Borboletas e Guarda-chuvas

Marcelo Cabral
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Marcelo Cabral · Maceió, AL
2/7/2007 · 312 · 21
 

11:00

Eram 11:00 da manhã quando cheguei de Maceió até Piaçabuçu (única palavra que conheço com dois ç), nas margens próximas da foz do Velho Chico, rio que nasce mineiro e morre no mar meio alagoano, meio sergipano, e serve de divisa natural entre os dois estados.

Ali na beirada do São Francisco, onde as mulheres lavam as roupas da cidade nas escadas banhadas de água salobra, olhei para o rio e lembrei que tinha saudade dele, das suas ilhas logo ali, de ver Sergipe do outro lado, e as dunas brancas do seu final. Pensei “eu gosto muito mesmo daquiâ€.

Nas águas do São Francisco passou um desses barcos que chamam por lá de Borboletas, pelo formato quadricular de suas duas velas, e que deu nome ao filme da Professora Vicentina Dalva Lyra de Castro.

“Dalvinhaâ€, como muitos a chamam, é a realizadora em Piaçabuçu de um dos filmes do projeto Revelando os Brasis, que leva o cinema pra cidades com menos de 20.000 habitantes, desde a sua concepção até o circuito de exibição que realiza uma caravana por vários municípios selecionados em todo o país.

A história do filme conta o interesse de um menino, Pedrinho, pela construção dos barcos que navegam por aquele rio, levando gentes e coisas e pescando peixes e mariscos. Pedrinho procura mestre Galego, artífice fazedor de barcos da região que pratica e repassa este ofício na zona rural de Piaçabuçu. Um filme com uma linguagem poética simples e bonita, onde a estética e as cores do lugar foram captadas de forma muito verdadeira. Um artesanato ribeirinho áudio-visual.

12:30

Depois de comer uma arabaiana com pirão no Santiago, fui pro hotel tirar o pó da estrada do couro e encontrar o pessoal do projeto Revelando os Brasis. Eles estavam em um animado clima de montar o cinema ao ar livre na praça e conhecer e registrar o máximo que o tempo permitisse daquela cidadezinha tão cheia de coisas pra ver. Folclore, personagens, paisagens, música, artesanato...

Enquanto esperava por eles na pracinha em frente à pousada, restaurante, pizzaria e churrascaria Portal 2000, vi uma cena bem urbana, uns garotos entre 12 e 19 anos caminhando embaixo do sol escaldante do meio-dia da cidade, carregando um monte de instrumentos, teclados, contrabaixos e violões. “Ei, espera aí†gritei.

Fui caminhando com eles, que estavam no rumo do ensaio, eram integrantes do grupo Caçuá, que produz música autoral e realiza trabalhos de pesquisa sobre os sons e o folclore ribeirinhos daquelas “bandas†das Alagoas banhadas pelo São Francisco. Os rapazes iam ensaiar um projeto paralelo, chamado “Casa de Taipaâ€, formado para tocar nos bailes juninos da cidade.

Para minha surpresa, Ninho, o baixista, me contou que o grupo Caçuá, em sua investigação da cultura regional, deu origem ao Ponto de Cultura Olha o Chico, cuja coordenadora é Vicentina Dalva, a diretora do filme “Borboletas†que seria exibido naquela noite. Josimar dos Anjos, que toca violão e canta, foi também o condutor do barco que fez as imagens do filme. Completavam a banda Maxwel Leão dos Santos, o baterista, o saxofonista Antonio Carlos, chamado pelos companheiros de maestro, e o caçula Jadson Túlio, de 12 anos, na percussão, um dos alunos de música de Edcledson Nunes, o Ninho, que trabalha há 7 anos com Dalva no “Olha o Chicoâ€.

Surpreso também fiquei, ao saber que Dalva não estava em Piaçabuçu naquele dia, e perderia a exibição do seu filme para a sua cidade. Dalva faz um curso em Maceió, em que ela precisa estar uma vez por mês na capital, e calhou de cair justo na data da apresentação. Mas como eu iria perceber no correr das horas, seu trabalho e seus pupilos a representariam muito bem naquele dia e noite de personagens, imagens e luz.

