BATIDAS NO SANGUE

Felipe Abud
Iggor Cavalera, agora DJ, no último Ceará Music
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Felipe Gurgel · Fortaleza, CE
28/2/2007 · 278 · 10
 

O sobrenome carrega a força da música brasileira fora do País. Há 20 anos - quando do lançamento de Morbid Visions (1986) - os irmãos Max e Igor Cavalera pontuavam o início da discografia oficial do Sepultura. Um divisor de águas. Mais do que Sérgio Mendes, a bossa nova, ou o hype recente do Cansei de Ser Sexy, nenhum grupo ou artista solo do Brasil conseguiu até hoje a expressão que a banda mineira conquistou internacionalmente.

Sem os fundadores, agora o Sepultura caminha feito um gigante trôpego. Mantém o respeito e o assento na mídia, porém a história muda radicalmente. Em 2006, foi a vez de Igor (bateria) deixar o grupo - a exemplo do que fez o irmão, 10 anos antes. Em 96, Max Cavalera (voz e guitarra) teve saída conturbada depois de 12 anos à frente da banda. Passou a se comunicar com o irmão apenas por telefone. Para assuntos de família. Nada além disso.

Hoje, o Sepultura perdeu os dois alicerces. Max e Igor Cavalera se reencontraram, após 10 anos sem se ver, no último mês de agosto, em Phoenix (EUA). Ambos já desgarrados do grupo. Tocaram juntos Roots Bloody Roots e Attitude, clássicos da primeira fase experimental do Sepultura, em um evento beneficente promovido por Max. Na passagem de som, Igor mal conseguia segurar as baquetas de emoção. Os irmãos não evitaram o choro pela ocasião. E o reencontro marcou a projeção de uma retomada musical juntos. Hoje, eles sinalizam projeto novo para 2007, sem ainda dizer o quê.

Da bateria, Igor buscou inovar e recomeça a partir de uma carreira como DJ. Que iniciou despretensiosa. João Gordo fez um convite para o baterista discotecar no D-Edge, boate rock da noite de São Paulo. A brincadeira virou compromisso sério e agora Iggor - com um "G" a mais no nome artístico - roda o País ao lado da mulher Laima Leyton. Os dois programam juntos as bases que levam às pistas de música eletrônica.

Precoce, nascido em Belo Horizonte (MG), com apenas 16 anos Igor Cavalera gravou e lançou o primeiro disco do Sepultura. Seu estilo, autodidata, pesado, visceral e criativo, só evoluiu notoriamente. Cavalera é responsável por difundir uma "escola" técnica de bateria a partir de elementos tribais no rock. A experiência é clara quando se ouve Chaos A.D (1993) e Roots (1996), os dois últimos álbuns do Sepultura ainda com Max. Além dos 20 anos de Sepultura, Igor já tocou com Nailbomb, Strife e até com o Massacration - banda de metal escrachado cujos integrantes são apresentadores da MTV. É considerado um dos melhores do mundo com as baquetas às mãos.

No último mês de outubro de 2006, Igor esteve no Ceará Music, em Fortaleza. Em pouco mais de meia hora de entrevista, ele foi sucinto. Fãs no hall do Marina Park Hotel, a estafa de uma noite de discotecagem na madrugada anterior - sob as olheiras de sono que os óculos escuros escondiam - hora do almoço e vôo marcado de volta para São Paulo às 15h30. Tudo "contra". Igor Cavalera foi até paciente: contou com gosto das primeiras aptidões em vida, os primeiros passos do Sepultura e, sobretudo, da nova experiência como DJ. Um pouco de cada.

Pequeno, você já tocava tambor em partida de futebol. Como foi isso?
Igor Cavalera - Foi com seis, sete anos, que eu comecei a perceber que curtia mais bateria do que o resto das coisas. Comecei com o lance de brincar com meus amigos, meus primos. Ficar tocando.

O Max acompanhava?
Cavalera
- Também, também... Mas não tinha uma veia tão forte que nem eu. Ele curtia, mas não era pirado. Compramo umas peças (de percussão) e ficava brincando. Levava para o jogo de futebol. Meu pai era fanático e levava a gente para todos os jogos do Palmeiras (SP). A gente ficava batucando lá. Depois de um tempo fazendo isso, comecei a tocar mais bateria do que o lado mais percussivo mesmo. E a gente começou a falar com meu pai, com minha mãe, para eu entrar em aulas de bateria numa escola em São Paulo. Mas não gostei da aula. Era muita teoria. Não tinha muita prática. Com sete, oito anos, é uma coisa errada você ensinar para uma criança esse lado teórico. A criança, primeiro, tem que extravasar. E tocar mesmo, meu. Mesmo que toque tudo errado, tudo zoado. Você tá sentindo a bateria. Por esse lado, a experiência de ter aula foi meio negativa. Pelo fato de eu não curtir nada daquilo e nunca mais me interessar em tomar aula de bateria. Mas foi positivo, porque pensei: "vou ter que aprender, porque se eu for lá (na escola) não adianta porra nenhuma. Eu mesmo vou me ensinar a tocar bateria". Hoje, eu não colocaria meu filho na aula, se ele começasse a tocar bateria. A não ser que ele quisesse estudar.

