Cabrália Paulista, a capital do caixão

Flickr.com - Johnharrigan -  http://www.flickr.com/photos/johnharrigan/
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Ricardo Fela · Sorocaba, SP
10/2/2007 · 215 · 17
 

A cidade tem pouco mais de cinco mil habitantes, número equivalente à quantidade de sepulturas no único cemitério. O único vendedor de plano funerário local diz já ter “coberto” (entenda-se vendido planos e não enterrado, pelo menos por enquanto) cerca de quatro mil moradores.

Ou seja, em Cabrália Paulista, a meia-hora de Bauru, menos de um quinto da população – aproximadamente mil pessoas – ainda não comprou o seu próprio caixão. “Se não me enterrarem antes, eu enterro todo mundo”, brinca Edson Aparecido Pires, o Edinho, também chamado por alguns de “homem-do-caixão” ou “papa-defuntos”.

“Outro dia, estávamos no circo assistindo a um espetáculo e o drama falava de morte. Não deu outra, olharam para a gente e disseram ‘ó, qualquer coisa a mulher do caixão está aí, hein!’, referindo-se à minha esposa, que também trabalha comigo”, conta.

O bom-humor mórbido faz sentido. Afinal, enquanto muitas cidades do interior de São Paulo não têm onde cair mortas, Cabrália Paulista é conhecida como a Capital das Urnas Funerárias ou Capital do Caixão. Afinal, lá duas fábricas produzem em média 15 mil caixões por mês, que são vendidos para todo o Brasil.

A “indústria funerária” é fonte de cerca de 400 famílias na cidade, segundo Nivaldo Roberto Bertoni, dono de uma dessas fábricas. “No fim dos anos 80, chegamos a ter oito fábricas na cidade”, conta, sinalizando que nem mesmo a “morte” escapou das sucessivas crises econômicas que o país atravessou nas últimas décadas.

Curiosamente, o proprietário da fábrica ainda não comprou um plano funerário e, conseqüentemente, não tem o seu próprio caixão. “Estou esperando sair um modelo mais luxuoso”, brinca.

Ainda assim, a cidade se mantém entre as que mais fazem caixão no Brasil e se orgulha disso. Benedito Francisco de Araújo, o seu Ditinho, trabalha há 13 anos no cemitério como zelador de necrópole e garante: “Nunca tive problema com os caixões feitos aqui em Cabrália”.

Mas há quem não se acostume com a idéia mesmo tendo nascido na cidade. Cunhado de Edinho, o frentista José Alcir Possi é um deles. O vendedor de planos funerários, já acostumado com o ambiente, usa o salão do velório como garagem quando não há nenhum corpo sendo velado. “Se ele precisar de mim para tirar o carro da garagem vai ficar a pé. Não entro aí de jeito nenhum”, afirma.

Terceirização mórbida e histórias inusitadas


A demanda por urnas é tão grande que, em alguns casos, as fábricas terceirizam o serviço e a cena se torna mais estranha ainda. Passar em frente à casa do seu Benedito Molina desavisado, principalmente à noite, pode provocar arrepios.

A garagem é cheia de caixões galvanizados (de alumínio) que ele produz artesanalmente há sete anos. “Trabalhei quarenta e dois anos em fábricas e quando me aposentei comecei a fazer aqui em casa mesmo”, diz tranqüilamente. Ele tem também dois filhos que trabalham no ramo.

Já o comerciante Alessandro de Moraes, que possui um caminhão com o qual às vezes é chamado para fazer entrega de caixões, coleciona histórias. “Quando a gente chega numa outra cidade e começa a tirar a lona de cima do produto, tem gente que atravessa a rua e faz o sinal da cruz. Para descontrair, a gente pergunta se não quer comprar um, diz que é promoção”, brinca. Ele é outro que ainda não comprou caixão. “Tô fora! Vou buscar o azar para quê?”.

Em viagens longas, quando é necessário dormir na estrada com o caminhão carregado, outra situação inusitada. “A cabine é pequena e não dá para dormir em dois. Meu ajudante pega as coisas dele e vai lá para trás dormir no meio dos caixões numa boa”.

Ele conta ainda que tem amigos que trabalham nas fábricas que fazem a sesta depois do almoço dentro de caixões “confortáveis”, se é que possível haver um caixão confortável.

Enquanto uns ficam à vontade, outros nem tanto. O representante comercial de uma das fábricas, José Aparecido Amor, o Dedé, conta que em certa ocasião contratou um vigilante noturno para cuidar da fábrica que trabalhou apenas uma noite e nunca mais voltou.

“Percebi que ele estava assustado quando conversou comigo. Como os galpões são de telhas de zinco, à noite, conforme a temperatura diminui, elas começam a estalar e eu esqueci de avisá-lo sobre isso. Aquela deve ter sido a noite mais apavorante da vida dele, no escuro, rodeado de caixões e ouvindo barulhos estranhos. Nunca mais vi o cara”, lembra.

