Esse é o refrão de uma das marchinhas que se pôde ouvir pelas ruas do Centro de Belo Horizonte nas ultimas semanas, mais especificamente no Bairro de Santa Tereza e nas imediações da Praça da Estação nos sábados à tarde. Não é o único, mas chama a atenção ser justamente esse um dos mais cantados.
Vale destacar alguns aspectos no mÃnimo curiosos desse fenômeno, que traz consigo toda uma nova perspectiva cultural, polÃtica e comportamental para a cidade.
Em primeiro lugar se destaca a afronta clara a uma idéia de moral e bons costumes representados pela tradicional famÃlia mineira. O imaginário nacional que se criou em torno de Minas Gerais dá conta de um estado que abriga uma população conservadora e recatada, passiva e ingenuamente desconfiada. Esse imaginário remonta ao perÃodo colonial, formando uma espécie de caricatura generalizada que não corresponde à s transformações ocorridas no decorrer do processo de urbanização intensa de Belo Horizonte e das principais cidades do estado nas últimas décadas. Chutar a famÃlia mineira é, portanto, mais do que uma simples agressão verbal, um grito de inconformismo, uma tomada de consciência e uma chamada para si de responsabilidade. Não é gratuito o fato de que o movimento do carnaval de rua, que popularizou a marchinha desbocada, seja de certa forma o desdobramento de um protesto lúdico e inusitado contra um decreto municipal que proibia eventos nas praças públicas da cidade. Mais do que contestar o decreto que dá prosseguimento ao processo de higienização urbana e prepara o terreno para a especulação comercial dos espaços públicos da cidade, a Praia da Estação é uma manifestação espontânea, um happening em resposta à suposta passividade e conservadorismo dos mineiros. Ou alguém considera uma grande onda de plástico azul vestida por dezenas de manifestantes usando sungas e biquÃnis descendo a principal avenida da cidade até desaguar numa praia de concreto e cimento e se misturar com a água de um caminhão pipa e da fonte que jorra ali uma manifestação conservadora e recatada?
O movimento da Praia da Estação é sem dúvida um dos gatilhos da retomada do carnaval de rua em BH e para entender o fenômeno é preciso identificar alguns dos atores envolvidos. Quem puxou o bonde inicialmente foram militantes de movimentos sociais de resistência urbana e logo receberam a adesão da classe artÃstica. A maioria participante de coletivos hÃbridos formados por músicos, produtores, designers, artistas plásticos e estudantes, muitos ligados ao universo do rock alternativo. Pode parecer estranho que a retomada do carnaval na cidade esteja associada a esse perfil, mas quem conhece a cena sabe que só uma atitude punk, no melhor sentido do termo, poderia promover uma reviravolta. É um tratamento de choque na sensibilidade supostamente acomodada de não cultivar tradição recente de carnaval de rua. Claro que o vÃrus se espalhou e outras tribos se agregaram ao movimento, engrossando o caldo e dando aos blocos a diversidade e mistura que uma festa carnavalesca exige. Inclusive os sambistas, claro, cansados de trazer cariocas da Lapa para cá e nunca serem convidados pra tocar na cidade maravilhosa.
E o viral se espalhou por outras praias também, em Juiz de Fora por exemplo, uma das maiores cidades do interior, um grupo igualmente aguerrido também resolveu brincar em casa e organizaram o 1º Concurso de Marchinhas, tomaram as ruas da cidade com o Bloco Parangolé Valvulado e acabaram fomentando a criação de outros blocos num efeito cascata.
Mas é interessante perceber também que uma grande movimentação aconteceu virtualmente, paralela e simultânea através de sites, blogs, Twitter, mas principalmente no Facebook, onde os ensaios eram marcados, os horários de saÃda dos blocos organizados, as letras e gravações das marchinhas disponibilizadas e claro, o resultado, com fotos, vÃdeos e depoimentos pós-saÃda. É a militância 2.0.
Por causa dessa sincronicidade virtual os vinte e poucos blocos na verdade formavam praticamente um só bloco com algumas centenas de pessoas, porque todos participaram de todas as saÃdas e cantaram todas as marchinhas. Nos primeiros dias eram pouco mais de duzentas pessoas, mas na terça de carnaval havia mais de duas mil pessoas num único bloco, ou seja, todos os blocos juntos graças ao boca-a-boca fÃsico e virtual. Pode parecer pouco para uma cidade de 4 milhões de habitantes, mas é muito significativo para quem conhece a realidade carnavalesca da capital mineira. Além disso mais da metade dos blocos saiu pela primeira vez esse ano, e todos com marchinhas próprias cantadas em coro.
A ideia que se tinha até então do carnaval em Belo Horizonte pode ser resumida na seguinte imagem: alguém andando nu, sem ser incomodado, na pista central da principal avenida da cidade, a Afonso Pena, em plena terça-feira de carnaval. Não se encontra alma-viva pelas ruas, nada de trânsito, aglomerações, tudo fechado, quase uma cidade fantasma.