Você e Max quando crianças já eram bem unidos. A morte do seu pai logo cedo contribuiu pra isso?
Cavalera
- Já era, meu. Uma coisa meio de berço. Perdi ele (o pai) com oito anos. Unificou, mas ao mesmo tempo já era. É um ano só de diferença (de idade, entre Igor e o irmão). Fazíamos tudo juntos. Desde curtir as mesmas coisas. Os mesmos esportes, mesmos sons, tudo. Então não foi isso que uniu geral, mas ajudou.

A idéia de formar banda vocês tiveram quando um primo levou vocês para um show do Queen, em São Paulo (1981). A idéia era entrar em um esquema grande como aquele que estavam vendo?
Cavalera
- Não, porque não existia, tá ligado? Hoje em dia, acho que a molecada tem essa vantagem de poder estruturar a banda um pouco melhor. Mesmo sem ter estrutura gigante, mas conseguindo várias coisas. Naquela época, não. A gente queria tocar. Não tinha uma visão de "vamo fazer uma banda para ser grande". Tinha um sonho que qualquer moleque tem quando tá no quarto fechado. De ser como o ídolo. De tá ouvindo um som e falar "puta, queria tá num palco, tocando com essa banda". Além disso, não. Mesmo porque o mercado não dava abertura para isso. Ter uma banda era uma coisa totalmente obscura.

Como eram os primeiros shows do Sepultura?
Cavalera
- Ah, era meio difícil. Porque ninguém nem entendia. Eram poucas pessoas que entendiam o que a gente tava fazendo. Não tinha um movimento de metal forte. Era uma coisa super underground. Que poucos moleques conheciam. E era isso: a gente xerocava uns cartazes, uns flyers. Espalhava com os amigos mesmo. Não espalhava em lugares onde as pessoas não iam nem entender o que a gente tava falando. Em umas lojas também...

Isso em Belo Horizonte...
Cavalera
- É. O mais estranho é que, se o Sepultura tinha dois fãs, os dois eram fanáticos. Não era aquela coisa de só dizer "ah, legal". Então pra gente já tava bom. A gente morava em Santa Tereza (bairro da zona sul de Belo Horizonte), e sempre se encontrava ali no Centro, perto da loja Cogumelo. Com uns "mano metal". E ficava lá curtindo. Essa loja era um dos pontos em que a galera se encontrava para trocar idéia sobre música. Mas não tinha um lugar de show. Era o que pintava: a gente conseguia alugar um lugar pequeno, se abria um festival de uma escola aceitando banda de fora a gente entrava também.

Logo na primeira turnê do Sepultura, com o Sodan (Alemanha), vocês já encontraram uma galera com a camisa da banda. Vocês começaram a perceber que o Sepultura estava chamando atenção lá fora pela procedência ou que as pessoas respondiam bem, independente do lugar que vocês vinham?
Cavalera
- Antes disso, já tava bem forte. O Sodan (banda principal da turnê) só veio a comprovar isso. Um mês de shows e todos lotados com neguinho pirando. Isso para a gente era um absurdo. A gente tocava aqui no Brasil tipo duas vezes no mês. Dois fins de semana. Então, fazer uma turnê daquela dimensão foi um susto. Tocando em tudo que era lugar e tudo lotado. Foi a primeira vez que a gente pisou fora do Brasil pra tocar. Não esperava, foi uma surpresa gigante. A gente lia, na história, que a banda de abertura só se fode, ninguém conhece, nêgo joga tomate. Então tínhamos a visão de que ainda não ia ser do caralho. O Sodan já tinha tocado com várias bandas e nós éramos só mais uma que ia tocar ali, fazer um showzinho e nada ia acontecer. E os caras foram engolidos numa turnê que era deles. Por uma banda super desconhecida. Mas que já tinha os fãs muito fanáticos. Isso assustou.

