A primeira coisa que reparei quando Rodrigo Linares abriu a porta foi o chão. Madeira brilhando com um sinteco que, segundo o dono do apartamento, era novo. Também notei a ausência de móveis. Na sala, apenas uma escrivaninha para o computador e uma mesa redonda para duas pessoas comerem ou tomarem café, além de uma televisão no chão. Rodrigo pediu um minuto, pois teria que colocar o filho José Solano, de dez anos, no banho (Ernesto, de oito, ainda não havia chegado com a mãe, Dani). No minuto seguinte, ele foi ao computador e fechou o vÃdeo que estava vendo no YouTube. “Era o vÃdeo de um show da Mallu Magalhães, adoro a Mallu, ela é impressionanteâ€.
Fui apresentado a Rodrigo Linares num show da Mallu aqui no Rio. Conhecia pouco o seu trabalho de poeta. Sabia que ele cortava jornais, fazia estudos das letras, tinha cadernos e mandalas com recortes de notÃcias do dia-a-dia. A curiosidade de convidá-lo para um bate-papo veio dos efusivos elogios na internet dos poucos que já tinham visto o seu trabalho e, também, da recomendação entusiasmada de meu irmão, fã de várias obras suas.
Quando sentei na pequena mesa redonda para tomar um café não sabia ao certo o que encontraria. Nem que era assim que Rodrigo preferia expor suas obras. Então se eu estava ali conversando com um café na mão, estava já também participando de seu processo artÃstico: o de sentar, papear, ver e folhear os trabalhos.
Antes de abrir as enormes mandalas e os cadernos que ele próprio costura, o mais importante ali, estranhamente, parecia ser a conversa. Que, óbvio, começou com a única pessoa que tÃnhamos em comum além do meu irmão – a Mallu. Um pretexto, no entanto, para falar de uma certa necessidade de se expor de alguma maneira, uma vocação que não necessariamente tem de ser o meio de subsistência: “A idéia de você viver de sua arte pode ser fundamental. Mas a vida é complexa. É importante recuperar este sentido de arte como o fazer do próprio homem. É anterior ao comércio e se mostra de muitas maneirasâ€. Assim, Rodrigo, de 33 anos, ganha dinheiro com a profissão que escolheu ao entrar na faculdade. É jornalista, formado na PUC do Rio. Fez pouquÃssimas exposições públicas de seu trabalho. Por uma delas, ganhou o Prêmio Ibeu de Artes Plásticas, importante reconhecimento no mercado de arte não-comercial carioca. Em outra rara incursão no meio, teve seu trabalho elogiado pelo artista plástico Tunga e adquirido pelo célebre colecionador Gilberto Chateaubriand. Mas o cuidado – para quem está de fora, à s vezes, excessivo – com aquilo que cria parece sobrepujar qualquer tipo de vaidade. É claro que o reconhecimento o envaidece, mas o receio de apadrinhamentos ou chancelas serve como ponto de reflexão para continuar fazendo o que faz – em última análise: ver as pessoas vendo o seu trabalho. Mas nada é assim tão claro e a postura muitas vezes soa também como defesa, um possÃvel medo de reprovação, talvez. Ele nega. “Eu não quero colocar este trabalho na mesa de negociação com ninguém. E no momento de negociá-lo, no que seria um mercado de arte, preferi fazer um projeto a longo prazo. Tive até algumas experiências de estar em coleções, participar de mostras, salão. Mas foi uma maneira de conhecer essas dinâmicas que permeiam o fazer artÃstico que, para mim, é uma relação intrÃnseca. Eu, em nenhum momento, pensei ‘vou criar uma obra para virar artista e viver da minha arte’, não foi por aÃâ€.
Um dos fatores que fazem o trabalho de Rodrigo ser tão especial é justamente esse: a linha tênue que divide o “por favor mostre esse trabalho para as outras pessoas agora!†do “muito generoso da sua parte expor suas obras apenas dessa maneira, de modo tão intimista e pessoalâ€. Eu, confesso, fico no meio do caminho entre os dois argumentos. Daà este texto.
Mandalas
A obra de Rodrigo é extensa e não parece caber apenas nos armários do apartamento. Mais de uma vez, ele lamentou não saber onde está tal caderno, determinado poema. E logo se percebe por quê: são caixas e gavetas de cadernos e papéis com frases, letras, desenhos de letra. Todas as colagens são feitas com recortes de jornal.
