O Ticumbi, ou baile de Congo de São Benedito, é uma manifestação religiosa e cultural que acontece em Conceição da Barra, Espírito Santo, nos dias 31 de dezembro e 1 de janeiro. Mas a festa começa antes, com os ensaios que o grupo comandado pelo Mestre Terto (Tertuliano Balbino) realizam a partir de outubro até dia 30 de dezembro, último e especial ensaio.
O último ensaio do Ticumbi é sempre especial: esse ano começou às 18h, com a saída do velho ônibus fretado da frente da casa do Mestre Terto, em Conceição da Barra, rumo ao sítio e casa de Tião de Veio, às margens do Cricaré. O sítio é cercado de mata e águas do rio. Em volta do galpão onde o ensaio se realizou os integrantes do Ticumbi, do Reis de Bois - comandado por Tião de Veio - e os convidados disputam espaço com vira-latas, perus, galinhas pé-duro e porcos no quintal de chão batido e areia.
O primeiro ensaio é dos donos da casa, o grupo de reis de bois do Mestre Tião de Veio. O ensaio de reis foi impressionante e emocionante para quem, como eu, nunca tinha visto ao vivo uma apresentação de reis e não entendia o sentido da manifestação. O canto inicial, feito diante da porta fechada, é de profunda beleza, quase um mãntra espiritual. Depois a porta é aberta eles entram e ensaiam todos os cânticos e danças do reis. Embora eles não estivessem paramentados, os cantos e danças impressionam.
Depois dos donos da casa é a vez do Ticumbi de São Sebastião ensaiar. Foi também meu primeiro contato com o auto. Todas as informações que eu tinha sobre o Ticumbi viraram poeira diante da força dos versos, das danças, da batida dos pandeiros e da representação falada dos reis, secretários e embaixadores.
A história que se desenvolve no auto do Ticumbi é a da disputa entre o Rei de Congo e o Rei de Bamba pela primazia de fazer a festa de São Benedito. Essa disputa se dá pela palavra (por meio dos diálogos rimados entre os personagens), da coreografia (que simulam lutas) e das músicas. Nos diálogos do auto, fatos contemporâneos da política local e nacional se misturam aos fatos históricos e à devoção de forma às vezes jocosa, fazendo rir os assistentes.
Ao fim do ensaio o galpão virou pista para um animado forró que durou até o dia amanhecer e os barcos chegarem para levar os participantes para Conceição da Barra. Durante a madrugada, além do forró e da pinga, os donos da casa serviram um farto jantar, muito café e biscoitos maria. E o papo rola solto: os contadores de causos sempre a postos para desvendar os segredos do Ticumbi para os visitantes ou para relembrar velhas histórias da comunidade. No Ticumbi de São Benedito todos os integrantes são descendentes diretos dos quilombos que se instalaram na região e velhas histórias é o que não falta para passar o tempo da longa noite de espera para cumprir a devoção ao santo.
Pela manhã, insones, os velhos senhores desceram a ribanceira do rio para um banho coletivo e a troca de roupa: a camisa suada do forró foi substituída pela camiseta branca oficial da festa. Agora é esperar os barcos. Os fogos avisam ao pessoal da comunidade de Barreiras, localizada rio acima, que logo o Ticumbi estará lá para pegar o santo, que está sob a guarda da comunidade e do jongo das Barreiras, e levá-lo de volta à sua igreja, em Conceição da Barra.
A chegada dos barcos atrasou um pouco. Na beira do rio Mestre Terto fitava a direção da barra com ar preocupado. Mas a chegada deles, enfeitados de bandeirolas coloridas, desfez toda preocupação e todos embarcaram, inclusive os visitantes e curiosos que tinham enfrentado com eles a madrugada de festa e fé, rumo a Barreiras, rio acima, onde o pessoal do Jongo espera na margem para também embarcar com o santinho preto de “oinho miudinho”, como eles costumam se referir ao santo.
Em Barreiras todos saem dos barcos e vão cantando e dançando até a igrejinha da comunidade, onde o santo está hospedado. Voltam com a imagem e o povo da comunidade canta:
São Benedito vai simbora
Vai visitar Nossa Senhora
Assim, o povo do Ticumbi, do Jongo, os moradores e visitantes desembarcam no cais de Conceição da Barra e são acompanhados pela multidão, reunida à espera do santo, até a igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição, onde o Ticumbi vai buscar outra imagem do santo para levar até a igreja de São Sebastião, do outro lado da cidade.
