por Rogério Ratner
No inÃcio dos anos 80 (na fase de minha vida que costumo chamar de "boêmia"), eu costumava seguir um certo roteiro, quando saÃa nas noites do final de semana pelas ruas da Cidade Baixa e do Bom Fim, na expectativa de que em algum dos vários bares com música ao vivo alguém me desse a chance de dar uma "canja". A "canja" em questão servia (ou deveria servir, pensava eu) para vários propósitos: adquirir alguma experiência de palco e vivência na exposição ao público; conhecer outros músicos, fossem cantores, cantoras, compositores, instrumentistas, etc.; e o mais importante, colocar-me em evidência junto à mulherada. Tenho que admitir que tais empreitadas serviram muito mais ao segundo propósito do que aos demais, pois foi um perÃodo em que conheci muita gente legal ligada à música. Definitivamente, já perdi a esperança de que algum dia me sentirei totalmente confortável cantando para um número considerável de pessoas, numa apresentação com certa solenidade, e as tais "canjas" certamente não ajudaram em nada em minha autoconfiança neste sentido, pois, como todos sabem, o público de bar geralmente não é dos mais atenciosos para com os músicos. Uma das poucas exceções que presenciei quanto a isto foi quando passei a incluir em meu "roteiro" umas passadas, de vez em quando, no bar Panela de Barro (ou Tigela de Barro, ou alguma coisa semelhante, não lembro bem agora), onde a cantora "da casa" arrancava animados aplausos, e contava com um público fiel. Este bar ficava na mesma quadra do "Opinião" atual, na José do PatrocÃnio (na época, o Opinião ficava em um "garajão" na Joaquim Nabuco, cerca de uns 500 metros da sede de agora), mas quase na esquina oposta. A cantora em questão era ninguém menos que Adriana Calcanhotto, então dando seus primeiros passos em sua fulgurante carreira. Realmente, a Adriana era uma exceção à regra, pois o público que frequentava o bar geralmente já a conhecia, e costumeiramente aplaudia após a interpretação de cada canção efusivamente, o que, como já mencionei, costumava ser raro no que concerne ao público notÃvago. Muita gente no bar dizia que ela era uma "nova Elis Regina". Elis havia morrido há poucos anos antes, e sempre que uma boa cantora surgia em Porto Alegre, na época, o pessoal costumava dizer que a mesma seria a tal sucessora da "Pimentinha". Contudo, é fato que, realmente, à época, a Adriana parecia ser bastante influenciada por esta grande cantora também gaúcha, não apenas referenciando-se no jeito de cantar, mas também porque traçava com propriedade o próprio repertório da "maior cantora do Brasil". Hoje pode parecer estranho, porque geralmente a Adriana imprime um tom mais leve, "colocado" e melodioso na voz, mas naquela época ela "arrebentava", cantava com mais empostação, com mais volume e mais "para fora", lembrando bastante a Elis. Então, à s vezes, eu dava uma canja neste bar em que ela tocava, e acabamos ficando amigos. Inclusive uma vez eu mostrei umas músicas minhas, e ela me convidou a visitá-la, à tarde, em seu apartamento, que ficava no mesmo prédio do bar localizado no térreo, para apresentar o que eu tinha de composições. Ela teve uma enorme paciência em escutar mais de 60 músicas (eu fazia, na época, pelo menos umas cinco músicas por mês) numa sentada - e o fato é que, hoje vejo, não havia muito que se aproveitasse quanto à s minhas músicas daquele tempo. Mas ela foi muito legal e elegante, teve saco de ouvir até o fim, me elogiou, etc., e inclusive pediu para eu gravar algumas que ela teria gostado numa fita (rss). Havia a promessa de um cara quanto a financiar um disco dela, e ela estava selecionando repertório, etc., mas no fim este tal disco não saiu. De fato, o seu único disco "Portoalegrense" foi a participação em um LP lançado pela RBS, reunindo diversos artistas gaúchos, no qual ela registrou a música "Suspeito", de Arrigo Barnabé - mas isto foi muito tempo após o perÃodo ao que me refiro.