Qual foi a bronca mais difícil de segurar quando Max saiu do Sepultura?
Cavalera
- Foi uma coisa natural que aconteceu. De se desentender mesmo, achar que um não tava certo e cada um seguiu seu caminho. Não tinha uma bronca em si. Mas não adiantava forçar uma situação. Não tinha porque continuar. Tinha alguns shows que eu já ia cancelar de qualquer jeito, porque minha filha tinha nascido. Havia uns shows na Austrália e a gente ia chamar outro batera. Eu ia ficar em casa. Mas não rolou isso. A gente cancelou todo o resto da turnê e foi pra casa esfriar a cabeça.

Hoje muita gente tem considerado o Dante XXI (2006) como o melhor disco do Sepultura com o Derrick (Green, atual vocalista). E você saiu da banda nesse momento. Discorda dessa avaliação?
Cavalera
- Não consigo, nem antes com o Max, pensar "ah, esse disco é o melhor". Consigo pegar várias músicas em cada disco e fazer uma compilação. Não consigo ver que um disco só seja melhor que os outros.

Quando se afastou da turnê em 2005 já tinha decidido sair da banda?
Cavalera
- Não, eu tava querendo dar um tempo. A decisão de sair veio justamente com o lance de calhar deles não quererem dar esse tempo. E eu precisar disso. Puxar o freio de mão em tudo.

Mas já rolava essa história de DJ...
Cavalera
- Era um lance mais de zoeira. O (João) Gordo me chamou para tocar algumas vezes no D-Edge (boate), em São Paulo. Faço scratches. Toco com MPC também, que é um sampler, uma bateria eletrônica que fico fazendo uns beats em cima do disco. O lado mais legal de discotecar é o que estou com fazendo com a Laima (Leyton), minha mulher. A gente produz várias bases juntos. Discoteca junto também. É um tempo que para mim está sendo super válido. De passar com ela, de viajar junto. E fazer também uma coisa que eu curto, tanto quanto tocar bateria.

E seus filhos ficam com quem?
Cavalera
- Normalmente quem segura a onda é minha mãe e a mãe da Laima. Faz bate-e-volta. Adoraria vir pra cá e ficar pelo menos uns três dias de festival curtindo. Mas a gente chegou ontem à tarde e tá indo embora daqui a pouco.

É esquisito ser apresentado como DJ agora?
Cavalera
- No começo era mais de zoeira, mas hoje em dia a gente consegue ter um pouco mais de seriedade nisso. Encarar isso como uma coisa que, para mim, é super respeitável. Vejo que não é só tocar os discos - não só discotecando, mas tem os lances de fazer as mixagens. Trato a pick-up como se fosse outro instrumento. E acho 10 mil vezes mais difícil do que tocar bateria. De arranjar as músicas, colocar no tempo. É um desafio muito maior. E mais prazeroso por isso também. Depois de 20 anos eu procurei alguma coisa que me desafiasse.

E de certa forma você tem conseguido algum espaço como DJ...
Cavalera
- É legal. Lógico que tem todo o lado do nome, de ter feito o que eu fiz. Mas o lance é do caralho porque você aqui (no Ceará Music), por exemplo, toca com DJ´s como o Patife, o Snoopy, DJ´s de fora. Tem um pouco do lado do nome (Igor Cavalera), mas também o de mostrar o que a gente acha "novo" de música, hoje. Então, é super válido chegar até aqui, encarar horas de vôo para fazer isso.

Algo dessa experiência como DJ vai ser aproveitado no projeto em que você está maturando com Max para 2007?
Cavalera
- Não tem nada certo. Como falei antes, estou curtindo muito mais esse momento. Pode ser que para mim no futuro, como músico, isso possa acrescentar. O nosso estudo é bem vasto. A gente está aprendendo a fazer várias coisas, de mexer mesmo com a música, de importar beats, fazer outras coisas. Acho que isso já é super válido em qualquer experiência que eu tiver como músico adiante. Por enquanto, essa história de DJ tem dado muito mais trabalho do que a gente imaginava. Toma bastante tempo. Tô sem previsão de fazer nada, além disso. Lógico que pinta alguns projetos, convites de amigo, mas nada mais sério. Para mim, o mais sério, hoje, é estar tocando com a Laima.

Você e Max passaram 10 anos afastados musicalmente. Mas ainda tinham contato enquanto irmãos. Como tem sido essa retomada musical?
Cavalera
- Só fui lá (em Phoenix, nos Estados Unidos) para cruzar com ele como irmão, calhou da gente tocar junto e o lance mais importante foi isso. Se encontrar. Independente da música, de bandas. Minha mãe (Vânia Cavalera), hoje em dia, está curtindo muito mais a família, os netos. Ela tá com bastante netos, então a gente vê isso na cara dela. Com todos os filhos juntos, esse lance do Sepultura vem bem depois da família.

