Conheço desde 1940 o Professor Curt Lange e o tenho em alta conta por sua grande e valiosa obra de musicólogo, que salvou da destruição e do esquecimento inapreciável acervo da criação musical brasileira. Lidei de perto, e bastante, com Curt Lange, quando exercia eu a função de chefe de gabinete do ministério da Educação e Cultura, nosso eminente co-estaduano Gustavo Capanema, e dou testemunho da admirável perseverança e do labor fecundo com que esse ilustre professor se consagrou à pesquisa e valorização de composições mineiras do passado, revelando um capitulo novo e empolgante da historia da musica do Brasil. - Carlos Drummond de Andrade
Devemos ao Professor Curt Lange uma impressionante façanha de "arqueologia" cultural: a redescoberta da face oculta do chamado "Barroco Mineiro" - O seu aspecto musical inovador - que conjugada à contribuição de escultores, pintores, arquitetos e poetas, integra e compõe a figura harmoniosa de um perÃodo privilegiado de nossa história artÃstica, desenvolvido ao longo do ciclo da mineração. Dar ao Professor Curt Lange condições para preservar seus achados e prosseguir em suas pesquisas, parece-me, portanto, iniciativa das mais oportunas e relevantes, digna do melhor apoio. - Haroldo de Campos
Na edição de 29 de agosto de 1959, em um texto intitulado "O Escândalo do Barroco", da revista O Cruzeiro, o musicólogo alemão Curt Lange foi duramente criticado e acusado por parte da imprensa, dos intelectuais e dos polÃticos brasileiros de se apropriar de partituras musicais até então desconhecidas da música do perÃodo colonial de Minas Gerais. Os trechos acima foram publicados na edição do Suplemento Literário mineiro como respostas de apoio ao pesquisador. O musicólogo morreu há 10 anos e a importância da sua pesquisa permanece ainda desconhecida para muitos.
Nascido na Alemanha, mas vivendo boa parte da sua vida transitando por quase todos os paÃses da América Latina, Lange dedicou quase toda sua vida profissional e pessoal à cultura musical do continente americano. Mesmo assim, seus objetivos foram questionados por aqueles que afirmavam defender a soberania da cultura latino-americana. No Uruguai, onde viveu a maior parte do tempo, Lange ajudou a fundar, dentre outras coisas, a Discoteca Nacional do Uruguai e o Boletim Latino-Americano de Música. Este é considerado a publicação de música mais importante das Américas na primeira metade do século XX. Os seis tomos publicados possuem diversos artigos acerca do tema e circularam entre as principais cidades do continente. A última edição do boletim foi inteiramente dedicada ao Brasil.
Mais bolivariano do que muitos pensadores e intelectuais da época, Curt Lange teve sempre a preocupação de divulgar a música latino-americana como um todo, sem fronteiras. Suas obras eram constantemente publicadas em português e espanhol (e em outras lÃnguas mais). Para além do nacionalismo cego - do qual acabou sendo vÃtima - o pesquisador contribuiu para afirmar a importância da música latino-americana. Mesmo tendo de lidar várias vezes com a falta de apoio e reconhecimento dos governos dos paÃses onde pesquisava, com a sua determinação germânica, Lange nunca abandonou a paixão pela pesquisa musical. Acusaram-no de compor, falsificar obras históricas para chamar a atenção. Lange foi acusado também de expatriar patrimônio cultural por supostos defensores da música brasileira, mas que até então não haviam dado a devida atenção a tal pesquisa.
Por outro lado, foi convidado por diversas universidades e institutos do mundo inteiro a ocupar cargos de coordenação de pesquisas. Mas preferiu fixar suas atividades sempre na América Latina, onde reconheceu um vasto material de expressões culturais e musicais para sua vida de pesquisas.
A Viagem
Em uma passagem pelo Rio de Janeiro, visitando a Biblioteca Nacional, Lange levantou as primeiras suspeitas sobre uma produção musical nacional anterior ao século XIV. O pesquisador conheceu o poeta e então chefe de gabinete do Ministério da Educação e Cultura (relativo ao Ministério da Cultura de hoje) Carlos Drummond de Andrade. Reconhecendo o interesse do alemão pela pesquisa da cultura nacional, Drummond o colocou em contato com JK. Em agosto de 1944, a convite da Prefeitura de Belo Horizonte, Lange hospedava-se no Grande Hotel, que à época recebia os principais intelectuais do paÃs. O professor não sabia que estava prestes a iniciar uma das maiores descobertas da música brasileira da época.
