Ecletismo tanto de atrações, quanto de opiniões e de público. Este é um retrato que pode se fazer do Abril Pro Rock em 2006, quando sua última noite pôde sintetizar o que realmente aconteceu em sua 14ª edição. Nem tão decepcionante quanto a primeira noite, nem tão eufórica quanto a segunda.
Os bons e maus momentos proporcionados em mais uma edição do Abril Pro Rock já eram, sim, esperados. Mas o que mais se espera de um festival como o Abril Pro rock hoje em dia, uma vez que já vimos suas fórmulas serem usadas e reutilizadas à vontade? O público vai para o pavilhão do Centro de Convenções e já sabe que vai enfrentar uma maratona que começa quase no inÃcio da noite e que se estende até a madrugada. Poucos agüentam e, mesmo sendo uma atração bastante aguardada, todos ponderam em resistir ao cansaço fÃsico e auditivo, uma vez que se passa bastante tempo em pé, dançando, pogando e pulando num show que é em uma véspera de segunda-feira. Por isso, é totalmente compreensÃvel ver que as bandas que se deram bem foram aquelas do meio da programação, se beneficiando pela maior quantidade de pessoas e pelas tentativas de acertos do som.
Quem saiu perdendo nesse sentido foi Catatau e o Cidadão Instigado (foto). Foram a segunda atração da noite. O público ainda pequeno e em sua maioria pertencente à queles que tinham madrugado para assistir ao emo-rock do Iupi. Isso seria fácil de contornar, uma vez que o público que veio assistir ao show dele sabia bem o horário que Catatau iria tocar. O que ele não contava era com péssimas condições sonoras. A acústica do Centro de Convenções sempre foi inimiga dos shows que passaram por lá. O público sentiu isso quando não conseguia perceber em detalhes todos os minimalismos de guitarra, solos, teclados e efeitos que o Cidadão Instigado colocava. Em um momento, ouvia-se mais o ruÃdo de interferência dos equipamentos do que a guitarra de Catatau. Problema que foi parcialmente resolvido depois do chute que ele deu em seu próprio case de pedais. Mas o show não foi ruim assim. Foram só pelo aspecto técnico. Porque pelo lado musical, até quem não conhecia a banda adorou o som. Chamavam "Os urubus só pensam em te comer" de blues-brega, "O pobre dos dentes de ouro" era um brega-rock, "O Pinto de Peitos" era uma música muito doida. Todas definições aleatórias de um público que dançava conforme a música e não esbanjava palmas para reconhecer o talento deste cearense, cuja prova maior de seu bom show foi a boa venda de discos nos estandes espalhados pelo pavilhão.
A noite do domingo reservou ainda mais exemplos como este. Da dicotomia eclética entre o "conhecido" e o "desconhecido". A banda Carfax, por exemplo, já havia conquistado um bom público na cidade e cujo fã-clube fazia questão de exibir suas camisas para mostrar que veio torcer por eles. E, no show, fizeram questão de retribuir, mostrando esse "gosto antigo da novidade" que batiza seu disco com um pouco mais de peso nas músicas beirando o HC e o new-metal. Logo em seguida, veio uma das atrações que foi uma das mais intrigantes do festival: a francesa Camille, cujas únicas coisas que 90% da platéia sabiam era que seu trabalho era original e que ela já foi vocalista do Nouvelle Vague. Mas sem querer adivinhar o que se passa na cabeça das pessoas, deveria ser isso mesmo. Sua música é bastante diversa, seguindo influências do jazz contemporâneo, pós-rock e música étnica oriental, fazendo com que leigos como eu só consigam lembrar de Björk, Mike Patton, John Zorn e Barbatuques. Tanto teatral quanto musical, suas performances agitaram o público mais do que a música em si. Estaria eu sendo maldoso? Nem tanto. Sua música não é "pop", não há refrões e quase ninguém estava ali acompanhando o que ela cantava. Mas isso nunca foi empecilho para que alguém deixasse de curtir um bom show. Pelo contrário, ela conseguia, apesar disso tudo, chamar a atenção dessa platéia e prendê-los até o final com a ajuda de seus dois companheiros no contrabaixo, acordeon e percussão corporal e samples de sua própria voz, que é incrÃvel. De gritos histéricos a palavras sussurradas, Camille soube como fazer o público gostar de sua música "desconhecida".
E se você acha que estou abusando do emprego dos termos "conhecido" e "desconhecido", pode aguardar porque eles ainda vão continuar aqui neste texto até o final para exemplificar o que pretendo dizer das demais atrações. O Parafusa, que é bastante conhecida do público local também fez um ótimo show. Impecável que ressalta o talento dos quatro rapazes. Não há muito o que falar. Quem já os viu ao vivo sabe disso.