O lance da marca de roupa (Cavalera), como anda?
Cavalera
- Fui um dos sócios por um tempo, depois vendi a minha parte. E hoje em dia eu e a Laima desenhamos algumas peças para coleções da Cavalera. É um lance legal pra caramba também. Sempre gostei de estar envolvido com marca de roupa. Então estou aproveitando o lado mais prazeroso da marca, de contribuir com desenhos, do que o (lado) de ser sócio.

Há 10 anos, você dizia que o fato de ser considerado "um dos melhores bateristas do mundo" dependia muito da evidência do nome do Sepultura. E hoje?
Cavalera
- Acho que continua a mesma coisa. Nas votações, principalmente nas revistas especializadas. Mas não me vejo como o melhor baterista. Lógico que tem algumas coisas que fazem você se sobressair sobre o resto. Mas, normalmente, o baterista que está com uma banda em evidência, a galera já vota na banda inteira: no vocalista, no guitarrista também. Então, não levo tão a sério esse lance da votação. É lógico que tem todo um outro lado da molecada que já toca e consegue entender a diferença entre bateristas. Acho que, para quem é músico, em geral, vai mais pelo feeling da banda de quem acha melhor. Mas não tem como não curtir ser referência para quem está começando. O fato de eu vir ao Ceará discotecar. Já tinha vindo aqui para tocar com o Sepultura. Tudo isso é super importante.

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Débora Medeiros
 

Taí, tava sem ter notícias do Sepultura e dos irmãos Cavalera já há algum tempo. Gosto muito da banda, principalmente da fase em que os dois estavam nela.

Bela entrevista, muito ampla, com perguntas inteligentes. E pensar que você conseguiu arrancar tudo isso do homem que
tava morto de cansado e doido pra ir embora!

Só uma coisa que notei:

"Compramo umas peças (de percussão) e ficava brincando."

Essa frase ficou muito estranha. Ele disse assim mesmo?

Abraços!

Débora Medeiros · Fortaleza, CE 28/2/2007 12:49
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Felipe Gurgel
 

Oi Débora, foi isso mesmo. Valeu pelo retorno, tanto por aqui como na matéria do Plastique Noir. Beijão =)

Felipe Gurgel · Fortaleza, CE 28/2/2007 18:59
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André Gonçalves
 

muito boa entrevista!

André Gonçalves · Teresina, PI 2/3/2007 07:21
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Diana Melo
 

bons tempos do sepultura com o igor e o max... mas o igor é um cara competente e cheio de qualidades que sobrevivem ao divino fantasma de seu ex-trabalho. bom saber o que ele anda fazendo. adorei a entrevista. beijo.

Diana Melo · Fortaleza, CE 2/3/2007 17:11
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Thiago Perpétuo
 

Acho que o mais incrível disso tudo é que, em épocas idas, em minhas incursões mais profundas pelo esquema metal - com direito a blusas de banda, cabelos longos, etc -, era absolutamente inadmissível ser “metaleiroâ€, “headbengerâ€, "Trueâ€, e chegar perto de qualquer tipo de música que soasse "eletrônica". Isso, à época, era coisa de playboy, de poser, de moleque... pelos deuses!!! Hoje sinto-me muito feliz em dividir meu som entre o “Beneath the Remainsâ€, com “Exit Planet Dustâ€, do Chemical Brothers...

Thiago Perpétuo · Brasília, DF 2/3/2007 19:22
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SILVASSA
 

e o Soulfy. acaba?

(porra é uma puta banda!!)

SILVASSA · Salvador, BA 2/3/2007 22:14
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Felipe Obrer
 

A quem passar por aqui sugiro, sem desmerecer as idéias do Igor Cavalera, uma olhada no que pensa Benjamin Taubkin, menos conhecido do grande público, mas quem sabe relevante.

Felipe Obrer · Florianópolis, SC 3/3/2007 12:52
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Barba
 

Gostei bastante. Só um pequeno detalhe: o Santa Tereza fica na Zona Leste de Belo Horizonte. Perto da Centro-Sul, mas é Leste :)

Barba · Belo Horizonte, MG 3/3/2007 17:05
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Felipe Gurgel
 

Obrigado pela correção, Barba =)

Felipe Gurgel · Fortaleza, CE 3/3/2007 17:55
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xYURIx
 

muito boa a informação!!em boa hra!!!
xxx

xYURIx · Aracaju, SE 3/3/2007 22:21
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