Essa caminhada foi feita já debaixo de um quente sol de verão. Eu, cansada e sem dormir desde a manhã anterior, não conseguia parar de pensar em como aqueles velhos senhores conseguiam forças para uma maratona daquelas, que estava apenas no início, já que festa duraria ainda até o final do dia 1 de janeiro. Durante todo o dia 31 os integrantes do Ticumbi cumprem as visitas às casas dos festeiros, que são moradores da cidade que recebem o Ticumbi com almoço, lanche e jantar.
No dia seguinte, primeiro de janeiro, a maratona recomeça. Logo cedinho os congueiros estavam na igrejinha de São Sebastião, desta vez paramentados com as roupas típicas do Ticumbi, que é branca e muito rica em rendas, fitas e flores coloridas.
Dia primeiro de janeiro é o grande dia para o Ticumbi de São Benedito. A missa na igreja é dedicada ao santo e tem participação efetiva dos congueiros. A apresentação é de gala. A TV está lá gravando e os congueiros são os astros. O povo em volta faz roda para o início da apresentação, que dura mais de uma hora.
Na hora do almoço perguntei ao Mestre Terto: de onde vocês tiram tanta força para tudo isso? Ele apontou para o céu e me olhou nos olhos: de lá, disse. Eu pensei cá comigo que só mesmo uma força divina pode manter esses senhores com idade média de setenta anos de pé, cantando e dançando, durante três dias seguidos, sempre com a alegria no rosto e disposição para responder às perguntas bobas como a minha.
A festa seguiu pela tarde adentro, com o Ticumbi indo de casa de festeiro em casa de festeiro e culminou num animado forró na casa da última festeira a receber o Ticumbi, dona Rosa Dealdina. Mas dessa parte eu não participei: apesar de estar hospedada na casa de dona Rosa, quando o forró começou o sono já havia me vencido e nem mesmo a sanfona e o arrasta pé na varanda me despertaram.
(quer ver mais fotos do Ticumbi?)
Lindo relato, Claudia! Já tinha visto o vídeo, que dá uma amostra de uma pequena parte disso tudo que você conta. Deve ser uma experiência inesquecível. Só não ficou claro pra mim se é uma manifestação que já foi descoberta pelo turismo (pelo seu relato e pelas fotos, parece que não). Imagino que vá gente do Espírito Santo para ver, mas tem gente de outros estados também?
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 28/3/2008 18:24
Helena, realmente, o Ticumbi é mais conhecido pelo pessoal daqui. Não existe muita divulgação da manifestação fora do estado. Mas alguns estudiosos da música já descobriram os caras. É o caso do Stasi, do Duo Ello, de São Paulo, que estava lá no ensaio e na festa e vem fazendo isso durante anos.
Os turistas que estavam veraneando em Conceição da Barra (a maior parte mineiros do interior) parece que nem ouviram falar do Ticumbi. Acho que a cidade fez uma opção de turismo bem estranha, oferecendo aos turistas trios elétricos e ignorando as inúmeras manifestações culturais do município. A festa de São Sebastião e São Benedito em Itaúnas é um exemplo disso: mais de 15 grupos folclóricos festejando pela Vila de Itaúnas durante 3 dias e pouquíssima divulgação dessa riqueza toda. Vá entender isso!
Emocionante e belo.
Obrigada por nos contar.
beijos
Grande Ilha! Grande!
Estava também, mesmo sem cobrar, esperando ansioso esta matéria. Tinha visto o material que você mandou, assim, aos capítulos. Sou completamente apaixonado por estas coisas, você já sabe. O mais engraçado que é uma paixão assim meio esquisita porque, mesmo sendo filho de capichaba, nunca fui ver o Ticumbi daí de perto. Ficava só lendo e vendo vídeos.
Esta de ler, contudo, vai me servir para alguma coisa agora porque, vi num livro angolano que tive (sumiu!) do etnólogo angolano-lusitano Óscar Ribas que o Ticumbi acontece em Luanda, quase como ocorre aqui. Ele fala de uma origem africana bem remota de um rito de passagem no qual os homens se vestem de noivas (vi uma foto com aqueles mesmos lencinhos enfeitados na cabeça do Ticumbi daí)
Li também (no livro do Luiz Edmundo 'No tempo dos Vice Reis') que Ticumbis praticamente igualzinhos a este daí, ocorriam na Corte do Rio já quando D.João VI chegou, em frente ao Paço, ali na Praça XV.
