Quando chegou à minha caixa de correspondência o mais recente livro de Carlos Orsi não pude deixar de pensar nos catecismos pornográficos que Alcides Caminha assinava com o pseudônimo Carlos Zéfiro durante a década de 60 no Rio de Janeiro. O saudosismo foi despertado pela forma como foi produzida a novela O que o olho vê, pela Scarium, editora mantida pelo carioca Marco Bourguingnon. Responsável pela mais longeva publicação em papel dedicada à ficção fantástica no paÃs – um zine com o mesmo nome da editora por onde já publicaram os melhores escritores de ficção cientÃfica, horror e fantasia brasileiros que já está indo para a edição de número 26, com chamada para submissão de contos de FC – a empresa mantém sua loja virtual desde 2002. Mesmo com esse pé na tecnologia, não perde o status artesanal de seus impressos, como os livros de sua coleção Scarium Fantástica, da qual a nova obra do jundiaiense que já foi assunto do Overmundo por três vezes – primeira, segunda e terceira – é o terceiro volume.
Editada em um formato de bolso, com 13 cm por 18,5 cm, 48 páginas, encadernação grampeada e a capa, monocromática roxa, colada por cima, a novela tem o charme das primeiras publicações do gênero, na época pioneira das pulp magazine. Só faltou o papel já vir amarelado para dar ainda mais o clima de folhetim, que já começa com a citação escolhida pelo autor, de Iam Fleming, no original, na lÃngua de James Bond: “Nunca mande um homem quando puder mandar uma balaâ€. Uma citação muito adequada, já que a trama é também de espionagem e de intriga internacional. Mas se fosse apenas isso que fizesse parte da receita, O que o olho vê não seria uma representante da literatura fantástica. O que a insere nesta vertente é que a novela também é uma ótima história alternativa, subgênero dos mais respeitados da ficção cientÃfica.
A história alternativa, ou HA, é um meio furtivo de levar a ficção cientÃfica a quem tem reservas com o meio. Mesmo editoras que são declaradamente restritivas à FC já publicaram este gênero que faz especulações com a História e, portanto, é, sim, conceitualmente, ficção cientÃfica. Caso da Cia. das Letras que durante muito tempo informou em sua página na Internet que não aceitava receber originais deste ramo da literatura. Felizmente, tal decisão editorial não a impediu de publicar os excelentes livros Associação Judaica de PolÃcia – no qual o consagrado Michael Chabon especula um mundo em que Israel foi varrido do mapa e os EUA cedem o Alasca provisoriamente como lar para os judeus do mundo –, ou Complô contra a América – do ainda mais consagrado Philip Roth, que com falsas memórias de sua infância imagina um pró-nazista Charles Lindbergh chegando à presidência dos Estados Unidos nos beligerantes anos 40.
Editoras voltadas ao gênero também lançaram sua cota de HA, como a Aleph que republicou no Brasil a obra de outro Philp, o K. Dick, autor de um dos primeiros e mais famosos romances do gênero, O homem do Castelo Alto, no qual, sempre consultando o oráculo do I Ching, escreveu sobre um mundo no qual os paÃses do Eixo venceram a II Guerra Mundial, o que levou alemães e japoneses a dividirem o território americano entre si. Mesmo assim, o maior astro do gênero, Harry Turtledove, ainda não é muito conhecido no Brasil, mas conta com tradução para nossa lÃngua ao menos em Portugal, onde foi lançado recentemente, pela editora SaÃda de Emergência, O dilema de Shakespeare, livro robusto no qual o dramaturgo é convocado a escrever uma peça que sirva de inspiração à resistência dos ingleses que tiveram seu paÃs dominado pela Espanha católica e inquisitorial do rei Filipe e sua Armada InvencÃvel.
O Brasil não é apenas consumidor, mas também produz história alternativa. O maior incentivador e um dos pioneiros no gênero em nosso paÃs é o carioca Gerson Lodi-Ribeiro. Apesar de o veterano J. J. Veiga ter escrito antes uma história em que Antonio Conselheiro sobrevivera ao cerco de Canudos, é uma noveleta de Lodi-Ribeiro a mais citada como precursora das HAs em nosso paÃs. “A ética da traiçãoâ€, publicada na Isac Asimov Magazine brasileira, falava de um Brasil que havia perdido a Guerra do Paraguai, mas, em compensação, se tornara um paÃs mais desenvolvido. Este texto e outros de uma segunda linha de especulação do autor, na qual os holandeses não foram expulsos, mas se aliaram aos quilombolas e se mantiveram em Recife, foram compilados em forma de livro: Outros Brasis, da Mercuryo, em 2006. Antes disso, quando se comemoravam os 500 anos da descoberta do Brasil, ele já havia organizado uma coletânea inteira do gênero, chamada Phantastica Brasiliana, pela editora Ano-Luz, da qual participou Carlos Orsi, como coeditor e um dos autores.
