Certas histórias de vida impressionam pela forma obstinada com que as pessoas investem toda sua energia e tempo para realizar seus propósitos. Persistência, paciência e muita crença. Independente da rima, não é Raimundo, nem João, nem mudou o mundo, mas está fazendo sua parte, e muito bem feita por sinal.
O nome dele é Agostinho Bizinoto. Conversamos, ainda sob o calor da estréia do Festival Cinema na Floresta, na longínqua Alta Floresta que fica a 860 quilômetros de Cuiabá, mas nem por isso está fora de sintonia com a cena contemporânea.
Chega de lero lero. Vamos ao papo com o Bizinoto.
Agostinho, como você chegou em Alta Floresta?
Eu tinha uma curiosidade muito grande de conhecer uma cidade que já estivesse dentro dos limites da Amazônia. Surgiu essa oportunidade porque eu tinha um amigo morando aqui naquela época e lá em Uberlândia, onde eu estava morando, venceu o contrato de um trabalho que eu fazia. Pensei: "Não vou nem renovar, vou passar um ano por lá... “
Tudo aqui estava começando.
A cidade tinha dez, onze anos. Vim para cá com a intenção de ficar um ano e voltar. Cheguei aqui e o prefeito da época, foi o primeiro prefeito eleito de Alta Floresta em seu último ano de mandato, num papo que nós tivemos, falou: "Se você vier para cá, já vai chegar aqui e trabalhar". Vim e comecei a trabalhar na assessoria de comunicação, no início de 1988. A Elisa trabalhava numa agência de turismo em Uberlândia.
Vocês já estavam juntos?
Já estávamos juntos, ela falou: "Vamos!". Ela saiu dessa empresa pra gente passar um ano aqui e retornar, nós viemos e trabalhamos naquela administração em cargo de confiança já de cara, e a gente sabe que quando termina administração, você está fora. Então ia dar tudo certo porque eu trabalhava um ano e voltava. Quando terminou o mandato do prefeito, felizes por ter conhecido uma cidade da Amazônia, voltamos pra Uberlândia.
O prefeito que ganhou a eleição seguinte ligou e falou: "O que vocês estão fazendo aí?". Disse para ele: "Viemos embora, mas nós vamos retornar para despedir dos amigos, ver mais algumas coisas, já estamos aqui em Uberlândia, organizando nossas coisas". Ele falou: "Não! Venha para cá, eu quero vocês aqui". Daí retornamos. E sempre assim, "vamos ficar mais um ano, mais um ano", só que, com isso, iniciamos um envolvimento muito grande com a comunidade, principalmente porque não tinha nada organizado na área artística cultural e muitas pessoas começaram a aparecer querendo alguma coisa. Ainda estava trabalhando no departamento de cultura na época, e com todo esse envolvimento começou a ficar difícil pra gente sair, até que deixamos de falar que íamos retornar.
Construiu aqui uma história.
Claro, claro. E aí as coisas começaram a caminhar e chegamos a ter, num curto espaço de tempo, catorze entidades artísticas culturais das mais variadas áreas. Fomos criando e trabalhando os núcleos: a associação dos cantores, os artistas plásticos, esse povo foi aparecendo e se organizando, formando novos núcleos, uns conhecendo os outros, e assim foi crescendo. Já existia na época um grande festival aqui, o FESCAF, Festival da Canção, ele foi revitalizado, reorganizado, reestruturado e com isso o trabalho foi se ampliando e ficando cada vez mais difícil sair daqui.
Em Uberlândia, vocês já eram envolvidos com a atividade cultural?
Fazia quase vinte anos que eu trabalhava na área cultural. Os contratos que eu tinha por lá eram ligados à movimentação cultural, ou através do poder público ou alguma empresa da área artística cultural. Quando cheguei aqui, claro, não dava pra ficar distante disso. E o interessante é que hoje nós temos aí várias pessoas que já são professores, adultos, formados, muitos deles continuam no movimento e que começaram criancinha, com cinco anos, seis anos, sete anos, oito anos. Hoje são formados e estão atuando aí na cidade como professores e em outras áreas também. Isso fortaleceu o movimento porque as pessoas foram assumindo um maior comprometimento para com a comunidade.
Como surgiu o Teatro Experimental?
Foi logo no início. Já no meio do ano seguinte foi criada a instituição do Teatro Experimental, inclusive registrado em cartório e logo reconhecido como de utilidade pública para o município e um ano depois como de utilidade pública para o estado de Mato Grosso. O Teatro Experimental foi a primeira entidade artística cultural devidamente organizada, instituída de forma legal aqui em Alta Floresta.