No seu texto uma boa novidade pra mim foi o enredo deles, que eu não sabia que era o mesmo, até hoje, aliás, como algumas congadas dali do 'nariz' de Minas, entrando em Goiás também fazem.
Me animei. Vou catar o livro do Óscar Ribas na internet. Vai que reencontro o fio da meada deste tema tão candente para quem é brasileiro.
Abs
Spírito, segundo o que consegui pesquisar sobre o Ticumbi, esse nome, aqui no estado, foi dado pelo pesquisador e historiador Guilherme dos Santos Neves, que o tirou de uma das partes do auto (não sei se exatamente da parte em que eles cantam o verso: "Aruê, meu Ticumbi". Originalmente o nome da manifestação era baile de congo de São Benedito.
Não entendo todas as referências dos versos, mas me parece que tem a ver com a luta de Mouros e Critãos, assim como o Alardo, outra manifestação cultural da região.
Aproveito para consertar um erro no texto, que só agora vi: a igreja onde é realizada a festa é a de São Benedito, e não de São Sebastião, como escrevi. Façamos justiça ao Santo! A igreja de São Sebastião fica em Itaúnas, distrito de Conceição da Barra onde se realiza a festa de São Benedito e São Sebastião e o festival de folclore, em meados de janeiro.
Ilha,
Muito curiosa a sua informação sobre o nome da manifestação. Não conheço as alegações do Historiador Guilherme dos Santos, mas, receio que elas tenham algum outro fundamento, além deste que você citou. O assunto é muito complexo mesmo, mas, algumas coisas estão já perfeitamente comprovadas e estabelecidas. O baile de Congo de São Benedito daí do Espírito Santo, por exemplo, tecnicamente, pode mesmo ser chamado de Ticumbi - e não só por causa do verso do ponto não.
Congadas (ou Congos) como já sabemos, é um nome genérico que se dá a uma manifestação só, composta por um sem número de Danças 'de preto'(como se diz) espalhadas por este Brasil. Do pouco que sei, estas danças são todas aparentadas, variantes que são de uma matriz cultural localizada, exatamente, num lugar que hoje chamamos de República Popular de Angola (e adjacências). A razão é óbvia: A maioria esmagadora dos escravos do Brasil, vieram desta região.
Pouco se fala disto porque existe na Academia o que chamo de ‘reducionismo Nagô’ que atribui tudo da cultura negra brasileira ao Candomblé bahiano-nigeriano, desvio fruto dos equívocos racistas de Nina Rodrigues e quejandos, fazer o quê?
Historicamente, a origem social desta manifestação das Congadas (caracterizada pelos seus diversos tipos de dança) guarda talvez (eu acho), de um lado, uma forte ligação com práticas diplomáticas africanas muito antigas e comuns nas culturas do continente, notadamente, na região etnolingüística conhecida como 'área bantu' (embaixadas guerreiras ou diplomáticas marcadas pela curiosa utilização protocolar de música e dança). Pois é desta primeira vertente, ao que parece, que nasceu o auto teatral africano (por ser o enredo, típica e literalmente, africano) 'Ticumbi', descrito por Luiz Edmundo (exatamente, com este nome) no livro que citei acima.
Por outro lado, esta prática das Congadas 'africanas' (Ticumbis) parece, pelo que se diz por aí, ter sido utilizada (ou tolerada) pela igreja católica, como instrumento de evangelização e catequese (aculturação), desde que sincretizada, misturada à manifestações de rua típicamente européias (como as procissões e as quermesses, por exemplo).
É desta segunda vertente, digamos, 'católica' que algumas Congadas (não todas) assimilaram este enredo da Luta dos Mouros e Cristãos que, pelo que pude constatar, vem do livreto medieval europeu denominado, se não me engano, "Carlos Magno e os doze pares de França' (um épico popular em versos, sobre as Cruzadas) , muito usado pelos jesuítas (ous eriam os capuchinhos?) como material didático em sua evangelização, pelo menos a partir do século 18. O livreto (que é na origem, pura literatura de cordel) famosíssimo no mundo colonial de então, virou um best seller, passando a ser o enredo deste tipo de Congada, enquanto o outro enredo, o ‘africano’, foi desaparecendo, sincretizando-se.
