É estranho voltar a este texto um ano depois. Ele foi escrito no domingo anterior ao inÃcio do carnaval de 2006. Tudo era diferente. O meu sentimento pelo Rio estava em alta, tudo o que importava era a minha vida carioca dar certo com a minha mulher e seu filho ao meu lado. O texto a seguir encerra estas impressões, todas sobre minha experiência com o carnaval no ano passado. De lá para cá, pintou um emprego melhor em São Paulo, fui apoiado para vir e vencer, mas, por algum motivo, minha mulher, maior apoiadora da minha vida e da minha subida profissional, desistiu de nossos planos de felicidade em favor de coisas fugazes. E eu não desisti. Este texto é um reflexo de coisas em que ainda acredito fortemente. Acredito que ela voltará a acreditar também. E, neste dia de carnaval em que estávamos juntos, Gabriela, só posso dedicá-lo para você, para que você se lembre de coisas que vivemos, de como somos (ainda somos) e de como as coisas que você me apresentou, como esta festa popular, fazem de você a pessoa mais importante para mim. Neste carnaval, em que você desfila com outro, sim, eu sei que ainda te amo. E, para vocês, outros leitores, ficam as impressões do primeiro carnaval carioca de um paulista ainda apaixonado — impressões que resolvi deixar intocadas.
Vale a curiosidade: este deveria ter sido o texto de encerramento da primeira fase do Overmundo, ainda apenas um blog em testes, mas a entrada no ar da versão oficial atropelou tudo e me permitiu escrever isto tudo.
O Rio de Janeiro, neste domingo, encerra a sua intensa programação de carnaval. E, quer saber? Foi uma das festas de proporções muito maiores do que dos anos anteriores, e vários dados comprovam isto. O governo estima, por exemplo, que o número de blocos populares desfilando por quase um mês na cidade praticamente dobrou neste ano. Nestes blocos, a participação efetiva dos foliões também teve um belo acréscimo, causando ao trânsito um transtorno atÃpico até mesmo para esta época. Os hotéis também não reclamam: os turistas, segundo eles, esticaram suas estadias no Rio em pelo menos três dias, em média. Nada estranho, se considerarmos a concentração de dois megaeventos na cidade num espaço de tempo muito curto (ou seja, o show dos Stones e o próprio Carnaval). Não participar de alguma coisa no meio deste caldeirão seria um crime. E crime eu não cometo. Resolvi, pois, acompanhar um bloco só pra ver qual era.
Acabei parando, no domingo antes do carná, bem no meio do Sovaco do Cristo. O Sovaco é um dos blocos mais populares da cidade e desfila na Zona Sul. Porém, ele demonstra bem a mistura que rola na cidade durante os dias de folia. Quem vem nele geralmente chega desde o Botafogo até a Rocinha, incluindo todos os bairros próximos. A avenida Jardim Botânico é interditada e a festa começa ao meio-dia. Mas o trabalho começa pelo menos três horas antes, com a chegada de carros de som que, aqui e ali, vão lançando os sons que vão agitar a massa. Que, aliás, é prova do crescimento fermentado do carnaval popular carioca: de dez mil pessoas no ano passado, a participação quintuplicou. Isso mesmo: cinqüenta mil pessoas fazendo a festa.
Pra você que nunca veio ao Rio nesta época, como era o meu caso, deve entender que os blocos são um pouco como escolas de samba: possuem alas, bateria, puxadores de samba (e, claro, um samba-enredo), bandeiras, fantasias e alegorias. É algo muito sério para quem participa nos meses que antecipam a saÃda do bloco, mas que se torna alegria pura quando este toma as ruas.
Apesar da pacificidade e da alegria, no entanto, o volume de gente às vezes assusta. Teve uma hora que eu nem conseguia entender mais de onde vinha tanta gente – pois, confesso, eu achava que blocos eram coisas muito mais modestas do que são na realidade. E esta massa fez com que a grande maioria dos estabelecimentos comerciais da avenida (e, depois, também os do Baixo Gávea, lugar em que se encerra o desfile e o povo se concentra) cerrasse as portas, esperando a turba passar.