Depois de dois cafés e uma hora de conversa, Rodrigo busca no quarto suas mandalas. Abre-as no chão e, de cara, explica – sem falar – o motivo pelo qual sua sala tem tão poucos móveis. São vários pedaços de periódico unidos em forma geométrica e circular. No chão, formam um caminho de estrelas gigantes que engolem o cômodo. Discos de recortes e manchetes sobrepostas, tiras do branco do jornal e pedaços coloridos do classificado são um relevo da poesia que poucos notam na vida comum. Manchetes quaisquer lidas com o olho que dá relevância à banalidade, sem, no entanto, torná-las mais importantes do que o próprio fato de ser banal. Talvez este seja o motivo para que nenhuma manchete ganhe destaque no cÃrculo. Não é possÃvel lê-las com facilidade. A paciência da simetria parece ter a intenção de misturar tudo, fazer confusão com a própria dualidade da arte x papel do jornal, da perenidade da obra x efemeridade das manchetes – a vida é ali uma coisa só.
Cadernos
As mandalas continuaram espalhadas no chão enquanto Rodrigo abria e mostrava os cadernos. “Pode abrir mesmo as duas páginas com vontade, é o teste para ver se o caderno foi bem costuradoâ€, avisa. Mas tudo parece tão artesanal e delicado que é impossÃvel não virar cada página como se fosse de seda. Os cadernos são uma versão em menor escala de toda a obra de Rodrigo. Agora, pequenas mandalas formadas com as letras “A†estão na página. Tipografia, claro, tirada sempre do jornal. O “A†também ganha asa. E chora, quando uma vÃrgula cai. Recortes de palavras no jornal viram poesia. O “Ela†que abre o tÃtulo de uma matéria se une ao “a primavera†do texto corrido, formando, num bloco homogêneo recortado, “Ela, a primaveraâ€. Deste modo, o “dia-a-dia†torna-se “ia-a-diaâ€, assim, sem o “dâ€. “Sempre quando vejo uma tipologia bonita de ‘dia-a-dia’ corto e guardo para mimâ€, conta Rodrigo. Então um muito provável “Curtindo a vida adoidado†ganha uma outra leitura: “a vida adoidaâ€.
Os poemas de recorte, muitos haicais, também estão nos cadernos. As frases foram dispostas no jornal daquela forma, num contexto quase impossÃvel de recuperar. Removidas do seu lugar e ligadas a outras sentenças inventam uma gramática própria:
Com os pé do mundo
Ando conforme a rua
Fértil entre as inteligência
Rodrigo tem mais poemas. Alguns escritos à máquina, outros à caneta. Para guardá-los, editou livros que, assim como os cadernos, foram costurados (ou xerocados) e diagramados por ele. Estes livros, na verdade, fazem parte das suas primeiras experiências artÃsticas, ainda nos pilotis da PUC. Como não queria vendê-los, oferecia uma troca por qualquer criação do interessado. Um livro por outro livro, um livro por um desenho.
Anos depois e já fora da Universidade, Rodrigo descobriu as mandalas. Elas, provavelmente mais do que qualquer outro trabalho, aproximam-no do fazer de um artista plástico, rótulo com o qual ele não corrobora: “Sou, antes de tudo, um poeta. Um poeta trabalhando linguagem num meio plásticoâ€, afirma.
Pelo apreço que tem pela informação que está na rua, por aquilo que é do dia-a-dia, Rodrigo sempre tem em mãos uma câmera fotográfica portátil. O que não pode ser fotografado com a câmera, ele “fotografa escrevendo†em blocos ou, mesmo, em sua carteira (que ele também costurou). Algumas fotos suas estão no blog Cadernos Brancos, para o qual parou de contribuir este ano.
Mas é como poeta que Rodrigo se define. Sem pompa alguma, conta seu apreço desde novo por caligrafia, pela tipologia, pelas notÃcias do jornal – o caminho que trilhou até chegar à maneira como lê as notÃcias atualmente. Um olhar que parece ir em direção à quilo que ninguém dá muita importância. Antes de ir embora, ainda ganhei um caderno de capa verde e páginas laranjas feito por ele. Deixei, sem querer, meu guarda-chuva em sua casa. Se para Rodrigo um modo de negociar a arte é a troca, num dia chuvoso como aquele o guarda-chuva até me pareceu um bem valioso em retribuição ao presente e ao tanto que tinha acabado de ver.
