“A gente inventou um truque para fabricar brinquedos com palavras. O truque era só virar bocó. Como dizer: eu pendurei um bentevi no sol.â€
Manoel de Barros
Confesso minha má vontade inicial de visitar a exposição Arte para Crianças (no Museu Vale do Rio Doce até dia 20 de junho). A visita foi adiada várias vezes. Mas no domingo passado fiz o passeio. Afinal o Museu da Vale, por si só, já vale uma tarde de domingo. Principalmente se a tarde de domingo faz parte de um pacote especial de comemoração de meu aniversário, que começou no sábado.
Posso justificar minha má vontade inicial de várias maneiras. A mais fácil é essa: já vi algumas exposições de arte feitas especialmente para crianças e a minha decepção com o desperdÃcio das obras na concepção das montagens foi tanta que achei que essa exposição seria mais uma daquelas pseudodidáticas, com uma linguagem careta de adulto que tenta imitar a fala infantil. Realmente subestimei a equipe de curadores da exposição. E por pura ignorância minha: o idealizador da exposição, Evandro Salles, é um dos mais atuantes artistas e produtores da arte contemporânea no Brasil.
Logo na entrada meu olhar predisposto à crÃtica mordaz se encantou com a quantidade de crianças presentes e envolvidas com as obras da mostra. Para quem está acostumada à calma e ao silêncio dos museus e exposições de arte, foi uma surpresa muito agradável ver a criançada de um lado pra outro, tocando, brincando, olhando e entrando nas obras expostas, tão à vontade quanto num parque de diversões onde cada um inventa seu brinquedo e o seu modo de brincar com ele. Ou, como bem disse Manoel de Barros, citado no texto de abertura da exposição, cada um pendurava seu bentevi ao sol conforme dava na telha.
Na exposição Arte para Crianças, tão importante quanto a grandeza dos artistas e das obras expostas é a forma como elas são apresentadas ao público. Espalhadas pelo galpão, pelo pátio, nos vagões da velha locomotiva da Vale (que viraram salas de exibição dos vÃdeos sobre um poema de Manoel de Barros e sobre John e Yoko), na sala de exposições do Museu... por onde quer que a gente passe tem uma obra de arte, dessagrada, democratizada, tocável, penetrável, disposta a leituras e interferências, pendurada ao sol.
É assim com as 140 esculturas de AmÃlcar de Castro: desenhos que se transformaram em dobraduras feitas em chapas de ferro, que se transformaram em blocos de madeira manipuláveis que, por serem manipuláveis, se transformam na hora no que a gente quiser. É assim com o cubo penetrável de Eduardo Sued, composto, ao gosto do freguês, com os tecidos e papéis coloridos disponÃveis num baú ao lado da base em madeira. É assim com a escultura penetrável de Ernesto Neto, que poderia parecer uma dessas piscinas de bolinha dos parquinhos, não fosse ela nos proporcionar uma experiência sensorial deliciosa que envolve a visão, a audição e o tato, tudo ao mesmo tempo. E é assim com as árvores dos desejos, que são as árvores ornamentais do jardim do próprio Museu transformadas simultaneamente em suporte para a arte conceitual de Yoko Ono e para milhares de desejos anônimos, infantis ou não. Ou com os incrÃveis jogos de xadrez, também obra de Yoko, que com suas peças todas brancas nos remetem à idéia give peace a chance, de John Lennon.
As Ãrvores dos Desejos de Yoko, aliás, merecem um parágrafo à parte. Pendurados nelas, escritos em pequenos papéis que o Museu disponibiliza ao público, milhares de desejos se balançam. São desejos genéricos e inalcançáveis, como os que pedem a paz mundial, desejos dúbios (“eu quero deus e um play station 3â€), desejos egoÃstas (que ele me peça em namoro logo!), desejos cheios que compaixão (que meu avô fique bom das vistas) e desejos sofridos, como o de uma criança ainda em fase de escrita fonética que apenas pede que o pai volte pra casa hoje. E como que embalando os desejos de tantos, um vento suave completa a obra, sacudindo as folhas/desejos das árvores.