Fala-se muito hoje na possibilidade de uma militância mais aguerrida, mais guerrilheira, autônoma, e que muitas vezes confronta com as condições do Estado. Como é que você analisa essa relação mais legalizada e institucionalizada? Acha que é possível essa aproximação?
Nós aqui em Alta Floresta não temos tido grandes confrontos, mas também não arredamos o pé daquilo que nós acreditamos. Já tivemos momentos de conversar de uma forma mais séria, mais rigorosa, de falar: "Nós não concordamos com isso. Para nós, não é o caminho". Uma coisa que nós nos preocupamos desde o início é com a participação nossa na elaboração da legislação pública, nós entramos, participamos, discutimos, mostramos caminhos possíveis. Acho que agora, com a nossa participação na elaboração de leis que contemplam a cultura, conquistamos espaços da forma mais abrangente possível. A sociedade ganhou muito com isso.
Outra coisa que nós também fomos participar, foi da elaboração do plano diretor, nós estávamos presentes e participando das audiências públicas e de tudo mais. Hoje, nós temos uma vantagem de ter uma vereadora aqui do meio cultural, não é? Ela fez os devidos encaminhamentos, sobre o patrimônio histórico cultural, e hoje nós temos uma lei bastante completa nessa área do patrimônio cultural.
O Conselho Municipal de Cultura foi criado em 1990, e junto com ele criamos a lei municipal de apoio e incentivo à cultura que, nesse momento, está sendo repensada, pois os anos passaram, muitas coisas mudaram, tem que adaptar. Nós acreditamos que é importante, não para nós, mas para a comunidade, para o nosso município, para as gerações que virão. Eu acho que há essa falha em muito lugares. O artista, o produtor cultural não participa e quer que seja como ele quer, como que acontece isso? Não tem como! Então ele tem que estar lá dentro, tem que ir lá, se tem alguma coisa que diz respeito à nossa secretaria, nós temos que estar lá, porque senão essa ausência gera uma indiferença do poder público. Se você estiver presente dá para lutar. Nós defendemos essa participação desde que chegamos aqui, nós achamos que as pessoas que reclamam muito de apoio, geralmente, são as pessoas que menos fazem, falam "eu não faço porque não tenho apoio", em vez de ficar falando isso, vai fazer!
Alta Floresta, nesse sentido, vem se destacando no interior de Mato Grosso, a gente percebe isso no nível de organização, nos trabalhos que realizam para desenvolver o segmento cultural, eu pelo menos sinto esse impacto lá na capital. Como é que você avalia hoje essa relação do centro, que a capital apenas representa, como é que se posiciona os movimentos do interior em relação à capital, fazendo uma avaliação mais geral?
Outra coisa que nós pensamos um pouco diferente de alguns outros municípios, nós achamos que a capital tem uma dinâmica própria, tem várias funções que não diz respeito à uma cidade que não seja a capital. Tem uma série de coisas que gera uma dinâmica própria, típica. Agora o interior... hoje não tem mais lugar pra você fazer as coisas, o cara pode está lá no meio do mato na sua casinha vivendo a sua vida, se ele for um artista ele comunica com o mundo inteiro, e essa discussão de interior e capital vem de muito tempo, eu acho que nós temos os temas pra se discutir, nós temos temas comuns, vamos discutir sobre cultura e comunidade, quem vai estar discutindo não quer dizer que tenha que ser do interior ou da capital, nós temos que discutir temas que nos interessa, e já várias polêmicas surgiram na capital por causa disso. Penso que nós temos que ter uma integração dos fazedores de arte, de cultura, dos pensadores de forma mais aberta, de forma mundial.
Hoje existe uma maior possibilidade dessa integração, dessa ação, dessa vontade de fazer, dessa vontade de fraternizar a cultura, a cultura ter ternura, ter braços, ter entendimento, ter olhares, conjunto, ter um horizonte coletivo. Então, pra quê criar divisão? Tantas coisas que acontecem na vida da gente que já retalha a gente, nós vamos criar mais um muro, mais divisão, mais fronteira? Eu acho que não!
O teatro de vocês, aqui na Amazônia, vocês construíram isso aqui? O Teatro Experimental é auto-sustentável?