Thiago, vi umas mandalas do Rodrigo numa coletiva no MAM, ano passado, e lendo seu texto agora, fez mais sentido pra mim (além do já feito) o fato dele ter formação em jornalismo. O trabalho dele é realmente muito bonito e instigante. Legal você compartilhar com a gente aqui nesse texto carinhoso. Não vi lá os cadernos. Fiquei com muita vontade de folhear um.
Engraçado é que tem um quase homônimo dele aqui em Vitória, o Rodrigo Linhales, VJ e e videomaker. Quando vi as mandalas lá no MAM cheguei a pensar que eram no "nosso" Rodrigo daqui. Mas logo a confusão se desfez.
Abraços!
Muito legal Thiago,
Não tinha conhecimento do trabalho do Rodrigo, achei o máximo muito original. Valeu por paertilhar aqui no overmundo a entrevistas que fizestes!
abraços
Meu prezado amigo... Belo trabalho...
Airton
Estrela-RS
bela entrevista. quero ver de perto a criação e a criatura :)
um beijo!
Legal o texto, Thiago.
votado.
abraço.
Thiago, Rodrigo Linares é realmente um artista de qualidade! Sempre achei que uma obra de arte reflete bem o artista que está por trás dela... percebe-se, claramente que ele, como poeta e jornalista, acaba expondo nas peças dele a sua paixão pelas palavras... Não entendi ao certo qual o material que ele usa nas mandalas. Aqui no Cariri temos alguns artistas que têm métodos muito parecidos com os métodos de Rodrigo, pelo menos, no que tangem às colagens, conheço um daqui que é maravilhoso! As idéias nas peças, porém, são diferentes. Fiquei curiosa em saber o porque da letra "A"... Foi muito e enriquecedor para nós a apresentação desse artista ao Overmundo. Parabéns Thiago! Um abraço.
JACK CORREIA · Crato, CE 30/5/2008 12:29ÓTIMO texto thiago! muito interessante a concepção de idéias do rodrigo. parabéns pela narrativa e por apresentar-nos um pouco do universo dele.
Guilherme Mattoso · Niterói, RJ 30/5/2008 15:17Thiago que texto bacana o teu menino e o Rodrigo que personagem cheio de arte.
Paloma Naziazeno · Aracaju, SE 30/5/2008 15:20
Valeu mesmo! Fico imaginando eu nem mesmo sei manusear um jornal, quem dirá fazer um artesanato de luxo! Artista é artista e nao existe outro igual a ele. Nao tenho palavras p expressar o q senti ao ver e ler seu artigo. Isto é Cultura com C maÃsculo!
abraços
Olá gente, obrigado pelos comentários!
Jack, o material de trabalho do Rodrigo é o jornal, tanto nas mandalas quanto nos poemas de recortes que ele cola nos cadernos.
Abraço grande pra todos!
ah, thiago, fiz um post só pra citar a tua entrevista. espia lá:
http://laranjaeacordovestidodela.blogspot.com/2008/05/nem-to-viralata-assim.html
beijão! :))
Ih, que legal Monica! :) Muito bacana vc ter pego uma foto do Cadernos Brancos pra ilustrar o poema. Adoro aquela foto! Beijão!!
Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 2/6/2008 11:34
muito bacana o texto Thiago.
Quando olhei a foto pela primeira vez pensei que fosse uma obra de beatriz Milhazes, uma artista plástica que usa muito o cÃrculo (em cores) na construção de suas obras.
tem imagem aqui: http://images.artnet.com/artwork_images_117082_218447_beatriz-milhazes.jpg
no mais, apareço por aqui
abraços
Thiago,
parabéns pelo texto e pela iniciativa de mostrar por aqui toda a arte do Rodrigo Linares, gostei muito do trabalho dele. E quando você fala no texto sobre o olhar que ele parece direcionar à quilo que ninguém dá muita importância, veio logo em mente o mestre Quintana: "Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aÃ..."
é isso, até!
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