14:00

Voltando pra pousada, vi o movimento do pessoal em volta de um menino na calçada, todos o cumprimentavam, era Luis Henrique, ator mirim que interpreta o personagem Pedrinho em “Borboletasâ€, todo sorridente com os elogios sobre sua atuação.

Segui com ele e o pessoal do Revelando os Brasis até o Ponto de Cultura Olha o Chico. Na sala, estavam reunidos diversos mestres dos saberes e fazeres populares, e lá atrás, um sem numero de crianças jogava e brincava e gritava de um jeito que nem incomodava a conversa dos adultos por ali. Sentamos.

Conhecemos ali contadores de histórias e mestres do folclore, sanfoneiros e todo tipo de artista e poeta que se possa pensar, uma verdadeira corte. Um deles me chamou especial atenção, Seu João Francisco dos Santos, ou Mestre Ferrete, que coordena o Guerreiro formado por crianças do Projeto. Naquela prosa toda, Mestre Ferrete falou o seguinte “Chamar o guerreiro pra se apresentar como muitos fazem por aí, por 50 reais e um punhado de arroz doce, eu não vou. Não paga nem os músicos. Pra ser assim prefiro brincar de graça na porta das figura (referindo-se aos personagens que compõem um Guerreiro)".

E continuou, “A gente junta, uns dão o arroz, outros o açúcar, dali a pouco ta pronto e é só cada um trazer sua vasilha. Obrigado, mas não estou morrendo de fomeâ€. Honorável Mestre Ferrete do Guerreiro dos Meninos, um exemplo de artista. Ele também produz toda a vestimenta do grupo, “papelão, arame, espelho, tiro as medidas das cabeças do pessoal e faço. Estou oito meses fazendo esse guerreiroâ€.

Mestre Ferrete ensina o folguedo natalino Auto do Guerreiro, endêmico de Alagoas, para 20 crianças bem animadas. Um verdadeiro trabalho de preservação de recursos, onde a lógica ambiental se aplica nesses casos de fortalecimentos de raízes culturais através da educação complementar.

Saímos do Olha o Chico, perseguidos por uma turba de pequeninos recém alimentados com um bom lanche e que queriam ganhar uma caneta (que era linda mesmo) do projeto Revelando os Brasis, e durante o resto da viagem sempre aparecia um menino sorrindo pra nós, “o povo de foraâ€, dizendo somente “me dá uma caneta, me dá uma canetaâ€. Um sucesso, e como eram canetas de várias cores, eles queriam ter o máximo de cores possíveis, alguns desfilavam com elas penduradas no pescoço, como medalhas.


16:30

Seguimos para a casa de Dona Lourdes, artesã que tece lindas bonecas de pano que podem ser compradas no Mercado Arte, que comercializa o artesanato produzido na região. Infelizmente Dona Lourdes não se sentia muito bem, com problemas de coluna, mas nos recebeu mesmo assim, e com muita simpatia e hospitalidade nos mostrou sua produção.

17:00

Visitamos uma das locações das filmagens de “Borboletasâ€, o estaleiro onde Mestre Galego constrói barcos com seus ajudantes aprendizes. Trabalho duro, e também cheio da beleza do artesanato. Mestre Galego contou que começou a aprender o ofício com seu pai, depois observando outros barqueiros, e hoje ensina aos mais jovens, como na história do filme.

O sol já estava se pondo no oeste e o rio ficou com uns reflexos alaranjados, linda paisagem. Fomos descansar pra exibição logo mais a noite.

19:00

Faltava meia hora para a exibição, e o pessoal do Revelando os Brasis e do Olha o Chico unia esforços para trazer os meninos do Guerreiro do Seu João para a exibição, eles resolveram aproveitar a oportunidade e se apresentar pra cidade. Fui com eles.

Espero que as fotos consigam traduzir um pouco a beleza pura que são esses meninos em suas vestimentas de guerreiro. Estava ansioso pra vê-los na apresentação, e realmente foi lindo. Antes da exibição na telona, o grupo brincou com entusiasmo, e tinha uma galeguinha bem pequenininha que cantava também e arrasava!

