Imagino que, com o resfriamento da economia, os tratores resfriar-se-ão também. Reconheço que o que vou descrever possivelmente se explica por uma impressão, uma intuição, um sobressalto, uma subjetividade sem âncora na medição. Às vezes nossa calculadora fisiomental erra feio. Acontece muito, por exemplo, com a sensação de violência. Nem sempre as cidades cujos habitantes ou visitantes tomam por violentas são, efetivamente, as mais barra-pesada. Determinados acontecimentos, parâmetros insuficientes, a cobertura da mídia, um comentário da Ana Maria Braga, sei lá o que mais, podem gerar distorções que consolidam certos retratos. Mas, enfim, desfiada a ladainha dos isso-e-issos, a imagem de Brasília para mim nestes tempos é a de um canteiro de obras.
Ai.
Que isso não é bom - digo com o coração, sem nenhum risco de recair em precisão mental, diria mestre Manoel de Barros.
Sim, ok: sem dúvida que o Plano Piloto, dentro do seu relativamente rigoroso tombamento, ainda comporta o preenchimento de um certo número de lotes. Algumas superquadras, as franjas da UnB… Especialmente se considerarmos a disponibilidade de transporte e outros serviços na W3 e na L2, algum adensamento é cabido. Mas, assim como o Doutor-Oscar tem o direito de desejar - só desejar - o revestimento de tudo com cimento, eu tenho o direito de me agoniar com a colocação de feijões de pedra nas casinhas ainda vagas da cartela.
Uma das coisas de que mais gostava no meu bairro em São Paulo eram os espaços remanescentes. Gastar a sola dos pés baldios por ali era uma delícia: terrenos fadados a matagar, concertos para solo de bico-de-lacre, árvores rompendo calçadas aqui e ali, cachorrada s.r.d. viralatando, crônicas ferrugens desfazendo os autoimóveis, anacrônicas ruas de terra alimentando as brincadeiras de polícia da molecada. Um dia tive a alegria de descobrir numa baixada, entre vários prédios de relativo luxo, um improbabilíssimo casal, os dois já velhinhos, modestos, levando a vida numa espécie de rancho, uma casa de estirpe bem interiorana num terreno espaçoso. Isso numa região consolidada, embora não central, da metrópole.
Faz uns cinco anos essa descoberta do Recanto Zé e Zefa (chamemos assim), e imagino que inconscientemente decidi evitar o local pra não ter uma decepção. Sabe aquela coisa de praia que só a gente conhece e de repente fica repleta de caixas de som sobre rodas? Alguma razão eu tinha: naquela comarca, nos últimos quinze anos os arranha-céus brotaram, os veterinários se reproduziram, as natações transbordaram, carros mil foram adotados, numa espécie de PAC Bairro. Tudo dando certo demais - só podia dar errado.
Aqui, há exatos três anos e 11 meses, reencontrei isso. Digo, aquilo – a persistência dos ermos. Uma das lembranças mais agradáveis, e mais emblemáticas, é a de um dia em que uma insônia matinal, reiterada por uma gangue de periquitos rasgando paina e zoneando na janela, me jogou fora da cama 6 da manhã. Alvorada presenciada, saí para andar pelas redondezas, na Asa Norte.
Orvalho nas teias - não era ainda tempo da famigerada seca - e um frescor de sítio me deram um belo alento de chegada. Guiado por misteriosa bússola, eu, que ainda não tinha feito o reconhecimento pedestre da vizinhança dos meus anfitriões (estava instalado na casa de amigos), fui parar num terrenão entre dois blocos, sem uso exceto por um campinho de pelada. Na marcação do tempo, um e outro flauteio de anu-branco, que pra mim sempre foi índice de ruralidade. Açude algum por perto? Bambuzal? Não preciso dizer que naveguei esse e similares descampados em vários fins de tarde.
Bom, saiamos dos cases e do tom divagatório para seguir na busca do que se tenta dizer aqui.
Há o gosto de morar numa cidade que até o momento, sob vários aspectos, é uma não-cidade, como já bem definiram. Ou de ter em volta um pouco de verde e de brecha para percorrer o horizonte. Existe a tendência de valorizar aquilo que sua terra natal, ou sua paragem anterior, não tem. Tudo se soma, quem sabe, a uma vaga esperança de presenciar o espraiamento de um outro modelo de desenvolvimento urbano, mais humano e menos feroz.