Em outra ocasião, em uma das mostras de música que organizei como diretor de cultura do CAAR (Centro Acadêmico André da Rocha), da Faculdade de Direito da UFRGS, a Adriana participou. Em verdade, a mostra era apenas do pessoal do Direito, mas ela tinha uma amiga que era colega nossa e a inscreveu. Ainda lembro do Chico (grande figuraça, amigão mesmo de todo mundo, que mais tarde veio a atuar como promotor de justiça, e acabou falecendo tragicamente, junto com sua esposa, em uma viagem de turismo ao Aconcágua, no Chile), que estava encarregado de apresentar as atrações, referir, todo emocionado, após a apresentação da Adriana, que era uma grande honra para nós recebermos uma artista de sua categoria, etc. e tal. Ela já compunha também naquela época, e lembro que cantou na mostra uma música sua sobre Porto Alegre, que era o seu "hit" de então (ela costumava cantar esta música nos bares também), que tinha uma frase mais ou menos assim, que ficou na minha lembrança, que era tipo "esta é a terra do chimarrão e da maconha" (na verdade o que lembro bem foi o fato de a canção ter a referência à maconha, o que era bastante incomum, à época, porque ainda estávamos em plena ditadura militar, e o assunto não era comumente abordado de forma tão direta, na época). Ao que sei, ela não chegou a gravar esta música, ao menos em disco oficial. Outra vez, fui assisti-la tocar no bar Fazendo Artes, que ficava na Vieira de Castro, bem próximo ao antigo Bar do Beto. Recordo que passei por lá bem no fim de noite, tipo umas 4h da manhã, ela já tinha acabado de trabalhar, ficamos conversando no fundo do bar e fui mostrar-lhe uma versão "instrumental" que eu tinha feito do clássico "Wave", no violão. Qual não foi a minha surpresa, quando vi que, após um breve silêncio dela, durante o qual eu estava "concentrado em minha execução", ela havia dormido no chão do bar mesmo, de tão cansada. De fato, ela ralava muito, cumprindo aquelas jornadas de trabalho absurdas que se praticava naquela época, quando o músico tinha que tocar umas cinco ou seis "entradas" de 45 minutos ou algo semelhante, uma coisa desumana. Seguidamente a encontrava também, seja no Brick da Redenção, seja no Bar Luar, ou no Escaler, enfim, nos points da época. Lembro de uma vez em que ela me disse que estava muito indignada com um baterista que vivia "mandando o lima" nos shows, da falta de profissionalismo, etc. De fato, ela passava então pelos mesmos problemas dos "canários" comuns e mortais de Porto Alegre. Aliás, a propósito, no bar "Pecados Mortaes", ao qual ela homenageou em uma música, que foi gravada em um de seus discos, era muito difÃcil de eu conseguir dar canja, a exemplo do que acontecia também com muitos amigos, pois o músico que geralmente tocava fixo na casa era um baita "fominha", não "largava o osso" nunca, e não gostava que os outros dessem suas canjas.
Tudo isto a que me refiro foi bem antes de o Luciano Alabarse dirigi-la em shows cenicamente mais elaborados, geralmente apresentados no Porto de Elis. Aliás, lembro de um show dela no Porto de Elis, muito bem bolado cenicamente, em que havia uma espécie de painel de papel cobrindo toda a boca de cena, e ela literalmente invadia o palco, saindo de trás e rasgando o tal painel, para espanto e surpresa do público. Uma das coisas que talvez muita gente não saiba é que a Adriana, antes de sacramentar o seu formato de apresentação na base de "voz e violão", era uma cantora bastante agitada no palco, com muita presença cênica. Outra vez houve um show que ela compartilhou o palco com a Tânia Carvalho, e, se não me engano, com a Muni e a Annie Perec, agora não tenho muita certeza, mas foi um show bem legal também. Também recordo de estar andando de ônibus e ver colados nos postes da Oswaldo Aranha o cartaz do show "O homem do pau-brasil" (acho que era esse o tÃtulo), que causou um certo estranhamento pra quem via, mas que já denotava o seu interesse pela literatura modernista e o tropicalismo. Após esta época, fiquei um bom tempo sem ouvir falar da Adriana, até que ela surgiu já como uma estrela contratada por uma major do Rio, e daà o resto da história todo mundo sabe. Hoje, vendo a coisa retrospectivamente, percebo que desde muito cedo, em sua carreira - mesmo no perÃodo mais embrionário em que acompanhei mais de perto a sua trajetória, ainda quando tocava em bares da noite -, a Adriana já conseguia fazer brilhar a sua estrela, construindo a ascensão fenomenal a que chegou na carreira de cantora. Com muito brilho, é verdade, mas também com muito trabalho e "ralação".
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Gostei de ler e me inteirar sobre momentos interessantes da vida Adriana, que gosto muito. Muito bom. Abraço.
Juscelino Mendes · Campinas, SP 1/3/2009 00:18
Ratner!!!
Só me resta dizer...
beijo
doce
Também gostei muito, pois sou fã da Adriana Calcanhotto.
Parabéns
O cordelista
Tbm gostei muito!
Acho a voz dela belissima; e suas interpretacoes sao maginificas!! excelente postado1
parabens...votado!
Legal conhecer essa faceta da Adriana Calcanhoto.
Gostaria de vê-la com interpretações digamos, mais fortes e saindo um pouco dessa linha que ela faz.
Admiro artistas versáteis que transitem por diferentes estilos, sem perderem a sua personalidade.
Parabéns pelo seu texto. Muito bem escrito.
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