A figura de Bispo sempre me intrigou. Este ensaio é antigo (publicado apenas nas poeiras da minha gaveta).. mas decidi postar por aqui depois que vi as palavras frevando ladeira a baixo sem freio ao fazer um comentário em História de doido da
Nattércia Damasceno.. comentário tava ficando grande demais..
Uma obra de arte, ao entrar no circuito social, tem o poder de extravasar as intenções do próprio autor que a criou - o que pode ser considerado uma de suas caracterÃsticas mais interessantes.
Desta forma, o público pode se deparar com uma obra e fazer uma leitura completamente diferente daquela que estava prevista pelo autor. E o que dizer então daquelas obras produzidas por alguém que nega ser um artista ou que seu trabalho seja considerado arte?
Este caso um tanto incomum se aplica a Arthur Bispo do Rosário e sua produção. Confinado em uma colônia psiquiátrica durante grande parte da sua vida (50 anos), ex-pugilista, ex-sinaleiro da marinha e ex-funcionário da Light, o sergipano do municÃpio de Japaratruba seria internado no final da década de 30 sob o diagnóstico de esquizofrenia paranóide. No perÃodo em que viveu, Arthur Bispo transformou restos de tecido de cobertores velhos, roupas, sucata, utensÃlios utilizados na colônia... em mantos, instalações, estandartes e “estranhos†objetos que durante um certo tempo só chamavam atenção de alguns funcionários e internos do Núcleo Ulisses Viana da Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira.
Bispo não considerava arte aquilo que fazia até mesmo quando suas obras ficaram famosas e ganharam notoriedade em todo o mundo. Bispo se considerava o próprio messias. Em seus delÃrios ele era Jesus e desde o dia em que dizia ter recebido a visita de 22 anjos anunciando a sua missão na terra, estava obstinado a trabalhar intensamente na representação de seu mundo. O interno sisudo da colônia transformaria sua cama em uma Cama-nave e construiria um Manto da Apresentação necessário para o dia em que fosse encontrar-se com Deus. Tudo isso, segundo Bispo do Rosário, era produzido sob a enorme pressão de um anjo vingador que o mandava trabalhar sem parar ou, caso contrário, nas palavras do próprio Bispo: “Se eu desobedecer, me pega, me enrola lá em cima, em sonho assim, eu caio no chão, ele me suspende, eu fico descontrolado, qualquer coisa me pega em sonho e faz de bola (...)â€.
Mestre da Bricolagem
Ao contrário do outros internos que recebiam tinta, papel e telas para trabalhar nas oficinas de arte terapia, Bispo pescava seus materiais ao seu redor ou conseguia-os através de funcionários de sua confiança. Materiais que iam desde cabos de vassoura e madeira de caixas de feira; tecidos dos cobertores, linhas desfiadas dos uniformes e de outros tecidos a plástico, copos, garrafas, talheres de metal, canetas esferográficas, aparelhos de barbear, isqueiros, peças de vestuário, calçados, peças de carros e máquinas, ferramentas velhas, brinquedos, embalagens de alimentos...
O conjunto de sua obra reúne centenas de peças. Algumas são miniaturas que ora parecem remeter ao seu passado na marinha como pequenas embarcações, barcos veleiros, ringue de boxe; ora à sua infância no meio rural com lembranças de galinheiro, carroça, curral, bois, gaiola... Há também cenas urbanas tais como o painel com campanha polÃtica, viaduto com engarrafamento de carros... Painéis os quais Bispo chamava de vitrines são bastante numerosos. Alguns reúnem vassouras e rodos velhos, bolas de borracha e plástico, canecas, lixo hospitalar (seringas, êmbolos e agulhas) e outros com os mais variados objetos (bules de plástico, garrafas térmicas velhas, pedaços de bonecas, caixas de cotonetes, peças de carros e armações de óculos).
