No bairro do Saboeiro, em Salvador, os conjuntos habitacionais construÃdos, na década de 1980, pela Urbis (empresa ligada ao BNH, tal qual havia as COHABs no RJ e SP), predominam na paisagem. Este é um dos muitos bairros satélites à Avenida Paralela, via que liga o centro da cidade ao aeroporto e à Linha Verde, pela qual se chega ao litoral norte. O Saboeiro não tem luxo, apenas a realidade de uma classe média baixa - já que, no Brasil, as famÃlias que ganham dois salários mÃnimos são consideradas “classe média†-, cujas perspectivas não vão além da Paralela.
Tal como o morro de Rás Bernardo, no Saboeiro não tem play, não tem playground. Os prédios são baixos e as áreas de recreação tradicionais da molecada sempre foram as ruas. Na maioria das vezes, ladeiras. Em alguns outros casos, um puxado de terra onde rolam os “bábas†(designação local para “peladaâ€, que é uma designação carioca para “futebol entre amigosâ€). Muitas dessas descrições permeiam minha infância, quando passava férias na casa de minha vó. Por mais que ela more num “condomÃnio†ilhado à essa realidade – tal qual se estivéssemos num cenário parecido com o da música “Minha Almaâ€, dO Rappa, mas sem tanta violência -, sempre havia que se cruzar a água para chegar na ilha. E, no mais, a água sempre dava um jeito de entrar um pouco e lembrar que o mar é maior do que aquele pedacinho de terra. Isso, para uma infância de apartamento no Rio de Janeiro, era sempre enriquecedor. Foi nesse cenário que aprendi, com os meninos daqui, a andar de bicicleta.
Em 2007, minhas vindas por aqui são mais raras e fugazes. A cabeça sem preocupações das férias infantis já foi substituÃda pela dependência adulta de um celular sempre ligado e a angústia de estar longe de uma rede wireless. E foi graças a isso que, dessa vez, me reaproximei de tanta coisa. Pela necessidade insana de procurar um computador plugado a qualquer coisa, sai à procura de uma lan house. Já sabia do quanto esse tipo de loja está espalhado pelo Brasil, mas ainda não tinha tido necessidade de me conectar a uma. No máximo a um ‘cybercafé’. E a diferença entre um cybercafé e uma lan house pode ser, muitas vezes, a mesma que separa a minha Ipanema do meu Saboeiro. Meu pai também queria ir e fomos juntos. Aliás, a comparação que fiz entre o cybercafé e as lan houses veio de uma confissão de meu pai:
- Ih, eu achei que lan house era coisa de interior. Outro dia eu sacaneei um amigo meu de Teixeira de Freitas, que lan house era coisa de interior, que no Rio só tinha cyber café.
Pois é. Os processos valorativos começam assim.
Ao chegar lá, o preço era de R$0,75 por meia hora . Era fim de tarde, inicio de noite. Uma porta separava o balcão de recepção quase-árido, da sala com ar-condicionado onde tudo acontecia. Um minuto depois, lá entramos. Tudo apertado. Corredores só pra um. Mesas mal divididas entre os monitores, suportados por puxadinhos onde se apoiavam os teclados bambos. Eram doze máquinas, nove ocupadas. Vendo que estávamos juntos, o rapaz rearrumou os clientes, quase todos (ou todos) adolescentes. Pediu para um trocar de máquina, o outro chegar pro lado e pronto. TÃnhamos duas máquinas vizinhas.
Entre os cinco passos que me separavam da porta até a máquina 4, muita gritaria, som alto numa banda Simple Plan qualquer. Uma olhada nos monitores revelava orkuts,warcrafts, need for speeds, MSN, chats e um YouTube. Mas o grande capital da coisa toda são as ferramentas de relacionamento. Elas constroem sorrisos no rosto da menina e um “Ôxeâ€, no menino nervoso com o que leu no scrap da garota que, segundos antes, ele observava numa foto, em trajes de banho. Nas redes de jogos, o menino grandão cansou de jogar determinado game e grita para o rapaz do lado de fora: “Ô Ricardo!!!! Troque aê por Warcraft pra mim na máquina 7â€. Em alguns segundos, o grandão descobre que naquela máquina será impossÃvel jogar Warcraft. Ele então se levanta e fala com um dos amigos: “Então você vai levantar daà porque eu vou jogar Warcraftâ€. O menino menor se chateia, mas está resignado. A lei do mais forte vence também nas lan houses, tal qual vencia nos playgrounds da zona sul carioca nos anos oitenta.
- Paciência, você só sabe jogar essas coisas frescas de futebol, de sei-que-lá... – completa o grandão, num contexto que eu não observei.