Algumas obras não são tão interativas como as citadas acima. Ou melhor, a interação com elas precisa ser feita em outro nÃvel: um outro jeito de pendurar o bentevi ao sol. E as crianças (e os adultos dispostos ao encantamento também) dão logo um jeitinho de procurar seus bentevis na sala Rubem Grilo, onde 382 minúsculas xilogravuras de sua Arte Menor mostram objetos e seres estranhos e absurdos, que revelam o mundo diferente do artista. Ou na sala Eder Santos, que nos abre uma porta para um mundo paralelo com suas projeções de vÃdeo sobre objetos (pássaros na gaiola, homem submarino nadando livremente num aquário). Ou ainda nas tranças das incrÃveis personagens das gêmeas xifópagas de Tunga. Também é necessária uma disposição e uma entrega de criança para entender a linguagem dos bules buliçosos de Mariana Manhães, que conversam sem parar no movimento de vai e vem das traquitanas eletrônicas que ela idealizou para dar vida a esses objetos.
Não é por acaso que a mostra tem recebido mais de 1.500 pessoas nos finais de semana. Ela revela para crianças e adultos encantados o processo de criação do artista sem apontar o dedo para as obras e sem nos dizer o que o artista quis mostrar com elas. Nela temos liberdade total para buscar significados. Ou reconstruÃ-los, se nos agradar. Mas também podemos simplesmente sentar ao lado das obras e bater um papo amigável com elas. Pois, como disse o Evandro Salles no seu texto de apresentação, “para cada pessoa os objetos de arte falam coisas diferentes. Depende da pergunta que a pessoa fizer ou do tamanho do silêncio que a pessoa tem dentro de si.â€
De 20 de abril a 20 de junho
Museu Vale do Rio Doce
Antiga Estação Pedro Nolasco, s/n - Argolas - Vila Velha - ES
Telefone: (27) 3333-2484
De terça a domingo, das 10h às 18h. Sextas, das 12h às 20h
Entrada franca
Valeu, Henrique. Veja como ficou agora com as fotos (demorei mas consegui adicionar!)
Ilhandarilha · Vitória, ES 5/6/2007 23:34
mas dá uma vontade danada de brincar com a meninada! algumas coisas me fizeram lembrar da estética do labirinto do fauno, principalmente a história das gêmeas...
abraços!
Muito legal essa exposição. Será que ela vai circular pelo paÃs?
E a s fotos estão ótimas, amiga.
Beijão,
A
Que delÃcia de passeio, Ilha. Emocionante a parte dos pedidos...
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 6/6/2007 15:32
Andréa, acho que ela foi montada para o Museu da Vale, só. A circulação dela deve ser bem complicada, já que algumas obras têm dimensões enormes.
Helena, foi mesmo uma delÃcia. Alguns desejos são mesmo emocionantes. Grande sacada da Yoko.
Claudia,
Se eu fosse criança (mesmo) e minha mãe capichaba ainda estivesse entre nós, eu ia levar ela até lá. Coisa linda e emocionante. Dos artistas que você citou sou fã de muitos mas adoro o Rubem Grilo (ele ilustrava revistas de esquerda nos anos 70 /80, descrevendo a ditadura com aquele surrealismo inquietante dele). Gosto muito também da Yoko artista plástica. Não conhecia, contudo, a alma infantil de nenhum destes artistas. A sua criança, descrevendo a mostra, acordou a minha. Fiz até um pedido!
Abs,
Acho que nem precisa ser criança para apreciar a exposição. Mas que tem que ter um moleque morando sempre no coração, isso tem!
Ilhandarilha · Vitória, ES 7/6/2007 13:46Sensacional o teu texto, ilha! Já tinha ouvido falar dessa exposição, mas ainda não tinha visto fotos.