O Ticumbi angolano que citei (o do Óscar Ribas, o das ‘noivas’), contemporâneo que é deste nosso aí do ES, deve ser uma mistura parecida (mas nunca igual) pois, a influência da cultura portuguesa em Angola (em Luanda), é tanta (ou até maior) quanto a que ‘sofremos’ aqui no Brasil. Curioso é que o figurino do Ticumbi de lá, é idêntico ao daí. Impressionante.
Complexa –e esperta- a nossa diversidade, como podemos ver.
(Desculpa aí...quase fiz uma outra matéria. É que já tinha estas reflexões prontas, no meu livro)
Grande abraço
Que bela manifestação cultural, fiquei com vontade de conhecer quem sabe um dia! Belo, belo, votado com muito prazer
bjs
sinva
Muito bom!!!
Viva a pluralidade cultural!
http://www.overmundo.com.br/overblog/graffiti-na-galeria-do-conjunto-cultural-da-caixa
oi Ilhandarilha: adorei o relato de todos os momentos da festa - acho que seu texto poderia ser o início de várias coberturas nacionais: uma sobre festas para São Benedito e Nossa Senhora do Rosário (já vi várias, e muito diversas entre si, em todo o país: o marambiré do quilombo do Pavocal no município de Alenquer (perto de Santarém, Pará) ou no maçambique da cidade de Osório no Rio Grande do Sul) - mas formidável mesmo seria uma série (quase infinita, por certo) descrevendo todas as festas de santos que acontecem pelo Brasil afora!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 1/4/2008 01:51
Ilha, que bom, duas vezes bom
a) a receptividade - demorou tão pouco na fila de votação;
b) as solictações de mais e mais.
E assim nos convence de que nenhuma guerra acabou crença alguma, que a beleza, a vontade, o desejo do belo vai triunfar.
um abraço, andre
Relato muito interessante, assisti ao Congo na Barra do Jucu há alguns anos, coisa de apaixonar. Este de Conceição da Barra que você conta nos detalhes deu água na boca. Abraço.
Regina - poesia em volta · Volta Redonda, RJ 1/4/2008 09:37
Spírito, isso do nome do Ticumbi ter sido introduzido por Guilherme Santos Neves eu tirei desse texto do Rogério Medeiros. O Rogério é jornalista e fotógrafo que recebeu também o título de vassalo do Ticumbi, devido ao seu trabalho de pesquisa e divulgação da manifestação, que já dura anos. É dele quase todo registro fotográfico do Ticumbi até os anos 90, quando outras pessoas começaram a se interessar pelo baile de congo.
Hermano, acho a idéia de fazermos aqui uma espécie de levantamento e registro de relatos das festas de santos "dos pretos" que ocorrem no Brasil muito boa. Aqui tínhamos, até meados do sec. XX, uma irmandade do Rosário muito forte. Os relatos das festas antigas realizadas pela irmandade são muito ricos. Pena que essa tradição acabou, ou pelo menos se tornou inexpressiva. O forte aqui hoje é a festa da Penha (que aliás terminou ontem), padroeira do estado.
É a grande festa religiosa do estado. Apesar de ser totalmente comandada pela igreja, há manifestações em comunidades isoladas, como a de Roda D'àgua, em Cariacica, onde a padroeira é festejada com o Congo de Máscaras. Dizem que a tradição do Congo de Máscaras veio do fato dos escravos fugidos quererem prestar sua homenagem à santa e inventarem as máscaras para não serem reconhecidos durante a festa. As máscaras e uma estranha indumentária de folhas de bananeira tornavam impossível a identificação dos participantes do congo. Até hoje roupas e máscaras são usadas em Roda D'Água na ocasião da festa da Penha. A banda do Congo de Máscaras tem ainda um outro diferencial em relação às bandas de congo do estado que é o fato do Mestre usar uma espécie de megafone artesanal feito de folha de flandes para "puxar" a cantoria. É bem bonito de se ver.
Em tempo: entrei agora no link do marambiré e não é que as roupas e enfeites são muito parecidas com as do Ticumbi? Interessante isso, não? Como já disse o Spírito, essa conexão deve ser mesmo via Ticumbi Angolano.