Pouco tempo depois e a zoeira cresce novamente. Um reclama do outro. Todos riem. Alguém “bufouâ€.
- Rapaz, aqui todo mundo tem nariz... – reclama uma voz, que em seguida chama o Ricardo, como se o dono da loja fosse corrigir o aroma da sala. Percebo que Ricardo é tipo um inspetor, um pai de todos. Briga, apazigua, reclama, dá ordens.
Tal como nos tempos em que, nas férias, eu jogava os bábas, a vontade do mais forte ou do dono da bola sempre prevalece. Logo, estão todos jogando Warcraft. O Simple Plan (ou algo que o valha, criado sob a mesma receita) continua no ar. Uma hora rolou um Nickelback.
Meu pai me olha e ri. Ele não entende nada. Se para mim já era estranho, imagine para ele que passou anos e anos da infância nos saboeiros de Salvador. Não é coincidência que a menos de 100 metros dali já exista outra lan house também lotada. E também não é coincidência que o campo de futebol que existe a 200 metros esteja vazio.
Não é questão de fazer propaganda do governo - muito menos de um governo pelo qual eu não votei -, mas não há como negar que os investimentos em programas de barateamento de computadores como o Computador para Todos, estão levando à criação de ambientes como esses. São os novos playgrounds. É gritante que a informática está cada vez mais perto de todos. Lógico que aqueles muitos que dizem que essa é uma realidade distante do universo dos brasileiros ainda têm razão. Só que o processo parece estar virando com uma velocidade abrupta.
É engraçado observar que naquela sala a maior parte das pessoas estivesse em chats ou em jogos. Este foi exatamente o mesmo caminho feito pela minha geração, que talvez tenha sido a que viu os PCs e a Internet, durante a adolescência, chegar aos lares brasileiros entre 1995 e 1997. Fosse em jogos como Prince of Persia, Elifoot, os primeiros Fifa Soccer, Superkart ou em conversas longas pelos chats da UOL ou pelas salas do mIRC, com esses jogos iniciamos o nosso aprendizado digital.
Ao abrir o Microsoft Word da máquina 4, a barra de “arquivos recentes†acusou um pouco mais desse ‘approach’ atual.
“Curriculum Vitae (1).docâ€
“Curriculum Vitae (2).docâ€
“Trabalho aprovador pelo prof L...â€.
Não vi ninguém utilizando a Internet ali para consultas ou para viagens sem rumos no info-mar. Ao mesmo tempo, não se pode negar que fossem jovens aproveitando – a seu jeito – a vazante da info-maré.
E assim, a minha cabeça foi criando referências, tentando entender parte do processo que aquele local está vivendo. Talvez ainda não seja a ocupação intensa, pulverizada e sistemática de conteúdos simbólicos, que Ronaldo Lemos previu (1) como forma de afirmação cultural para os brasileiros nessa ainda jovem mÃdia. Até mesmo porque o processo etapista que se imaginava - de, em primeira instância, fazer os computadores chegarem à s mãos de todos para depois se pensar uma forma de democratização de conteúdo, citado por Lemos - , já está ultrapassado. As lan houses dos Saboeiros, Brasil afora, estão ajudando ainda a inverter a lógica do PC, como personal computer. A compreensão de uma máquina coletiva, interativa, que agora é de um e daqui a pouco é de outro que quer jogar warcraft, é um bem cultural que pode trazer resultados muito generosos para o paÃs no longo prazo.
Esse é o playground do Saboeiro. Estranho não pensar em Blade Runner, dentro daquela sala escura, de sons altos, barulheira, sons de tiros se misturando a Simple Plans. Sempre penso em Blade Runner nessas horas. Na lan house do Saboeiro, a ficção ganha cores cinzas, mas que são mais convidativas do que o cinema me fazia supor.
(1) LEMOS, Ronaldo. “Creative Commons: Quem foi que disse que precisa?†. Rumos_Brasil da música: pensamentos e reflexões. . Coordenado pelo Núcleo de Música. Itaú Cultural. São Paulo. 2006.
Bruno, muito legal o seu artigo. Parece que está começando a se consolidar a idéia de que as lan-houses são um dos fenômenos mais importantes acontecendo no Brasil no momento. Hoje mesmo esbarrei com esse outro texto publicado no blog PlugBR que trata da realidade das lan-houses a partir de uma visão participante.
O que mais me empolga é que acredito que existe um potencial para ocupação das lan-houses com serviços e atividades de caráter social ainda não explorado. Por exemplo, basta conversar com os donos para constatar que durante a manhã as taxas de ocupação são muito baixas (a garotada está na escola). Ao mesmo tempo, mães e pais freqûentemente vão às lan-houses perguntar se não há "cursos de informática".