Tudo mesmo, não tinha nada! Então não tinha nem as pessoas minimamente preparadas ou interessadas, isso foi acontecendo. Primeiro teve uma espécie de iniciação, de formação de pessoas na área, na categoria. Depois, o Teatro Experimental, com o crescimento das pessoas começou a se organizar em outros instâncias, "agora precisamos brigar pelo espaço e tudo mais". Desde 1992 brigando por um centro cultural que agora está sendo levantado. São quinze anos sem tirar isso da cabeça, sempre correndo atrás, pra discutir isso, pra conversar sobre isso, pra cutucar nisso. Agora, estamos vendo aí que é pra valer. Não tem nem como derrubar aquilo lá.
São etapas, são estágios que o teatro está conquistando, foi conseguindo ao longo desses anos. Foi entendendo a importância disso e daquilo, priorizando certas ações para chegar naquilo que nós queremos.
Hoje, o Teatro Experimental não se auto-sustenta da forma que a gente gostaria. Como entidade nós podemos até dizer que hoje ele se resolve, hoje tem seu transporte, tem seu espaço, é administrado pela Associação de Teatro e pela Coordenação de Cultura. Sempre viabilizou projetos que deram sustentação em alguns momentos importantes. Participamos da Cena Brasil, ganhamos prêmios.
Uma coisa interessante também é que, o Teatro Experimental já entrou no teatro de dramaturgia. Nós temos vários espetáculos aqui em Alta Floresta que são feitos aqui mesmo, escritos do nosso jeito, com o jeito das pessoas, com os nossos problemas, com os nossos questionamentos. Nós já temos aí uns sete ou oito espetáculos que foram totalmente discutidos e escritos por pessoas daqui, tratando de coisas daqui.
O centro cultural, como é que está? O que vai compor o centro cultural?
Esse centro cultural...
Como vocês conseguiram? Eu vi lá e é enorme!
(risos) Como eu disse, nós começamos em 1992 essa batalha...
Quem está bancando a obra?
Olha, isso aí foi uma emenda parlamentar. Só que nós precisamos arrumar um recurso federal, que o que temos não vai ser suficiente, nós sabemos disso, mas já criamos uma comissão de acompanhamento e também pra entrar nessa parte de captar recurso.
Vai ser um espaço multiuso que podemos utilizar como cinema, como artes cênicas em geral, dança, música, pequenos shows, tem salas de administração, salas para palestras, salas para oficinas, além da sala de espetáculo.
Estão criando um cineclube?
Nós vamos criar agora uma comissão que vai cuidar da implantação efetiva do cineclube. Já faz uns três ou quatro anos que nós viemos discutindo, conversando, e agora chegou o momento que eu considero como o ideal. Já tem uma turma da UNEMAT (Universidade Esatdual de Mato Grosso) que está trabalhando nessa área e muitas outras pessoas da comunidade.
Agora nós vamos implantar definitivamente o cineclube que vai se chamar Cineclube Floresta. Nós já temos um espaço da UNEMAT que foi oferecido, se necessário for, para trabalharmos lá, além do próprio espaço do teatro que, encaixando horários ali, podemos também utilizar para projeções, discussões, debates, entrosamento do pessoal.
Nós queremos, a partir de agora, incluir Alta Floresta no audiovisual do planeta, hoje já podemos falar em planeta porque as coisas são muito rápidas.
E o "Cinema na Floresta", esse festival que foi muito bom, bem realizado, bem organizado, e com excepcional participação da comunidade. Como surgiu a idéia de realizá-lo, foi a partir dessa necessidade de fomentar o audiovisual?
Sim, ele veio inicialmente pra consolidar essa vontade de participar do audiovisual, incluir o audiovisual pra valer. Só que a coisa saiu melhor do que se pensava, o pessoal todo falando "esse festival tem que ficar, tem que repetir todos os anos". Tem até empresários colocando isso, a câmara setorial do desenvolvimento regional, estão juntos, vieram conversar com a gente dizendo, “isso aí é uma coisa que a gente acredita, não só em aspecto de diversão, de lazer e tudo mais, mas como investimento”.
Com a realização desse festival de cinema, nós percebemos um aspecto importante, que ele pode atrair também mais desenvolvimento para nossa região. Não vai ser mais uma pequena mostra que nós iremos fazer, não vai ser mais apenas um festival que a gente queria fazer e deixar solto. Nós vamos agora fazer essa criança crescer, se Deus quiser, porque o apoio da comunidade está sendo grande; da nossa imprensa; dos artistas; do pessoal do teatro, principalmente, que esteve muito empenhado; da nossa editora EGM; do empresariado; do poder público, via prefeitura e câmara de vereadores. Todos dizendo: “Vamos lá, acreditamos que vai ter mais, que vai continuar!” Então, nós vamos continuar sim.