Mas a parte que possivelmente chamará logo a atenção de quem observará a sua obra são os seus ‘fardões’, estandartes e o Manto da Apresentação . São vestimentas com impressionante quantidade de detalhes bordados. Os mantos são ricos também em cores e assim como o estandarte e algumas de suas miniaturas possuem um traço em comum da autoria: textos e palavras. Em grande parte dos objetos estão escritas e bordadas inúmeras palavras e frases. Bispo escreveu nomes de pessoas, descrições fÃsicas, frases de propagandas, manchetes de jornais, nomes de ganhadoras de concursos de beleza, números e algarismos romanos. Também é possÃvel encontrar uma narrativa do próprio autor que relata a sua missão na terra, seus encontros com anjos, santos e com Deus.
Um olhar atento às suas obras é um verdadeiro mergulho ao mundo de Bispo. As palavras e números se misturam a pequenos desenhos que em certos momentos seguem uma lógica, em outros são apenas fragmentos. É como se o inconsciente de Bispo se expandisse da sua cabeça e saltasse para os nossos olhos; sua realidade diagnosticada de psicodélica pela nossa lógica, viesse ao mundo se explicar ou simplesmente deixar mostrar-se.
Diagnósticos psiquiátricos não são suficientes para explicar o que impulsionou o interno da Colônia Juliano Moreira fazer aquela arte que ganharia o mundo, mas o pequeno municÃpio sergipano de Japaratuba aponta algumas pistas para o seu entendimento. A cidade em que nasceu (a 54 quilômetros da capital Aracaju) preserva traços fortes da religiosidade popular como a penitência e o respeito aos quarenta dias de jejum da Quaresma, religiosidade que é uma constante em na obra de Bispo. Outra caracterÃstica da cidade que o consciente de Bispo absorveu foram os traços de diversidade das manifestações da cultura popular local. Nos Dias de Reis diversos grupos que se preparam o ano todo para a data, saem à s ruas apresentando suas danças e seus teatros populares. Com cores vibrantes e porta estandartes o Cacumbi, faz sua homenagens a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito. A Chegança encena batalhas entre reis mouros e capitães da marinha, todos devidamente trajados e caracterizados com espadas de madeira e latão. Traços destes folguedos e de seus apetrechos bem como o uso de muitas cores estão presentes em trabalhos de Bispo como os estandartes e mantos. A técnica do bordado caracterÃstica do artesanato de Japaratuba, Bispo parece ter herdado também de sua cultura originária.
Bispo e a arte contemporânea
Comparar a arte de Arthur Bispo do Rosário com a arte que era feita na época em que viveu é algo quase inevitável, assim com é também difÃcil tentar explicar ou entender como um interno de um hospital / colônia do Rio de Janeiro teria uma produção que se assemelhava e trilhava caminhos parecidos com os movimentos de arte contemporânea.
Enquanto artistas da Pop Art reproduziam objetos para criticar uma sociedade de consumo, Bispo fazia suas vitrines formadas por objetos comuns na intenção de representar o seu mundo para Deus. Outra obra que pode impressionar pela semelhança seria a “ de Bispo com a “Roda de Bicicleta†de Marcel Duchamp. Além do reaproveitamento de sucata, dando poesia a utensÃlios comuns, Bispo construiu objetos como um tabuleiro de xadrez com diversas peças, uma pipa de pano e os “Orfa†representações próprias de determinados objetos.
Teria Bispo tido acesso a informações, talvez através de revistas, sobre arte contemporânea como, por exemplo, sobre a obra de Duchamp? Teriam suas antenas sensÃveis de artista captado, de alguma forma, as transformações em andamento no campo da arte? Teriam os dois artistas, o brasileiro e o francês, chegado a resultados semelhantes, (porém com objetivos ou intenções distintas) um por romper conscientemente com cânones consagrados, o outro por desconhecê-los? Jamais teremos confirmação destas ou de outras hipóteses. O que importa, na verdade, é que o diálogo possÃvel entre a obra de Bispo e a arte contemporânea nos aponta algo que faz parte da essência humana: a necessidade de criar. E o lugar privilegiado da liberdade de criar é a arte.