Ora, uma cidade onde durante o carnaval as manifestações espontâneas dos foliões pelas ruas é proibida, onde a opção é viajar ou ficar em casa, é sinal de que alguma coisa está errada. Primeiro porque é caro viajar, principalmente nesse perÃodo. É incômodo, as estradas ficam cheias, aeroportos e rodoviárias insuportáveis. Não haver uma opção digna para pular o carnaval a não ser viajar é indÃcio claro de um tipo de esquizofrenia na relação da cidade com suas opções de lazer. Parte da população trabalha o ano inteiro e extravasa parte da pressão e da opressão nesse perÃodo. Não fornecer essa válvula de escape é montar uma bomba relógio que pode explodir a qualquer momento na rua, no trânsito, no estádio de futebol.
É óbvio que a falta de opção contribui para aumentar a tensão social. A catarse do carnaval ajuda a manter um certo equilÃbrio. Quem pode viajar no perÃodo do carnaval e aliviar o estresse do dia-a-dia é quem tem dinheiro. A maioria menos afortunada tem de contentar-se com os desfiles das escolas destituÃdo do luxo e do glamour das escolas do grupo especial do Rio ou então acompanhar os flashes da folia pela cobertura jornalÃstica na TV. Nenhuma das opções é nada animadora. Se todos pagam impostos e têm direito constitucional à diversão e ao lazer o poder público não pode simplesmente ignorar essa demanda legÃtima.
Mesmo com apoio oficial e um esforço para fazer acontecer as escolas de samba de Belo Horizonte em geral são arremedos das grandes agremiações cariocas - esse ano inclusive houve protestos devido a compra de adereços e carros alegóricos utilizado pelas escolas do Rio no ano anterior. Um fato curioso foi a transferência dos desfiles das escolas, que aconteceram nos últimos anos na Via 240 do bairro Aarão Reis, de acesso difÃcil para quem vai do Centro. Esse ano as arquibancadas foram montadas estrategicamente na Avenida dos Andradas, no trecho chamado pelo pelos mais afetados de Boulevard Arrudas, exatamente em frente à Praça da Estação. Curiosa a atitude de ocupação e enfrentamento ensaiada pela Prefeitura. Surtiu efeito contrário, porque os blocos não só ocuparam o espaço, como foram incorporados pelas escolas mais descoladas e visionárias, que perceberam ali a possibilidade de outra via integração com a população da cidade.
Apesar dos investimentos públicos da ordem de 1,5 milhão ninguém saiu do “sambódromo†cantando nenhum dos sambas-enredo. Quando a festa começa a ficar cada vez mais corporativa inclusive no tradicional carnaval das cidades históricas do interior do estado, com camisas e abadás vendidos a preços impraticáveis, chegando a dois salários mÃnimos, a manifestação de rua genuÃna e com toques de ingenuidade na capital parece recuperar um certo espirito anárquico da festa, antes da homogeneização elétrica baiana e da espetacularização turÃstica carioca. As pessoas na rua fantasiadas, homens travestidos de mulher, piratas, bailarinas, Carmens Miranda e Anas de Hollanda de mãos dadas, crianças brincando, o bloco inteiro cantando espontaneamente, só aconteceu nos espaços não-oficiais.
Mas, se divertiu os foliões, o refrão também incomodou. Prova cabal de que a cidade sofre de algum tipo de esquizofrenia coletiva, o Bloco da PM, vestido a caráter com capacetes, escopetas, escudos e cacetetes, interrompeu a festa na Avenida Brasil sob a alegação de desordem no meio da tarde em pleno sábado de carnaval. Como diria Rafael Barros, o Tcha-Tcha, um dos principais articuladores da cena atual: “ pular carnaval em BH é um ato subversivo!â€
Não há dúvida de que a força dessas marchinhas reside no potencial subversivo que elas carregam. Os blocos Alcova Libertina, Praia da Estação, Manjericão, Filhos de Tcha-Tcha, Peixoto, Tico-Tico Serra Copo, Podia Ser Pior, Tetê a Santa, Unidos do Samba Queixinho, Coletivo do DelÃrio, aPROAch, Mamá na Vaca, Bloco da Cidade, Vira o Santo, Beijo Elétrico, Unidas dos Grandes Lábios e outros tantos, para além do caráter lúdico e festivo emitem claramente um sinal polÃtico, à s vezes mais sutil, outras direta e incisiva, mas todas transgredindo a ordem estabelecida. O que não impediu, todavia, que as marchinhas fossem tocadas na Rádio Inconfidência, a FM pública do Estado. E haja rivotril institucional!