E a editora EGM, qual a atuação dela?
A editora EGM surgiu em 96 com a revista "Região". Depois entramos também em outras áreas de editoração e uma das coisas que, de uns anos para cá, se trabalhou bastante, foi editar e divulgar os nossos autores, os nossos escritores.
Fizemos vários concursos de poesia. Já publicamos vinte e dois livros de autores locais que é uma função da EGM, que a gente acha muito importante. A partir dessas publicações nós estimulamos uma quantidade enorme de pessoas que está escrevendo. A prefeitura faz concurso literário anual em todas as escolas do município, somos parceiros e isso tem sido um ponto forte de atuação na área da cultura da editora EGM. O interessante também é que dentro da editora EGM só trabalha pessoal que é envolvido com a cultura. Todos os nossos parceiros estão no teatro, estão participando da música, um participa de uma coisa, outro de outra. Parece que não tem como sair disso porque a gente está sempre junto e envolvido.
Você já virou cidadão de Alta Floresta, então?
Eu acho que...
Não dá mais pra sair daqui...
Mesmo porque a minha mulher, Elisa, que é atriz, diretora de teatro, professora de literatura, ela também está na função de vereadora. Então se for reeleita, mais quatro anos..
No começo era um ano, agora são quatro.. (risos)
Então eu acho que não dá muito pra gente pensar nessa coisa, ficar por aqui, e acho que está bom. Hoje, como todos nós sabemos, não existe essa grande preocupação com a distância, hoje em qualquer lugar que se estiver, entra-se em sintonia com o mundo. É questão de querer, porque está tudo aí à disposição.
de qualquer lugar do mundo dá para realizar as coisas do ponto de vista da arte. do cidadão. do artista. como dizia goethe: de qualquer aldeia...
anna marimonn · Cuiabá, MT 4/6/2007 11:49alta floresta tem uma galera muito animada. é um lugar que promete muito...
eduardo ferreira · Cuiabá, MT 5/6/2007 13:01Muito legal, Edu. Acho que uma pessoa que tem essa visão política da cultura, como ele me pareceu ser, faz toda a diferença. A cidade deve ter ganhado muito mesmo com a chegada deste casal... Parabéns.
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 5/6/2007 15:27
é verdade helena. lembro que, quando trabalhei numa tv comercial (fazia um jornal especial, aos sábados, cheio de variedades: cultura e comportamento) em cuiabá, 1991, fiz uma entrevista com a elisa gomes. na época eles já demonstravam uma disposição incomum, além de um senso legal de organização e ação política-cultural.
nesse festival, fiz uma palestra, com foco no overmundo e as inúmeras possibilidades de conexão planetária via web e, ainda, privilegiando o conhecimento colaborativo - coletivo - livre. a palestra-bate-papo foi muito muito bacana.
Legal. Este aí é gente que faz! Chegou a vez do interior do país. 'Longe se vai, sonhando demais...' abração
Rodrigo Teixeira · Campo Grande, MS 5/6/2007 23:34
Muito boa a entrevista. Bacana poder conhecer realidades e iniciativas de lugares tão 'distantes'. A cultura não tem fronteiras não é mesmo?
Um abraço.
as fronteiras estão cada vez mais frágeis. ainda bem. não há limites mesmo mamede. a cultura tem esse incrível poder de alargar suas influências. vamos que vamos.
valeu rodtex. vamos revelando essas pessoas que fazem e muito pela cultura brasileira. o sonho não morreu!
É isso aí, Edu! Grande matéria, grande Agostinho, grande você!
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 10/6/2007 22:40grande fábio! feliz de te ver aqui de volta. grande companheiro. abração!
eduardo ferreira · Cuiabá, MT 12/6/2007 12:37Fico muito feliz em ver pessoas que vivem tão distantes de Alta Floresta fazerem bons comentários sobre o grande trabalho que Agostinho Bizinoto e Elisa Gomes fizeram pela cultura, especialmente para o Teatro. Sou membro do Teatro Experimental de Alta Floresta desde quando tinha 14 anos e posso dizer que aprendi muita coisa com esse casal, inclusive amar o teatro.
Ronaldo Adriano - Teatro Experimental · Alta Floresta, MT 20/7/2007 12:35Para comentar é preciso estar logado no site. Faa primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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