No final da década de 70 e inÃcio dos anos 80 a produção de Arthur Bispo do Rosário não respeitaria mais os limites do Núcleo Ulisses Viana e da colônia psiquiátrica onde ficava alojado. Em uma matéria que tinha como objetivo mostrar o estado de calamidade dos hospitais e colônias psiquiátricas, o jornalista Samuel Wainer fazia uma reportagem para um dos programas de maior audiência da televisão brasileira, o Fantástico da emissora Globo. Bispo, junto com os Mantos, suas “vitrines†e outros objetos apareceria em rede nacional ainda como apenas um coadjuvante da triste história dos manicômios. Isto, no entanto, seria suficiente para atrair visitas de inúmeras pessoas interessadas em seus trabalhos: artistas plásticos, jornalistas, psiquiatras, pesquisadores, estudantes e intelectuais. Jornais e revistas semanais publicariam matérias sobre a sua arte.
Em um vÃdeo feito pelo fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart, após um longo diálogo, Bispo responderia à pergunta do fotógrafo sobre o fato de ele se transformar em Jesus Cristo da seguinte forma: “Não vou transformar não, rapaz, você está falando com ele. Tá mais do que visto. Mas pra quem enxerga, pra quem não enxerga não dá péâ€. Falaria dos objetivos de criar tantos objetos, além de reforçar de onde vinha a sua motivação: “É severo para mim. É sentado num trono todo azul, diz só: Jesus Filho, tem que executar o seu canto, aà embaixo, faça isso e isso. Eu nem falo nada, tenho que executar tudoâ€. Apesar de toda a repercussão em torno de sua obra, Bispo mantinha total indiferença a essa notoriedade, ligado somente ao preparo para o dia da sua apresentação. Bispo viria a falecer no ano de 1989, e logo depois toda as sua produção seria montada em diversos museus de arte contemporânea, participaria em exposições em Nova York e bienais européias.
Nos dias de hoje, a riqueza da obra de Bispo continua causando espanto e admiração de diversos olhares. A Secretaria de Cultura do Estado de Sergipe em parceria com a Prefeitura Municipal de Japaratuba trouxe, em janeiro de 2002, os restos mortais para a sua terra natal e montaram uma exposição em sua homenagem.Talvez Bispo esteja pouco ligando para isso. Sentado ao lado do seu pai deve estar em paz consigo mesmo. A paz daqueles que cumpriram sua missão na terra.
Mais:
- BURROWES, PatrÃcia. O universo segundo Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Editora FQV, 1999;
- HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário, O senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1996;
Algumas obras
Legal as hipóteses levantadas. Interessante também é a expontaniedade do louca-artista. Quantos artistas estão por ai resumidos às suas esquizofrenias!?... um brinde à loucura e aos devaneios. Abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 13/4/2007 09:11
Valeu Felipe,
Nada melhor do que inaugurar este espaço de comentários com um brinde aos belos e geniais devaneios da arte. Levantemos a nossa taça então!
Abraço.
Thiago,
Me emocionou muito. Sou fã do Bispo de carteirinha, você já sabe. Agora, o que mais gostei mesmo e quero deixar aqui registrado como prova do valor inestimável do seu ensaio, é a relação estreita que você estabelece entre a cultura tradicional local, da origem sergipana de Bispo e a sua arte. É o elogio á loucura (ou a negação dela, depende do ponto de vista). Se há uma lógica cultural absoluta entre Bispo e suas origens culturais e uma profunda lógica em sua obra e a arte contemporânea, onde estaria o louco? Quem seriam os loucos? Nós?
Abraço forte e emocionado.
Valeu Felipe,
Nada melhor do que inaugurar este espaço de comentários com um brinde aos belos e geniais devaneios da arte. Levantemos a nossa taça então!
Abraço.