Guinness

Há poucos anos, Cabrália Paulista entrou para o Livro dos Recordes ao construir o maior caixão do mundo, que foi exposto numa feira do setor como uma espécie de chamariz. A peça tinha 10 metros de comprimento.

Conheço um cara que adoraria conhecer Cabrália Paulista: José Mojica Marins. Agora, você, ao passar por lá, cuidado para não sair numa urna funerária, como eles preferem chamar.

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Egeu Laus
 

Beleza de História, Ricardo.
Valia a pena talvez ter colocado uma foto de Cabrália Paulista.
Abraço!

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 10/2/2007 06:10
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Marcelo Rangel
 

Fela.... q maneira essa história... fico tentado a te convidar pra fazer uma materiazinha pro programa de rádio...
Abraço!!

Marcelo Rangel · Aracaju, SE 10/2/2007 16:16
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Tranquera
 

Nossa! Que legal! A ilustração também é muito legal!

Tranquera · São Paulo, SP 10/2/2007 19:21
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Marcela Fells
 

deve de ser um lugar bem aconchegante.. ótima matéria

Marcela Fells · Belo Horizonte, MG 10/2/2007 20:01
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Camafunga
 

Ótima história.

Camafunga · Pelotas, RS 10/2/2007 20:24
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Daniel Duende
 

ótima matéria.... excelente ilustração (é de Cabrália também?) e grande sacada!
Parabéns!

Abraços do Verde.

Daniel Duende · Brasília, DF 10/2/2007 21:03
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Guta Nascimento
 

... já fiquei logo imaginando uma música do Mercado de Peixe pra essa cidade ... ficaria ótima no Roça Elétrica, na Saga Low-tech do Caipira Paulista ou no Caipira Groove ... salve Cabrália !

Guta Nascimento · São Paulo, SP 11/2/2007 13:25
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Yusseff Abrahim
 

Adorei a foto, me despertou um forte sentimento.
É curioso ver o misto de irreverência e terror diante que o tema causa em nossa cultura. Ótimo texto Fela!
Quando viajo pelo interior do Amazonas sempre faço uma visita nos cemitérios para caçar curiosidades, inevitável lembrar que em uma destas incursões encontrei uma pérola em Parintins (Veja aqui).

Yusseff Abrahim · Manaus, AM 11/2/2007 15:23
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Yusseff Abrahim
 

Ri muito com a história do vigia... coitado do cara.

Yusseff Abrahim · Manaus, AM 11/2/2007 15:29
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Daniel Duende
 

Sua descoberta também é ótima, Yussef! Já fui lá e comentei, e, claro, votei também! :D

Ia ser legal se houvesse um tag "cemiterio" ou "morrer-brasileiro", para indexar estas histórias tão interessantes do viver e morrer de nosso povo.

Abração do Verde.

Daniel Duende · Brasília, DF 11/2/2007 20:19
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Daniel Duende
 

Ops... falha minha... vc já colocou "cemitério" e "morte" lá.

Grande taggeador. :D

Abraços do Verde.

Daniel Duende · Brasília, DF 11/2/2007 20:20
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luciclene
 

Moro do lado da funerária ... tenho medo é dos vivos .

luciclene · Cabrália Paulista, SP 11/2/2007 23:12
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Daniel Duende
 

Poisé... também penso que os mortos nunca nos fizeram mal...
somos nós que por vezes nos fazemos mal em nome deles...

Abraços do Verde.

Daniel Duende · Brasília, DF 11/2/2007 23:16
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Thiago Camelo
 

Se forem ver com calma nos créditos da foto, dá pra notar que ela foi tirada do Flickr, um site colaborativo que permite postar imagens em Creative Commons. Essas fotos em CC podem ser reproduzidas em locais sem fins lucrativos (as fotos devem ser creditadas), como é o caso do Overmundo. Eu mesmo já 'roubei' um monte de foto do Flickr pra colocar nas minhas colaborações. É uma excelente ferramenta. Abraços!

Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 12/2/2007 14:20
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Daniel Duende
 

Tem razão, meu velho. Agora que vi os créditos da foto. O Flickr é, assim como o deviantART, uma excelente fonte de imagens para mim. O problema é que a grande maioria das imagens ainda é publicada em Copyright tanto em um quanto em outro. Tive, inclusive, problemas com isso no meu post para o Guia sobre o Conic (de Brasília). A autorização para o uso das fotos só chegou bem depois do post votado. De qq forma, vou usar agora as fotos que *agora* posso usar em um outro post sobre o lugar. Acaba que o Overmundo sai ganhando, pois vai haver mais um post sobre o fantástico Conic (e, desta vez, bem ilustrado) :D

Abraços do Verde.

Daniel Duende · Brasília, DF 12/2/2007 15:51
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luciclene
 

Será q esta urna da foto é das fabricadas em CABRÁLIA PAULISTA ?

luciclene · Cabrália Paulista, SP 13/2/2007 22:29
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Ricardo Fela
 

A 'urna' é de Cabrália, sim, Lucilene. E de luxo, sabia? rs

Ricardo Fela · Sorocaba, SP 14/2/2007 21:53
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