aos lugares de cada um. Se algum novato chegar e quiser ocupar o lugar de outro, não demorará muito para ser expulso. Muitos ficam ao redor da praça. Sem lugar pra expor a mercadoria, outros a colocam nos braços e saem rodando a praça vendendo-as, numa imagem literal do vendedor ambulante.

Dona Ana Luiza, de 51 anos, é uma das que ficam sobre o asfalto. “Dia de quinta feira eu não estava vindo, porque eu não tinha onde botar minha mercadoria. Dia de quinta-feira eu ficava em casa muitas vezes até chorando porque eu tinha minhas contas pra pagar e não vinha trabalhar porque não tinha onde botar minha mercadoria. Do jeito que tá ainda, se você chegar com uma sacolinha o povo não deixa você botar não. Não deixa de jeito nenhum. Então eu não vinha, ficava em casa, mas aí pelo fato de eu ter conta pra pagar, fiquei vindo. Coloco a sacola no chão, as coisas no meu braço e fico vendendo”, conta. Sua mercadoria é pouca e, pela posição, seus rendimentos também não devem chegar perto dos de Miranda e Gracinha.

Outra faceta dessa competição está na ocupação de Regina. Deixou seu filho com catapora em casa naquela noite, e veio à praça, perto dos ônibus, tentar convencer os sacoleiros a acompanhá-la às fábricas de tecidos e de calçados em Fortaleza. A cada pessoa levada à fábrica, Regina ganha dez por cento em cima da venda. Trabalha todas as madrugadas. O tempo de Natal é o melhor para ela, pois os feirantes da Praça da Sé vendem com mais ou menos o mesmo preço das fábricas. Enquanto fala, consegue uma das feirantes de Natal que descia do ônibus, mas o dia foi fraco pra ela.

Ana Lúcia percorre os corredores estreitos. Naquela noite, comprou 17 peças de Gracinha e Miranda. Olhou a lista e ainda tem muito o que comprar. Cabelo amarrado para trás, preso numa piranha formando uma espécie de coque improvisado. Toda vestida de jeans, com um casaco por cima da camisa, uma polchete na cintura, uma calculadora pendurada do pescoço e uma grande sacola, também jeans, pendurada no braço. É a terceira vez que Lúcia vem este mês à Fortaleza. Veio de João Pessoa, no ônibus próprio que ela freta para outras sacoleiras de sua cidade e cujo motorista é o próprio marido. O dia certo das compras por lá é na quinta-feira.

Tem 26 anos, viaja desde os 13. Começou acompanhando a mãe. Hoje, leva confecções para a mãe e irmã. Ambas revendem em uma loja no bairro de Mangabeira, um dos maiores centros comerciais de João Pessoa. Além da Feira de Sé, Lúcia ainda passará o dia rodando o Beco da Poeira, grande centro com mais de 2.030 boxes, conhecido por sua variedade e preços baixos. “Aqui na Sé o preço é mais em conta, mas a variedade do Beco da Poeira é bem melhor”. O olhar é atento na lista. Naquela noite, ela só poderá levar mil reais de mercadoria. Vai ser pouco, mas já é a terceira vez na cidade no mês de dezembro. Além de Fortaleza, ela também passeia pelas feiras de Caruaru, Santa Cruz e Toritama, todas em Pernambuco.

Na volta, existe remota possibilidade de a polícia rodoviária parar o ônibus. As mercadorias não possuem nota. Tudo clandestino. “Mas eles só se interessam se for mercadoria de marca. Essas daqui não têm marcas. Aí geralmente pedem um suborno. A gente se junta e paga a eles”, diz Lúcia. As mercadorias então seguirão para João Pessoa, onde muitas vão bater nas praias chiques da cidade por, no mínimo, o dobro do preço. Os turistas adoram.

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Pedro Rocha
 

O texto foi escrito a seis mãos por Pedro Rocha, Tiago Coutinho e Bruno Xavier com contribuição na apuração e fotos de Ramon Cavalcante.

Pedro Rocha · Fortaleza, CE 18/1/2007 13:34
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Fábio Fernandes
 

Curiosíssimo, Pedro! mesmo sabendo que você é de Fortaleza, na hora em que li o título pensei que o texto era sobre a Praça da Sé de São Paulo. O que me leva à pergunta (e a proposta) quantas Praça da Sé existem nas cidades do Brasil? E será que elas também não dormem à noite? Eu sei que a da Sé de SP não dorme também...

Fábio Fernandes · São Paulo, SP 21/1/2007 10:43
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Carolina Morena Vilar
 

Lindo, o tipo de texto que você lê e se sente no ambiente. Adoro!

Estive por sua cidade e vi muito disso pelo centro... E não sabia mesmo que essas coisas quem vendem aqui por João Pessoa nesse tipo de comercio vem daí. Olha só!

Carolina Morena Vilar · João Pessoa, PB 21/1/2007 19:05
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Carolina Morena Vilar
 

Ah, e concordando com o Fábio, eu também achei que fosse sobre a praça da Sé de SP, hehe.

Carolina Morena Vilar · João Pessoa, PB 21/1/2007 19:06
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Ali Assumpção
 

muito bom! gosto desse documentarismo livre..

Ali Assumpção · Blumenau, SC 22/1/2007 16:28
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Débora Medeiros
 

Ótima reportagem! Taí um lugar interessante pra visitar e retratar. É verdade que eles também fornecem mercadoria pros vendedores do Beco da Poeira? Já me disseram algo sobre isso, mas acho difícil, levando em conta os preços, que são muito parecidos...

Débora Medeiros · Fortaleza, CE 21/2/2007 11:32
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Praça da Sé lotada ao amanhecer zoom
Praça da Sé lotada ao amanhecer
Tudo vira `vitrine` zoom
Tudo vira `vitrine`
...como o capô do carro... zoom
...como o capô do carro...
... ou o ônibus. zoom
... ou o ônibus.
Ana Luiza, ambulante. Ao fundo, a Catedral. zoom
Ana Luiza, ambulante. Ao fundo, a Catedral.
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Os locais são marcados com pedaços de madeiras enrolados em lonas amarelas

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