Mas como a regra do domingo foi mesclar o conhecido com o novo, Lafayette & Os Tremendões veio para misturar um pouco as coisas. Antes do show, muita gente ainda não sabia ou se perguntava quem danado era o Lafayette no nome da banda. Famosos conhecidos de bandas ainda desconhecidas do grande público, que militam no circuito underground nacional, além do próprio tecladista Lafayette, coadjuvante e percebido apenas nas entrelinhas das fichas técnicas de discos. No entanto, quando começa o show, no mesmo instante todos reconhecem o repertório e começam a cantar juntos as músicas do Rei Roberto Carlos. O sucesso do revival de Roberto Carlos revela o quanto o Rei é querido pelas gerações e quanto gostar de suas músicas é um fenômeno atemporal. No primeiro solo de teclado e órgão do mestre Lafayette praticamente me arrepio ao ver aquele senhor, um dos Ãcones que definiu o som da Jovem Guarda, estar inteiro hoje em dia e em uma posição de destaque no palco, sendo reverenciado pelos jovens músicos da banda e pelo grande público. Estranho imaginar que este mesmo Lafayette estava anos atrás tocando em happy-hour de restaurantes e shopping-centers, ignorado por todos, tendo sido resgatado pelo pessoal do Autoramas, Nervoso, Érika Martins e Canastra para tocar aqueles sucessos que ajudou a fazer. Não era um especial de TV de Roberto Carlos, mas não faltaram participações especiais: China, do Del Rey, banda que preparou o público recifense a ver o show dos Tremendões em Recife; Rodrigo Amarante, do Los Hermanos/Orquestra Imperial, que muito emocionado ao ouvir o refrão de "O Portão", correu para abraçar e rever seus amigos no palco. ImpossÃvel não se deixar levar pela emoção e pelo som contagiante do rock jovem-guardista anos 2000. Um dos melhores momentos foi quando Gabriel, do Autoramas, solta "vamos tocar agora a música que o Roberto Carlos não gosta mais de tocar... mas que o Lafayette gosta!". Claro que ele falava de "Quero que vá tudo para o inferno", música banida do repertório atual do religioso Roberto Carlos. E este show foi o ponto alto do Abril Pro Rock em termos musicais. O que não deixa de ser inusitado para um festival ter como destaque em uma das noites uma banda de covers. Tal como aconteceu com o Rec Beat em 2005, quando quem não conhecia o Del Rey passou a conhecer e ajudar a consolidar sua fama e seu poder de atração das massas.
Mas ainda assim, em questão de público, é bem claro e evidente que as pessoas que estavam ali queriam ver uma grande atração, a maior da noite, com quem pudessem se esbaldar e cantar juntos. Não, não foi a Orquestra Imperial. Apesar do número de integrantes, fama e de seu repertório convidativo, a platéia essencialmente geração MTV queria ver mais do mesmo. Ver aquilo que já consomem diariamente pela TV. E a banda que mais se aproximou desses anseios foi o Cachorro Grande. Numa noite em que o conhecido e o desconhecido disputaram a atenção do público, a geração MTV aplaudiu entusiasmada mais um show do Cachorro Grande e ignorou sentando no chão o Maquinado, de Lúcio Maia. Um projeto que, diga-se de passagem, é bem interessante em alguns momentos, mas que pela própria falta de apresentações ao vivo, poderia parecer mais uma grande jam-session em palco. Momentos "viajados", guitarras, laptop e incursões dub psicodélicas e algo que chega no pós-rock também, por que não?! Definitivamente um show para se assistir prestando atenção de verdade, como num teatro ou numa sala e não em um palco de mais de dois metros de altura, onde o som e o público se dispersam e não dialogam.
E a maratona continua, restando ao Volver e Frank Jorge se unirem para derrotar o cansaço do público. É de uma alegria imensa ver finalmente no Recife o grande Frank Jorge, cuja obra influenciou tantas bandas que aderiram a uma sonoridade sessentista e "gaúcha". E ainda mais se tratando desta parceria com a Volver, banda que conhece quase decorada o repertório deste cara. Foi outro momento Ãmpar do festival.
Chegando finalmente no final, encontramos um cenário bem de fim de festa. O que mais, não é?! Barracas sendo desmontadas, pessoas com cara de sono e ainda uma boa parte de resistentes que queriam ficar até o fim para dançar ao som da Orquestra Imperial. Pois é, o que o energético misturado com Campari não conseguir, ninguém consegue. Por incrÃvel que pareça, por mais mercadológico e oportunista (assim como Fred 04 os definiu na Revista Coquetel Molotov) que seja uma proposta como a da Orquestra Imperial, eu gostei muito do show. Eu já estava morto de cansado, não dancei nada, no máximo me mexia para não dormir por conta do cansaço, lógico, mas foi ótimo porque deu pra prestar mais atenção na música que estavam executando. Li algumas crÃticas e estranhamente me surpreende o fato de que muitos não curtiram o repertório ou acharam algumas músicas desnecessárias. Mas é aquilo mesmo. É diversão, é farra. É quase um carnaval fora de época. Se esse show tivesse acontecido num lugar tipo o Clube LÃbano e a cerveja fosse Bohemia, teria sido o melhor baile de carnaval que já fui. Músicas divertidas, naipe de metais de primeira linha, sets de percussão, guitarras, belas vocalistas, cantores afinados e um repertório divertido onde rolou de "Maracatu Atômico" de Jorge Mautner a "Owner of a lonely heart" do Yes. E foi muito bacana. Sem querer comparar muito, mas acredito que a Orquestra Imperial deva ser o sonho de consumo de DJ Dolores para fazer com o Bloco Mega Hits tudo isso que eles já fazem.