Ilhandarilha · Vitória, ES 1/4/2008 13:10
Que coisa linda essas fotos e as manifestações religiosas dos Quilombolas. Esses espaços são importantes para divulgar e sensibilizar as pessoas quanto as comunidades afrodescendentes.
Um abraço cheio de nuito axé.
João Everton
Já tinha visto as fotos e ouvido relatos esparsos diretamente de ti, nos e-papos em tempo real, Ilha, mas agora fiquei contente ao ver tudo condensado nessa colaboração...
Além disso, pude ver que gerou comentários bem mais relevantes que este meu.
Beijo e até já,
Felipe
Ilha,
Que beleza este seu trabalho de divulgação de "O Ticumbi, ou baile de Congo de São Benedito", tudo o mais já foi dito nos comentários acima.
Excelente!
Abs
Beto
Fui lá no texto do Rogério Medeiros que você linkou citando a versão sobre o nome do Ticumbi.
Permita que eu volte ao asunto porque ele, embora não pareça, tem uma importancia fundamental neste caso.
Ticumbi, Cacumbi e Cucumbi são, na verdade a mesma palavra para denominar aquelas danças 'aparentadas' sobre as quais eu falei. Etmologia é uma das chaves principais para o estudo destas coisas. A palavra origem de tudo é Nkumbi, que vem de uma língua angolana (preciso conferir se é Kimbundo, Mbundo ou Benguela). Todas estas línguas, gramaticalmente semelhantes costumam ser declinadas com prefixos, dos quais o 'Ka' é o diminutivo e 'Ku' o infinitivo. o 'Ti' é, certamente, um destes prefixos(posso verificar). No caso do 'Ka', observei que toda manifestação original, recebe aqui o prefixo diminutivo, como uma espécie de chancela de que 'sucedâneo' do original (é o caso de Ka-Ndombe, que deu em Candomblé aqui no Brasil)
O importante da história, como sugeri acima, é que neste campo, praticamente tudo está a ser pesquisado sobre o assunto por culpa de um formidável equívoco, muito recorrente em nossas ciências sociais que é desconhecer que a história e a cultura do negro brasileiro não se inicia quando ele chega aqui, escravizado, ela é muito anterior a isto, anterior até à própria existência do Brasil. Sem estes nexos com a cultura negra lá na África, não se conseguirá compreender absolutamente nada, virando tudo estas vagas suposições e especulações espalhadas aqui e ali por honestos, porém (nem sempre, é claro) equivocados estudiosos.
Desculpe insistir neste ponto, mas, considero necessário e urgente que aspectos de nossa cultura tão importantes, como este que você tão bem levantou, se encaminhem para um rumo, cientificamente mais lógico.
Abs
Spírito, contribuição bem rica essa sua. Por não entender essas conexões é que a gente acaba agindo e pensando com a ótica eurocentrista, esquecendo que outros possibilidades de civilização existem.
Veja se acha esse material sobre o Ticumbi de Angola. Não fazia a menor idéia de que esses prefixos eram declinações verbais (para nós ocidentais os sufixos é que são declinações, né?). Grande aula! Isso vai entrar no seu livro?
Ilha,
Na verdade isto (esta crítica a ótica eurocentrista de nossas ciências sociais) é o cerne do livro. Andei garimpando hoje e descobri coisas mais 'viajantes' ainda (o tema é, como já disse, apaixonante e quase que totalmente virgem no Brasil). Achei a pista do livro na internet mas, do texto em, si, nada. Amaldiçoei mil vezes a pessoa que surrupiou o meu livro do Óscar Ribas que, lembrei agora, se chama "Izomba".
O tema geral do livro - do qual me lembro bem- é que me deu este insigth sobre esta dicotomia no estudo da cultura negra brasileira (que afinal , devia ser tratada como cultura brasileira, simplesmente, né?). Veja só: "Izomba' é um livro que trata de associativismo e recreativismo na cultura tradicional angolana, desde o século 19. Fala portanto da ancestral tradição angolana de se organizar em sociedades secretas (como o Jongo que -pasme- antes de tudo, na origem, É isto: Sociedade secreta). Fala também de grupos culturais específicos (feitos para praticar certos tipos de dança ou de música), grupos de ajuda mútua (como irmandades) e etc. Me lembro de ter visto no livro fotos de antigos carnavais em Luanda, da década de 40/50 (entre as quais vi este que se veste - e se denomina- igual ao nosso Ticumbi). O Gancho do meu raciocínio é simples: Izomba/Kizomba = Associativismo, sacou? Abrindo a cabeça, abre-se um mundo de possibilidades de estudo. Do TiKunbi se pode descortinar um mundo cultural bem complexo. Over.