Grande SpÃrito,
Fico feliz que você gostou e vindo de um admirador de Bispo...
Realmente precisamos realmente desencadear outras cadeias lógicas em nossas concepçõs de arte e loucura. Acredito que Bispo deveria ser exemplo de como a Arte ajuda no mergulho desse imenso e complexo oceano de sentimentos que é alma humana..
Abração forte.
hj recebi o catálogo com as obras de bispo do rosário, e vagando pelo overmundo, achei o tÃtulo desta matéria interessante, ele novamente, creio que preciso pesquisar sobre ele, e o nome do livro acima, o universo visto por..., me parece instigante.
abraço e parabéns
E este catálogo, Rafa? Como se consegue?
SpÃrito Santo · Rio de Janeiro, RJ 16/4/2007 19:28
É, Rafa, como se consegue?
Ótima idéia a de publicar o texto aqui, Thiago.
Fiquei encantada com a obra do Bispo...Queria uma de suas peças na minha sala.
Na verdade, acho que de tanta história, quem acabou ficando doida fui eu rs.
Já pensou um encontro entre o Arthur Bispo do Rosário e a Doida Herege?
Ia ser loucuuuuura.
Parabéns pelo texto ;)
então, o catálogo foi ´publicado em 2002 através da secretaria da cultura, consegui através de uma escola pública perto de minha casa, creio que seja algo difÃcil de se encontrar hj em dia
Rafa oliva · Aracaju, SE 27/4/2007 09:42
Thiago,
Que bom que resolveu arrumar suas gavetas e nos presentear com este rico texto.
Como o tema "loucura" é fascinante... por que será que estas figuras nos fascinam ou, no mÃnimo, despertam nossa curiosidade? Será que invejamos a sua liberdade de sentir, ser, agir, viver?
Bispo parecia seguir a sua realidade, deixava-se, tão-somente, fluir com a Vida, sem estar preocupado com regras, técnicas ou outras coisas tidas como necessárias para que classifiquemos algo como arte. Mas quem dita essas regras? E por que temos que segui-las? Gostei muito quando você disse que arte é o lugar privilegiado da liberdade de criar.
Acho que já viajei demais. Muito bom o seu texto!
LavÃnia,
Não você não viajou demais não.... a parte de comentários é rica justamente por causa disso: dar continuidade do diálogo que o texto inicia. Suas perguntas são muito pertinentes..
A arte realmente é um espaço privilegiado, tanto por sua librdade e também por conseguir trazer à tona um universo sensorial que é difÃcil racionalizar ou transformar em palavras. Além da questão dos "delÃrios" e "loucura" ligados a arte de Bispo.. exite um outro pilar interessantÃssimo em sua obra que é a questão da religiosidade e dessa visão mÃstica dele em relação ao universo que nos cerca.
Nattércia, esse encontra ia dar o que falar mesmo... já que um é o próprio Messias e a outra é herege...(imagine o debate existencial hehehe).
Rafa e SpÃrito, o catálago deve ser algo preciosos. Seria interessante ver quem esteve a frente do projeto ( se foi do estado - a adiministração de 2002 acho que foi João Alves e na Sec. cultra José Carlos Texeira) para ver como disponibilizar uma cópia.
Abração a todos...
e valeu pelos elogios
Arre égua, Thiago. Tô que tô num vai e vem da gota com esse papo de doido. Estou mergulhando nesse teu aqui.
Antonio Rezende · Palmas, TO 12/1/2008 20:25
Viva a Sergipe caro Thiago! Sou também um sergipano, da cidade de Lagarto, há 60 km da capital Aracajú. Há tempos vivo e trabalho em São Paulo, onde milito enquandto artista plástico. Seu texto é coeso e sucinto, sobretudo quando se submete a ressurgir o grande Bispo do Rosário, como grande relevância na produção de arte "bruta" do Brasil. Muitas vezes, mais concisas do que muitas expressões artÃsticas supostamente conceituais.
Parabéns!
Tito Oliveira
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