Após o intervalo explicativo, vamos voltar a O que o olho vê. Esta novela de Carlos Orsi já estava escrita há tempos, foi concluÃda logo após sua participação em Phantastica Brasiliana, portanto, antes dos atentados de 11 de Setembro e muito antes desta pandemia de gripe suÃna que preocupa o mundo. Tudo isso torna ainda mais saborosa a sinopse com que o editor Marco Bourguingnon descreve o livro: “Um estudante brasileiro de Cosmologia vivendo nos Estados Unidos da América, ou melhor, nos Estados Cristãos da América, acaba se envolvendo em uma emaranhada trama de espionagem internacional. Ele parte para uma missão importante, recuperar os códigos do vÃrus da gripe suÃna escondido artificialmente dentro de um olho.â€
Este é um bom resumo da trama, narrada em primeira pessoa pelo brasileiro que nunca tem seu verdadeiro nome revelado. O que torna o livro uma história alternativa é uma diferença básica entre aquela linha do tempo e a nossa, algo que no jargão do meio é chamado de ponto de divergência. No universo elaborado por Orsi, os Estados Unidos foram atingidos por uma epidemia de gripe tão forte em 1915 que o paÃs se viu impedido de entrar no que seria a Primeira Guerra Mundial para auxiliar a Inglaterra. Sem essa participação, o Império Britânico caiu, o mundo islâmico de alguma forma se tornou o maior produtor de tecnologia e quanto aos EUA... Como escreveu Bourguingnon eles se tornaram uma república fundamentalista e substituÃram o United por Christian, em apenas um exemplo das diferenças entre este mundo e o nosso. Parte da brincadeira é ver o novo significado de siglas como MIT ou da expressão que substitui a nossa conhecida Cortina de Ferro. Fora as apropriações bÃblicas e do Alcorão para explicar termos cientÃficos da cosmologia, como a explicação para a radiação de fundo ou o novo nome do Big Bem, os melhores achados do livro, verdadeiros exemplos de catecismos cientÃficos propriamente ditos.
É curioso que o autor tenha se contido para evitar falar mais, detalhar, exemplificar mostrar mais exemplos dessas novas sociedades imaginadas por ele. Como ficou, O que o lho vê é uma ótima novela, evocando conceitos de inteligência artificial, nanotecnologia, fisiologia humana, fÃsica de partÃculas entre outros temas que o autor, jornalista especializado em divulgação cientÃfica, sabe lidar como ninguém no Brasil. Mas dá o que pensar no que poderia ser um romance sobre este mundo em que a guerra fria se mistura à guerra santa dando origem a um mundo ao mesmo tempo novo e tão reconhecÃvel. Resta torcer para que Carlos Orsi volte ao tema e aprofunde os detalhes dos quais só nos deixou espiar a superfÃcie. A impressão é de que é possÃvel trazer muito mais à tona.
E nesses tempos de crise e de vários lançamentos imperdÃveis para quem acompanha a FC nacional (dê uma olhada na lista compilada por Fernando Trevisan em seu blog) uma ótima notÃcia é o preço deste lançamento. Na loja virtual da Scarium, a novela pode ser adquirida de qualquer parte do paÃs por apenas oito reais. Não se pense que pelo preço ou pela produção artesanal vai se estar levando um produto mal-acabado. Apesar de a proposta de capa não ter me agradado e muito pouco ter a ver com o conteúdo da obra – há algo vagamente citado bem ao final do livro – esta novela está muito bem produzida e com um Ãndice de erros de revisão aceitável mesmo se comparado ao de editoras maiores. Além de alguma confusão com o uso de itálico para diferenciar a fala do narrador da de uma inteligência artificial presente na história, percebi apenas cinco deslizes. Na página 18, aparece “tranaformá-la†no lugar de “transformá-laâ€; na 26, “quer†no lugar de “que†e “quatro†no de “quartoâ€; na 33, “batias†no lugar de “batiaâ€; e a repetição da palavra “dentroâ€, na 36. Ou seja, o catecismo cientÃfico da Scarium é tão bom e barato e satisfaz tanto quanto os do Carlos Zéfiro.
Ótima resenha como sempre =) Não vejo a hora de pegar meu exemplar na Fantasticon...
giseliramos · São Paulo, SP 22/7/2009 19:44
Ah, é. Você foi a feliz ganhadora do sorteio. :-)
Parabéns e obrigado pelo voto e pelo comentário, Gi.
Adoro esse tipo de história, quero ler o livro!
Abs
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