Bem. Parece que este é o caminho das pedras. Quem quiser seguir, é só abrir os olhos e o coração.
Abs
Spírito, não consigo lembrar do nome dos autores, mas (não sei se já falei nisso também) li um livro chamado "Crítica da imagem eurocêntrica". Vale a pena procurar no google. Acho que tem muita a ver com sua pesquisa, embora fale mais da questão da imagem.
Ilhandarilha · Vitória, ES 14/4/2008 00:03
Vou lá agora mesmo.
A propósito, já aprontei o post 2 da série do 'Crioulo doido. Deve se chamar 'Jongo, Jinongo' ou algo assim. Quando ostar eu te dou o link.
Abs
Ilha,
Voltei - questão de ordem! -:)
Revirando meus alfarrábios procurando não sei o que, achei um release do filme 'Ticumbi' de 1977/78 de um importante documentarista da época chamado Elyseu Visconti Cavalleiro (um especialista em curtas sobre folclore). Acho que você conhece.
Transcrevo parte (trechos interessantes) do texto pela curiosidade de se comparar com o seu, um relato de, exatos, 30 anos atrás:
"... Registro da festa do Ticumbi como se apresenta na cidade de Conceição da Barra, Espírito Santo, executada pelos remanescentes do quilombo local, notável pela pureza étnica... São 16 personagens e um violeiro, que cantam e dançam ao som de vigorosos pandeiros de influência árabe...A participação na dança é vitalícia e é regida por hierarquia no quilombo. Cada personagem só é substituido por invalidez ou morte, geralmente por seu filho ou parente próximo...O Ticumbi ou baile de Congo é uma dança dramática que só ocorre nonorte do Espírito Santo não se confundindo com nenhuma congada ou congo do resto do país (o que não é verdade). Sua origem remonta à época da escravatura quando o escravo Rogério fundou o Quilombo de Santana, nos arredores da atual Conceição da Barra...Os 17 membros participantes pertencem ao que resta deste quilombo, sendo interditada a participação de brancos e forasteiros... Postados à frente de Chico Dantas, o violeiro de 79 anos que há 62 anos brinca o Ticumbi"
O texto, ao que parece é de Ana Teresa Lemos Ramos e foram consultores do filme os folcloristas Hermógenes da Fonseca e Rogèrio Medeiros.
Seria uma boa resgatar este filme (tomara que esteja no acervo de alguma TV Futura ou Canal Brasil da vida)
Abs
O folclorista Hermógenes (já falecido) era um estudioso entusiasmado das coisas da terra, especialmente do norte do estado. Tem estudos tanto na área das manifestações folclóricas quanto da arte e do artesanato, bem como das comidas típicas. Adoraria ver publicada parte do material que ele recolheu nos anos em que viveu. Tinha um sítio às margens do Cricaré onde recebia quem chegasse com seus casos sobre a tradição cultural de Conceição da Barra. Rogério Medeiros ainda está na ativa, é fotógrafo dos bons e responsável pela maior parte das imagens do Ticumbi que a gente encontra. É jornalista até hoje e edita o Século Diário, jornal online muito bom. É, também, vassalo do Ticumbi de São Sebastião, esse a que o documentário se refere, e conquistou esse posto graças ao acompanhamento initerrupto que faz do Ticumbi.
Mas existem outros Ticumbis na região, o de Itaúnas e o do Bongado (tem fotos deles no post Benedito e Sebastião). Enquanto que no Ticumbi de São Benedito as coisas ocorrem exatamente como o documentário conta, nos outros já existe uma flexibilidade maior. O Ticumbi de Itaúnas, por exemplo, tem congueiro branco. Outra diferença é no som deles: o de Itaúnas é mais livre, mas cheio de influências, conforme dá pra sentir aqui. O de São Sebastião é mais tradicional e parece não ter sofrido modificações significativas.
Acho que já vi esse filme, mas não tenho certeza. Valeu pela dica. Vou procurar.
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