Foi em terras mineiras que Lange deu inÃcio a uma verdadeira empreitada pelo interior (muito mais inacessÃvel na época), dirigindo um jipe e batendo de porta em porta à procura de partituras musicais que lhe revelaram compositores musicais até então totalmente desconhecidos. Em entrevista, uma vez Lange afirmou que: "batia de porta em porta para perguntar à s viúvas dos netos dos compositores se havia sobrado alguma coisa do marido. Elas me apresentavam baús cheios de preciosidades. Eu ia oferecendo dinheiro e salvando a papelada da fogueira – hábito antigo das viúvas. Assim descobri que a escultura e a arquitetura mineiras coloniais tinham sua contraparte musical. Uma genealogia de músicos mulatos, saÃdos das irmandades laicas, começava a surgir diante de meus ouvidos: José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Manoel Dias de Oliveira, Inácio Parreira Neves e tantos outros". Não fosse a viagem histórico-musical do alemão pesquisador, talvez os únicos registros musicais de diferentes compositores da música brasileira do século XVII se perderiam. O ineditismo do material descoberto era tal que o pesquisador foi acusado de inventar as partituras para chamar a atenção da mÃdia. O mesmo texto da revista O Cruzeiro afirmava: Mas a verdade é que as perguntas dos crÃticos continuam sem resposta e enquanto o Professor Curt Lange, ou o Ministério da Educação não o obriga a se decidir pelo menos a apresentar os originais para exame dos especialistas, nunca estaremos certos ao ouvir a Missa em Mi Bemol, presumivelmente composta em 1785, se estamos mesmo ouvindo Lobo de Mesquita ou o cavalheiro Francisco Curt Lange.
O que até então se pensava era que artistas como Aleijadinho foram únicos, casos esporádicos e anormais no Barroco Mineiro. Pesquisas como a de Lange ajudaram a descortinar um tipo de zeitgeist nas artes desse perÃodo.
Para André Guerra Cotta, coordenador geral do Acervo Curt Lange, na medida em que as pessoas conhecerem a reflexão que vem se fazendo sobre o que significou Curt Lange, a tendência é que se reconheça mais plenamente o seu valor para a história e a cultura brasileira. "Ainda acho que o preço que ele pagou foi muito alto. Toda essa guerra moral que fizeram contra ele foi uma grande injustiça", afirma.
O acervo
A obra acumulada em décadas de viagens por todo o continente (Lange era quase um nômade e vivia percorrendo as capitais latino-americanas) é tão importante que o seu acervo criou interesse de universidades americanas e européias, mas, como pedido do próprio autor, todo o material deveria se transformar em pesquisa aberta em um dos locais que mais lhe rendeu descobertas, Minas Gerais.
As partituras foram alocadas no Museu da Inconfidência e o seu acervo pessoal foi destinado ao Acervo Curt Lange, localizado na Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais. Este contem mais de 75 mil cartas que o pesquisador trocou com mais de 9500 interlocutores de 76 diferentes paÃses. As correspondências foram trocadas principalmente em espanhol e português. É talvez a mais importante reunião de documentos sobre a produção musical da América Latina. A correspondência acompanha o trajeto geográfico, além de ser um registro dos diálogos entre o pesquisador e intelectuais, polÃticos e professores do mundo inteiro.
O material (extremamente bem conservado e manipulado) atrai constantemente pesquisadores do outro lado do Atlântico, enquanto ainda, infelizmente, passa anônimo a pesquisadores e estudantes da área. O acervo guarda também instrumentos, fotografias , aparelhos de gravação do pesquisador e parte da sua biblioteca pessoal.
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Mais fotos...
Sérgio, fico curiosa para tentar ver a situação toda com os olhos da época e entender o que se passava na cabeça dos que criticavam. Será que era só pelo fato de ser um estrangeiro que gerava desconfiança? Ou os métodos ousados dele de bater de porta em porta que deixavam todos de orelha em pé? Por que essa desconfiança louca de que ele inventava as partituras, se era um pesquisador sério e conceituado? Que coisa estranha tudo isso...
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 6/11/2007 15:20Será que era coisa de bairristas achando que em Minas Gerais não se produziria coisas massas?
Mi [de Camila] Cortielha · Belo Horizonte, MG 7/11/2007 11:17Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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