Nesse meio tempo, o temor do pessoal da caravana cinematográfica se concretizou, São Pedro não ajudou, e o céu começou a cair em água. Tanto tempo até chegar uma tela de cinema naquela cidade tão pequena, toda aquela gente ansiosa pra assistir aos filmes, participar daquele momento. E chuva.

Pois foi a chuva que proporcionou o momento mais bonito desta passagem por Piaçabuçu. Quando chegamos à praça onde seriam exibidos os filmes encontramos uma concentração tão grande de guarda-chuvas que mal cabiam em todas as cadeiras disponíveis pra platéia. E não eram poucas.

Risadas e aplausos. Silêncio. Olhos na tela grande. Quantos nunca foram ao cinema? Gostaria mesmo de saber. Um casal de velhinhos sentou com seu guarda chuva um pouco mais distante do restante da platéia, no próprio banco da praça, acho que pra namorarem tranqüilos.

“Borboletas†estava por começar, e o ator Luis Henrique, hoje uma celebridade em Piaçabuçu, sorria meio acanhado, meio orgulhoso, mas ele me contou mais tarde que era mais orgulho que acanhamento. Quando perguntei o que queria ser quando crescer não pensou duas vezes e respondeu: “Atorâ€.

Luis assistiu ao filme em pé, com seu guarda chuva que dividia com uma amiga...ou seria uma fã? Estavam também sua mãe, tios e primos. Durante a exibição todos suspiravam e aplaudiam ao reconhecer os conterrâneos na tela grande. Uma beleza. Para mim pessoalmente foi como ver uma síntese poética daquele dia em Piaçabuçu na tela do cinema.

Depois dos outros dois filmes produzidos em Alagoas, “Nelsonâ€, de Capela, dirigido por Thalles Gomes, e “Cadê Calabar?â€, de Japaratinga, dirigido por Joaquim Alves de Oliveira Neto, teve fim a exibição do circuito de apresentações do Revelando os Brasis em Piaçabuçu.

Os guarda-chuvas foram embora devagar, as pessoas embaixo deles estavam um pouco molhadas, mas se ficaram até o fim gostaram mesmo de ir ao cinema na praça, de graça. Neste momento, a chuva foi embora também, como se estivesse ali pra ver os filmes, e o céu ficou cheio de estrelas. Esse São Pedro...

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Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A
 

Marcelo, que maravilha de texto. Cara, como tu se divertiu com essa meninada! E isso, esse tom de leveza, essa coisa da brincadeira tá presente no texto em muitos momentos. Gostei muito.

Só uma coisa: no quarto bloco, ainda na parte "11 horas", bem no finalzinho, tu diz que a caravana vai percorrer "municípios de todo o país". Não sei, mas acho que ficou um pouco confuso e tal. Parece que são todos os municípios...

Abraços e valeu pela cobertura muito descolada!

Henrique Araújo - Grupo TR.E.M.A · Fortaleza, CE 29/6/2007 17:45
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Thiago Camelo
 

Ótimo texto Marcelo. Desde já uma das minhas fotos de abertura prediletas do Overmundo. Não importa o foco, a cor, a falta de luz, enfim. A cena fala por si só. Uma grande sensibilidade capturar esse momento. Abração!

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 29/6/2007 18:41
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Tetê Oliveira
 

Marcelo, lindo texto e foto de abertura. Parabéns!

Tetê Oliveira · Nova Iguaçu, RJ 29/6/2007 19:19
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Marcelo Cabral
 

Thiago, Tetê e Henrique, obrigado pelos comentários. Henrique, tentei especificar melhor a questão dos municípios, obrigado pela sugestão.

Gostaria de registrar que o Viktor Chagas, depois de muito matutar, descobriu outra palavra com dois ç: Forçação.

Abraços.

Marcelo Cabral · Maceió, AL 30/6/2007 15:37
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Yuri Almeida
 

bacana a cobertura, a narrativa, enfim...

Yuri Almeida · Salvador, BA 30/6/2007 20:50
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Roberta Tum
 

Muito bom, caminhei com você por alí. Parabéns!