Sou obrigado a admitir que uma palavra-chave talvez traduza tudo isso melhor que quaisquer elementos objetivos e/ou comparativos: apego.
Isso posto, senhores e senhoras, alarmem-se junto comigo: as fotos qua guardo nas retinas, com a publicada nesta página, datam de três a uma semanas atrás, e já se amarelaram. No lugar de blocos de concreto à espreita, imaginem canteiros e gramado. Calculem tijolo e cimento onde só havia vigas, e tinta ou azulejo onde só tijolo e cimento. Enxerguem coqueiros adolescentes e, por que não?, uma fonte para refrescar a vista. Pintem um pesado monólito no lugar de cada cratera. Dispam dos tapumes os novos caixotões de se abrigar ou merecer dinheiro.
Obra é assim, num minutinho passou: só dá pra gente se apegar se vira ruína.
Desenvolvemos uma relação tão pessoal com as cidades, né... É interessante observar as reações de amigos de outras cidades que vão morar em Brasília, ficam entre o encantamento com a tranquilidade e o tédio com a mesma tranquilidade. E, para os brasilienses, deve ser engraçado ver as reações de tanta gente de fora que chega todo dia. Gostei muito de ler seu texto e lembrei que recentemente um jornal carioca deu destaque a uma matéria sobre como estava dando certo a "choque de ordem" (expressão da moda por aqui) do Arruda em Brasília. Abs
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 9/4/2009 10:51oi Pedro: seria bacana que os variados debates sobre o urbanismo das cidades brasileiras, parte central de nossa cultura (o Brasil é cada vez mais majoritariamente urbano), tivessem mais eco aqui no Overmundo. Então valeu por iniciar esta conversa sobre o urbanismo brasiliense. Sobre Brasília, gostaria de colocar na roda duas outras colaborações aqui do Overmundo: esta do Daniel Duende (estou com saudade dele!) sobre meus amados pilotis, e esta outra de minha autoria, sobre o "absolutismo" arquitetônico, que outro dia reencontrei na internet citada numa crônica de Conceição Freitas no Correio Brasiliense - abraços!
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 9/4/2009 16:21
É verdade, Helena. Para alguém que vem de uma terra de “feracidades excepcionais” como Sampa, o Plano Piloto, ao mesmo tempo que conquista pela arborização, pelo tráfego livre e pelo horizonte aberto, incomoda pela falta da “sensação de cidade” e de efervescência cultural (ao menos que se revele). E aqui, corre o risco de virar 100% classe-média quem se enquadra na dita classe média – que pode ser uma autoclassificação muito confortável num país em que a renda média do trabalhador é de R$ 1,3 mil e um terço das famílias ganha menos que isso somadas todas as cabeças.
Sou, como o Hermano, fã do barro vermelho e dos pilotis, assim como de outro espaço de compartilhamento, os parquinhos de gangorras e gira-giras. Tudo isso, para mim, contrapõe-se às grades crescentes dos condomínios paulistanas e cariocas, prisão bem retratada naquela letra dO Rappa. Quem já esteve no meio de discussão sobre bolsão residencial (agh) sabe do que estou falando. Na capital federal, por outro lado, a política de transportes (falta ou intencionalidade?) e o preço do aluguel fazem as vezes do cercamento físico.
Quanto às peças arquitetônicas/urbanísticas planejadas “de cima”, como Hermano destaca no belíssimo artigo linkado acima (“As vantagens do absolutismo arquitetônico”), a invenção da vida por cada um de nós quebra um tanto, muitas vezes para o bem, o rigor e a vontade teleológica. Essa anti-revolução, que acaba fazendo o papel de lenta e invisível revolução, vem em coisas miúdas como as barraquinhas de frutas na Esplanada dos Ministérios, as pichações sem rumo e mesmo a falta de manutenção de prédios e esculturas. De todo modo, acho saudável quando a população, ainda que de modo bem burguês, embarreira projetos impostos como o da Praça da Soberania e seu obelisco gigante. Me parece que, hoje em dia, esses coelhos tirados da cartola pelos gênios têm muito menos a ver com utopias do que com auto-afirmação, marcas de gestão e exaltação do capital. Concordam?
Abraço pros dois, e obrigado pelos adendos!
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