Incidentes? Nada mesmo sério. Soube de uma ou outra briga, mas é aquela coisa que acontece até em baile num salão de interior. De resto, ninguém queria saber de outra coisa. Era brincar, beber e comemorar um belo domingo. O que fez a festa dos inúmeros vendedores ambulantes no local. Além dos tradicionais vendedores de bebidas, tinha gente comercializando também serpentina de espuma, doces, empadas (outra mania carioca) e até o bizarro mel colorido de metro. Quem come mel flavorizado num domingo de carnaval a quase quarenta graus, não faço idéia. Mas que o ambulante estava com uma cara bem feliz, isto estava.
Muita gente fica nos prédios vizinhos, vendo de camarote. Mas o incrÃvel é observar o número de pessoas que ficam alheias à festa e ficam na avenida tentando levar um domingo como se fosse rotineiro. Percebi, ao andar, inclusive muito marmanjo reclamando de uma suposta pouca vergonha. Muitos dos quais, em verdade, paravam de chiar sempre que passava uma moçoila de belos dotes e roupa parca. Mas o destaque destes foi mesmo uma senhora, beata, de óculos grossos, saia escura e camisa de botões fechados até em cima, distribuindo alguns panfletos. Neles se podia ler a mensagem profunda: "O que você conhece de Cristo? O sovaco?".
A mensagem da Igreja Metodista, que fica na avenida, procurava encorajar alguns daqueles que festejavam a procurar um rumo diverso à pândega imperante no desfile do bloco. Mas o Sovaco de Cristo (nome dado devido ao fato de que, visto da avenida, a estátua do Corcovado não revela mesmo mais que a parte inferior do seu braço direito aos passantes) seguiu alheio a isso, aos temerosos comerciantes, ao homem do mel, aos ranzinzas e a mim. Fez a festa das pessoas e certamente deu muito trabalho aos garis nas horas seguintes ao fim de tudo.
Foi assim também, como soube, em todos os grandes blocos da cidade: um carnaval de rua magnÃfico, cada vez mais grandioso e popular, cada vez mais distante da gringofest que se tornou a jornada carnavalesca da Marquês de SapucaÃ. Lavou a alma de muita gente, que esqueceu por algum tempo a guerra do tráfico, as confusões do Pan 2007, a controvérsia dos governantes locais, as fortes chuvas e as gigóias nas praias. E, neste sentido, à sombra do Cristo, tive que engolir meu paulistismo e admitir: o carná carioca é, até por necessidade, redentor.
Delfin,
Dando uma luz em algumas coisas: a bateria do blocos geralmente vem de escolas de samba das proximidades, incrementada com tamborins dos "locais" do bloco; porta-estandarte tem sim, mas as fantasias é cada um por si. Alegorias geralmente são frases crÃticas pensadas numa reunião uma semana antes (pelo menos era assim no Simpatia, não sei como é no Suvaco).
E o melzinho é misturado com cachaca!
Aaaaaaaaah!
Então está explicado o segredo do melzinho, hehehe!
Valeu, Laus!
Delfin, você é paulista? Rapaz, só agora me dei conta. E não deixa de ser irônico: você, paulista, indo à luta no Rio, e eu, carioca, indo à luta (e também adorando) em Sampa.
No mais, belo texto - e apaixonado, como deve ser.
Ah, eu também já brinquei - e muito! - no Suvaco! ;-)
Relendo o texto agora, percebo algumas falhas estilÃsticas. Quanto a isso, eu realmente peço desculpas aos leitores. Mas a intenção era, realmente, de não mexer uma vÃrgula no texto original. Como, aliás, costuma ser em blogs bem sinceros.
Delfin · São Paulo, SP 20/2/2007 11:22Parabéns Delfim. Seu texto transmitiu a mensagem. Está ótimo.
Jotaoliveiraa · BrasÃlia, DF 20/2/2007 19:21
Grande Delfin! Na primeira vez que nos falamos pelo telefone, notei o sotaque. Agora veio a confirmação. :=) Mas quanto o texto, ele me fez pensar em quanto o clima do Rio mudou em um ano. Hj, quarta de cinzas, percebo que, graças à iniciativa privada, o carnaval de rua carioca continua melhorando. Mas não dá para negar o gosto amargo que os últimos acontecimentos deixaram na cidade. Para uma pessoa sensÃvel, foi difÃcil ser totalmente feliz.
grande abraço e parabéns
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