É claro que qualquer projeto de utilização social das lan-houses não pode ser intrusivo, atrapalhando o modelo de negócios. Mas não custaria pensar no desenovlvimento de um "kit" de serviços e um programa de capacitação que permitisse aos donos aproveitarem melhor as horas de baixa procura. Um "kit" como esse poderia incluir programs e serviços de governo eletrônico, informações sobre busca de emprego, cursos para adultos e crianças e por aà vai. Mas tudo isso é idéia para uma conversa maior...
Quanto antes pensarmos formas de utilização das lan-houses, mais rápido avançaremos na inclusão digital.
Alê Barreto · Rio de Janeiro, RJ 18/2/2007 17:07muito bom, Bruno! Estou morando bem perto do Saboeiro, no Cabula. E realmente esse fenômeno de que você fala é surpreendente: as lan houses proliferam nas periferias de Salvador como um novo espaço de socialização jovem, dos 'bábas virtuais'. É mesmo uma luz no fim de um túnel de desigualdades...mas interessante perceber como a internet e o computador está chegando à s pessoas, principalmente os jovens dos bairros populares. Quem é que não tem um orkut ou msn? É longo o caminho pra inclusão digital, mas a galera é esperta e, como diz o povo de Salvador, 'tá ligada'!
Carol Garcia · Salvador, BA 18/2/2007 20:43
saca o garotão que mandou o outro pivete sair do pc? pois é, onde morava e na minha época, tipos como ele faziam isso. mas era por causa de uma bola chuveirinho.
e onde morava é bem perto do Saboeiro (Resgate rua 8)
Ronaldo,
Lembro-me da tua fala no FISL e o tom era um pouco: "deixem as lan houses em paz", porque elas estão fazendo a inclusão da molecada sem limites nem freios. Gostei daquilo, porque essa coisa de "equipamento público" acaba distanciando a molecada dos seus reais intentos: que é viver a vida.
Daà lembro do professor Nelson Pretto falando: "porra, o filho do pobre também tem que poder acessar o que quiser, o que o filho do rico acessa". O professor Pretto, lá da Bahia, que deve conhecer o Saboeiro que o Bruno descreve tão bem.
Mas, naquela ocasião, ouvindo você falar, Ronaldo, eu pensei que a gente podia aproveitar esse potencial das lan houses justamente para desenvolver uma polÃtica pública aberta - não controladora. E no ECCO falei isso para a galera, que faz a polÃtica de telecentros - e não percebi muita receptividade.
Aà te vejo escrever isso agora e fico muito feliz. Pensei Ronaldo, Bruno, pessoal, em algo próximo aos Pontos de Cultura. O Ponto de Conhecimento. Um edital, com uma grana, que resulta para os vitoriosos em um kit de ações, com o estÃmulo à adoção do software livre, com debates sobre a rede, sobre direitos autorais, tudo isso gerando uma rede social aberta e horizontal, conectando os equipamentos das periferias, as periferias, a molecada...Enfim, é nisso que fiquei pensando ultimamente.
Parabéns pelo texto Bruno. Quando a gente conectar toda essa moçada, a gente corre o risco de se tornar uma nação.
Oi Rodrigo, é isso mesmo. O interesse nas lan-houses é também porque existe um potencial de cidadania através delas que é muito importante. Saber aproveitar esse interesse, que é de todos os lados, pode gerar um efeito positivo muito grande. Aliás, a fala do FISL acabou indo parar no YouTube, nos links abaixo.
Grande abraço e valeu pelo comentário.
http://www.youtube.com/watch?v=mTuRs6kgNcY
http://www.youtube.com/watch?v=1l3JUskv7Zk
http://www.youtube.com/watch?v=PNCFl-ywSj8
Muito bom! E é impressionante como as lan houses estao espalhadas pelo Brasil. Potencial enorme, infra-estrutura já à disposição, só falta dar uma organizada na rede, aproveitar a estrutura pra levar isso a outro nÃvel, para além de Orkut e MSN. Taà um debate a ser realizado.
Paulo Fehlauer · São Paulo, SP 19/10/2007 01:25Já faz um bom tempo que li esse texto, e queria saber se alguma discussão foi iniciada sobre essa idéia de aproveitar a capilaridade das lan-houses para uma inclusão digital mais "consciente", digamos. Se não foi, adoraria iniciá-la. Alguém mais?
Paulo Fehlauer · São Paulo, SP 17/2/2008 15:01Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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