Roberta Tum · Palmas, TO 3/7/2007 09:03
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FILIPE MAMEDE
 

Excelente contribuição. Abraço.

FILIPE MAMEDE · Natal, RN 3/7/2007 10:54
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CCorrales
 

Lindos momentos. Obrigada por compartilhar conosco.
Abs

CCorrales · São Paulo, SP 3/7/2007 12:12
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Amanda Maia
 

Lindo texto, informativo e lírico, consistente e emocionante. Parabéns! Deu vontade de conhecer...

Amanda Maia · Salvador, BA 3/7/2007 23:07
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Viktor Chagas
 

hehehe... nem precisava dar o "crédito", foi um matutar quase sem esforço. saiu sem nenhuma forçação. e, convenhamos, piaçabuçu é uma palavra muito mais bonita! :)

Viktor Chagas · Rio de Janeiro, RJ 4/7/2007 12:50
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Marcelo Cabral
 

Hehe, valeu Viktor, Piaçabuçu é uma palavra massa mesmo, e uma cidade linda, apareçam por lá e obrigado a todos pelos comentários.

Marcelo Cabral · Maceió, AL 4/7/2007 14:39
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Thiago Paulino
 

Marcelo,
Fiquei muito feliz ver o querido Alagoas (irmão vizinho de Sergipe) tão bem representado aqui com este belo texto no Overmundo... ler seu texto é sentir o cheiro do Velho Chico e escutar o ruído de suas águas... as fotos dão uma cor especial a sua história.. é muito legal saber que a caravana do Revelando os Brasis foi muito bem acompanhada nas terras de Piaçabuçu! Adorei também a história sobre o mestre do Guerreiro... Parabéns!

Thiago Paulino · Aracaju, SE 4/7/2007 15:53
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janice
 

Muito bom,poetico,leve,adoravel.me fez viajar e sentir as pessoas,com a simplicidade que o texto reproduz,parabens.

janice · Maceió, AL 4/7/2007 21:50
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Marcelo Cabral
 

Valeu Thiago vizinho do Sergipe irmão!
Obrigado conterrânea Janice!
Abraços!

Marcelo Cabral · Maceió, AL 5/7/2007 19:36
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Sergio Rosa
 

genial, marcelo. muito bom.

Sergio Rosa · Belo Horizonte, MG 5/7/2007 21:46
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Bruninho_bass
 

Bonito, Marcelo! O último parágrafo deixa a gente com saudade de Piaçabuçu, mesmo sem ter estado lá.

Bruninho_bass · Maceió, AL 7/7/2007 00:35
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Erika Morais
 

que lindo texto...cheio de vida.
beijos!

Erika Morais · São Paulo, SP 11/7/2007 18:07
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Fernando Coelho
 

Ae Marcelo. Muito bacana. Parabens pelo trabalho no Overmundo.

Fernando Coelho · , 12/7/2007 21:32
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carlos b
 

ótimo texto, marcelo!
não bastasse o que belamente conta sobre a exibição de "Borboletas" e desse projeto urgente e necessário que é "Revelando os Brasis", seu texto traz pistas sobre um jeito massa de viajar: com olhos e sentidos bem abertos. Digo isso porque, como sabemos, Piaçabuçu é um lugar onde muita gente chega apenas para ir ver o encontro do Velho Chico com o amigo-mar. E muitas vezes nem se toca que ali vive gente como Mestre Ferrete e Dalvinha. Valeu!
um abraço
p.s. (além de piaçabuçu e de forçação, acho que voçê se esqueçeu de mençionar "eçeção"! rsrsrsrs)

carlos b · Maceió, AL 16/7/2007 19:02
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Biá Boakari
 

Deu vontade de conhecer... a praça, as pessoas, as comidas... obrigada pelo texto!! muito bom mesmo!

Biá Boakari · Teresina, PI 1/8/2007 21:59
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Pssil
 

Lindo o teu texto, encantadora a narrativa toda. Parabéns por tua sensibilidade para ver e acompanhar essas vidas e lugares, mas também o talento para contar a história de modo que a gente se sinta lá.

Pssil · Porto Alegre, RS 14/2/2008 14:52
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