Bem, foi isso. Em 2006, o público, em sua maioria, pouco esteve em sintonia com as atrações do Abril Pro Rock. E por isso é que podemos enxergar resenhas e opiniões tão diferentes de um mesmo evento e ver crÃticas que correspondem à opinião individual de cada um, até porque jornalistas que cobrem um evento estão ali também como sendo parte deste público. Mas desde o anúncio da programação, todo mundo antevia o que aconteceria e todos eram unânimes em dizer: "esse ano o evento vai dar menos gente". E foi o que aconteceu. Eventos como o Abril Pro Rock hoje em dia, apesar de sua grande importância, não representam mais o mesmo que há 14 anos, quando não havia espaço para bandas de rock tocarem no Recife. No caso, o Abril Pro Rock inaugurou e forçou a cidade a também se abrir para o rock.
Hoje, a situação é diferente e, a cada final de semana, é possÃvel encontrar bandas de rock tocando tanto em bares como ainda ao ar livre e o público ir selecionando melhor o que se quer ver, sabendo que existem diversos estilos e grupos que podem melhor lhe agradar ou não. Ainda assim, mesmo formando fãs e cultivando uma cultura musical na cidade, o efeito agregador é diferente do que festivais nos proporcionam. E quanto mais público, mais gente, mais a vontade de estar ali e comemorar vendo boas bandas. Seria apenas, no caso do Abril Pro Rock, não se deixar tornar vÃtima de si mesmo, uma vez que ele dependeu de grupos que sempre se alternaram em suas edições como Pitty, O Rappa e Los Hermanos para cumprir essa função de chamar muita gente e, conseqüentemente, trazer uma opção melhor para uma cidade ainda carente de shows interessantes.
gosto muito de shows com muitas atrações, mas sei que cada vez mais o público tem um limite no que pode absorver de informações - sou curador do Tim Festival - tenho percebido que programar mais de 2 bandas por noite já é incentivo a dispersão - o público chega tarde, meio que ignora as bandas de abertura - mas mesmo que fosse uma banda só... as pessoas ouvem duas músicas e já parece que tiveram o suficiente... em festival então: a social na platéia é tão importante quanto o que rola no palco... os músicos africanos, quando tocam em casa, resolveram esse problema de outra maneira, bem saudável: é uma outra relação com a música: as bandas tocam a noite inteira: o público entra e sai, dança um pouquinho, vai beber cerveja lá fora, volta novamente para o show... o show deixa de ser um evento único e especial, para ser mais um elemento da diversão... mas as bandas tocam sempre, todas as semanas - ao sair ninguém tem a sensação de estar perdendo nada, pois semana que vem tem mais... é garantido! nos bailes funk do Rio, ou nas festas de tecnobrega do Pará, ou nos grandes shows de forró pop, a situação é bem parecida com a africana...
mas não acho que devemos mudar a organização dos festivais para incluir menos bandas não - quero dizer apenas que temos que levar em conta que o público vai reagir cada vez mais de novas maneiras, pois a oferta cultural é cada vez maior - portanto: longa vida para o Abril ProRock, um dos eventos mais importantes para a música do Brasil atual!
Jarmenson, queria fazer uma sugestão, mas fique muito à vontade. Você deve ter visto que o Bruno Nogueira postou outra matéria sobre o terceiro dia. Acontece que as duas têm o mesmo tÃtulo: "Abril pro Rock: terceiro dia". Como ele já usou esse tÃtulo no primeiro e no segundo dia, será que você poderia mudar o seu tÃtulo? Só pra não gerar nenhum tipo de confusão??
Imagino que você tenha posto o mesmo nome até intencionalmente, já que o Bruno não postou o texto da terceira noite imediatamente... O que foi bem pensado, já que daria uma complementada caso ele não postasse. Será que foi isso?
Enfim, é só uma sugestão mesmo. Fique à vontade e parabéns pelo texto! Realmente foi muito bacana ler os dois enfoques!
Oi Helena. A idéia era essa mesma já que tinha se passado um bom tempo e ele não tinha colocado a cobertura dele ainda.
De todo modo, posso mudar para ressaltar que pelo menos aqui, eu pude abordar outros temas que não se restringiram só ao último dia.
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