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 9/6/2007 18:45
Fábio, querido, obrigada pelas palavras!
Além das fotos, vc pode ver os trabalhos em vÃdeo: os bules buliçosos da Mariana e o aquário do Eder (no download). Trabalhos muito legais.
Lindo texto, traduz exatamente o que eu senti ao ver a exposição. Adorei a metáfora de "pendurar o bentevi ao sol", e a descrição da árvore da yoko. Fantástico. E seus textos a cada dia melhores e mais prazerosos de se ler!
Erly Vieira Jr · Vitória, ES 12/6/2007 09:21
O seu texto não deixa de ser um verdadeiro passeio de domingo... e as ilustrações/fotografias expressam muito isso tudo.
Um abraço.
Belo texto, querida. Fico pensando na coisa de não perdermos a porção criança, que nos redime de tantas misérias pessoais. Um algo que deveria nos suprir com doses de pureza e mansidão.
Beijos, sempre!
Exposição interessante e texto também.
Paulo Bap · Recife, PE 12/6/2007 16:38
Baby, obrigada pela força. Vc sabe que levo em consideração a sua fala. Abraços!
Filipe, gostei tanto do passeio que resolvi compartilhar...
FabrÃcio, meu bom baiano, c sabe o quanto eu posso ser criança!
Valeu, Paulo.
...de fato um lindo texto, conseguiu transmitir o encantamento que deve ser essa exposição. E com a delicadeza sempre bem vinda de Manoel de Barros...
...não resisto em deixar um pouco dele aqui também:
"A criança está disponÃvel para a poesia. Ao ponto de poema. A criança ainda não sabe o comportamento das coisas. E pode inventar. Pode botar aflição nas pedras e assim por diante. As crianças não sabem que pedra não tem aflição ou se os peixes dão flor".
Que lindo, isso: a criança está ao ponto do poema. Acho que a curadoria da exposição teve essa sensibilidade do Manoel de Barros ao idealizar a Arte para Crianças.
Ilhandarilha · Vitória, ES 15/6/2007 18:32
poxa como seria bacana uma exposição dessas passando pelo paÃs neh?
pena que é uma estrutura muito complicada...:/
xxx
Tb curti demais a exposição. Levei minha filha, encontrei dois amigos que vieram em Recife e marquei o encontro lá mesmo. Foi um dia inteiro de muita diversão e fomos as últimas a sair do galpão. Valeu mesmo! Valeu o registro tb. Obrigado!
quasarte · Estados Unidos da América, WW 30/6/2007 18:02AS FOTOS FICARAM MUITO LEGAIS!
quasarte · Estados Unidos da América, WW 30/6/2007 18:19
maravilhoso de lerver!!! eu e o gui com certeza Ãamos ficar até fechar rsrsrs
olha, verba e "estrutura" pra rodar exposições eles tem sim, é só estar no calendário ou objetivos do biênio essas coisas ... considerando que a "grandio$idade" da vale é de base brasileira, muito mais brasileiros merecem usufruir dessas emoinformações.
Soube que a exposição está no MAM do Rio!
Ilhandarilha · Vitória, ES 19/11/2007 08:25texto informativamente lúdico ou vice-versa? tanto faz. abraços.
georgesaraiva · Guarapari, ES 9/9/2008 14:05
Por algum motivo que não entendo, alguns links colocados no texto perderam a validade. Isso eu não sabia: link tem validade, sim. E eu que achava que o ciberespaço era infinito e as páginas ficavam eternamente acessÃveis a um click! Alguns dos que notei não existirem mais: Evandro Salles, Mariana Manhães, Bentivi, Ernesto Neto. Eu poderia ver no google outros links sobre esses artistas, mas estou com uma tremenda preguiça de fazer isso. Além do que, não sei se vale a pena, já que eles podem perder a validade também e eu teria que ficar eternamente atualizando esses links. Então, se tiverem muita curiosidade sobre os artistas dos links desaparecidos, procurem no google ou wikipédia.
abraços
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