Num plano mais fechado é um momento também de afirmação de toda uma geração de criadores que utiliza a potência transgressora do carnaval para se afirmar no cenário, aproximando as pessoas, formando público, ocupando os espaços. No momento em que se discute em todo o paÃs a mudança da lei dos direitos autorais chama a atenção também o caráter coletivo do movimento, refletido na autoria das marchinhas, em geral creditadas aos coletivos. O detalhe, que pode ser verificado na publicação disponibilizada com as letras, soa como uma espécie de protesto subliminar à idéia de autoria, de posse, de exploração comercial de conteúdo artÃstico. E como negar que em algumas delas não há uma arquitetura cancional formidável? A própria marchinha da Alcova Libertina é um ótimo exemplo!
Outra conclusão imediata que se pode tirar deste carnaval é que ele reflete iniciativas recentes de ocupação cultural da cidade de uma forma libertária e criativa como o Duelo de MC’s no Viaduto de Santa Tereza, os painéis nos muros e shows relâmpago nas rotatórias pelo Coletivo Azucrina, as intervenções do Grupo Poro, as matérias inusitadas da TV Queijo Elétrico, as dicas antenadas do guia cultural Mixórdia, a ocupação do Mercado das Borboletas, além da militância festiva das bandas como o Graveola e o Lixo Polifônico, Dead Lovers, Pequena Morte, Fusile, Transmissor, Frito na Hora, Pêlos de Cachorro, Proa, Cinza, Cães do Cerrado, Julgamento e Monno, entre outras, gestoras e participantes de festivais como o Transborda e o Outro Rock.
É impressionante a capacidade de aglutinação e articulação dessa turma. Sem nenhum tipo de apoio oficial, aliás, contra todos os decretos e coação policial fizeram uma das festas mais bonitas da cidade nos últimos tempos. Daqui a alguns anos, quando o carnaval de Belo Horizonte for referência nacional – não pela opulência nem pela tradição, mas pela simplicidade e entusiasmo – quem foi atrás de outros trios não vai poder dizer que colocou o bloco na rua e ajudou a inventar o carnaval da capital mais efervescente do paÃs neste inÃcio de década.
Nota:
Um detalhe interessante é que não houve fiscalização do ECAD nas concentrações, como ocorreu no Rio com muitos blocos. Certamente eles ainda não atentaram para o fato; analógicos que são, não captaram os movimentos sÃsmicos virtuais. Por outro lado, se fossem seguir a regra aplicada aos blocos cariocas os fiscais sairiam de mãos vazias, já que o custo de saÃda dos blocos foi praticamente zero.
A verdadeira Moral fundamentada nos ensinamentos do Divino Mestre Jesus, traz em si as virtudes que enobrecem o Ser Humano. Sem ela a humanidade perde seu rumo.
Sáude e Paz!
carnaval é uma perda de rumo muito alegre.. :D e é importante, sobretudo, que todos possam festejar livremente sem estar pressos a normas morais inventadas tendo em vista somente o bem estar de alguns (e não de outros, de muitos, do povo, das ruas).
como diz o Makely, "festejar na rua em BH é uma atitude subversiva"!
alegria, saúde e paz!
Excelente texto! Sinto-me culpado de ter ido ao Rio neste Carnaval, mas ano que vem estarei aqui com vários cariocas, pode ter certeza!
Viva BH livre de provincianismo e recheada de foliões!
Massa Makely!
Parabéns pelo texto e viva a outra Belo Horizonte!
Se quiser dar uma olhada, também escrevi umas palavrinhas sobre o carnaval, aqui:
http://otransito.wordpress.com/2011/03/21/uma-outra-partilha-da-rua/
Um ano depois, retorno a esse texto e vejo que de alguma forma a promessa se cumpriu e o carnaval de rua de BH - que alguns apostaram que se esgotaria ali em 2011 - não só cresceu como se renovou, ganhando destaque nacional. Esse ano mais uma vez as marchinhas cumpriram papel fundamental dando um caráter incontestavelmente polÃtico e subversivo à festa. Que venham outros carnavais!
Makely Ka · Belo Horizonte, MG 24/2/2012 00:09
Acho massa, porém com ressalvas. Por que não chamamos a famÃlia mineira para participar? Venha, participe conosco. Imagino que nossas famÃlias são mineiras...a minha é! Viva o carnaval da rua!
Pelo texto dá para visualizar bem o acontecimento, e a animação dos blocos. Não tinha idéia, e achei sensacional. O tÃtulo chama a atenção, e deixa bem claro a idéia de irreverência na transgressão que está acontecendo no carnaval de rua em Minas. Adorei!
Natália Amorim · Rio de Janeiro, RJ 3/2/2013 12:35
Oi Videomaker, a famÃlia mineira participa, ou pelo menos os filhos e os netos da famÃlia mineira são os que fazem o carnaval de BH!
Natália, esse texto foi escrito dois carnavais atrás, a coisa hoje ganhou uma dimensão incrÃvel. Merece outro texto!
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