Maju Duarte
Do pedestal às camadas populares, a música clássica chega aos ouvidos do povo através de projetos como "Um Piano pela Estrada", idealizado e realizado pelo pianista carioca Arthur Moreira Lima, considerado um dos maiores pianistas da história brasileira. Ao longo de cinco anos, comemorados em 2007, foram nove estados, mais de 30 cidades e um novo projeto já em andamento: "Nos caminhos de JK". De Chopin a Pixinguinha, o repertório do pianista abarca clássicos da música erudita e de compositores brasileiros. Viajando pelo Brasil sob um caminhão Scania, o músico partiu de Diamantina (MG), onde nasceu o ex-presidente Juscelino Kubitschek, e finalizará o percurso na cidade de Redenção (PA).
Um espetáculo sobre duas rodas. Esse é o caminhão-teatro: sua carroceria logo se transforma em um palco com luzes e refletores. Em apenas uma hora, o público se dá conta de que está num teatro a céu aberto. Na platéia, jovens, adultos e crianças que nunca assistiram a um concerto de piano ou a outro espetáculo de música clássica. Um mundo estranho e envolvente proposto pela música e pela emoção que chega aos ouvidos já nas primeiras notas.
Um projeto caro, trabalhoso, que requer uma grande equipe de funcionários especializados e patrocinadores dispostos a investir na idéia. A equipe do caminhão-teatro é formada por 14 "operários da cultura", como gosta de chamar Arthur Moreira Lima. Iluminadores, motoristas, afinador, fotógrafo, produtor e técnicos de som. Uma grande equipe "mambembe" que passa metade do ano nesse ir e vir nas rodovias federais, apresentando espetáculos de música clássica para a periferia das cidades, comunidades ribeirinhas, seringueiros, lavradores. Gente simples e "doutores".
De passagem por BrasÃlia, onde realizou dez dias de apresentações em Taguatinga, Santa Maria, Samambaia, Riacho Fundo, Guará e em outras cinco cidades do entorno do Distrito Federal, o músico cedeu uma entrevista no dia 9 de maio, e falou sobre o projeto que leva adiante, sobre dificuldades e histórias engraçadas vividas nesses cinco anos de "Um Piano pela Estrada".
Quando e como surgiu a necessidade de realizar esse trabalho de levar música clássica a comunidades mais carentes?
A.M.L: Fui subsecretário de Cultura do Dr. Leonel Brizola, quando foi governador do Rio de Janeiro, e eu tive a sorte e a felicidade de trabalhar e conhecer Darcy Ribeiro e trabalhar com Edmundo Muniz. Já tinha feito muitos shows ao livre e como subsecretário de interior desenvolvi um programa de interiorização da música, levando a música instrumental, clássica, popular à s cidades do interior. Quer dizer, a Secretaria arranjava patrocÃnio, bancava, e as cidades davam apoio. E eu vi aquele trabalho de montar aquele palco meia-boca, depois a gente tocava ia embora e tinha que desmanchar o palco. Tudo saÃa caro para as prefeituras, para a Secretaria, pro patrocinador.
Em suma, eu achei que a idéia do caminhão-teatro era uma boa idéia. Daà fui vendo, andando pelo Brasil, procurando quem poderia fazer isso até que encontrei essa carroceria Argila, em Jaraguá do Sul (SC), e como eu sempre tive um pé em Santa Catarina, porque naquela época eu morava lá, ainda moro, e o pessoal de Jaraguá, uma equipe de engenheiros fazia carroceria sob medida. No começo foi tudo com meios próprios. Comprei o caminhão em cinco anos, enfim. Mas a idéia mesmo veio de eu ter trabalhado com Darcy Ribeiro, de ter convivido com pessoas que tinham esse olhar de democratização, uma preocupação com o povo. É claro que há muita aporrinhação atrás de patrocÃnio, porque dá um trabalho danado, mas a minha equipe é sensacional: gente de Minas, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio, São Paulo, nordestinos. Gente de todo o Brasil. Tudo é muito caro, porque são profissionais categorizados. Nosso esquema é de circo, entende.
Como você avalia a interação do público?
A.M.L: Eu faço uma música clássica bastante popular, ou seja, eu toco música clássica que já é quase música popular, por exemplo, a quinta sinfonia de Beethoven, Chopin, Mozart, Ernesto Nazareth, Heitor Villa-Lobos. Tudo que já pertence de uma certa maneira a um imaginário, quase que está impresso no código genético das pessoas. E eu também falo, porque você tem que interagir, você não pode chegar lá e só tocar, né. Em 1984, percorri o Brasil com um show interativo, com um libreto feito pelo Millôr Fernandes, eu tocava e contava histórias. Falava sobre a música, num texto bem-humorado do Millôr, mas também colocava muito "caco" meu. Havia um momento no show em que eu falava: "Vocês sabiam que pianista fala?" (risos), porque normalmente o pianista chega, senta e toca. As pessoas que moram nessas cidades mais simples nunca foram ao teatro, e como eles gostam.
Quais os compositores que não podem faltar no repertório das apresentações?
A.M.L: Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Aà tem os brasileiros: Villa-Lobos, Nazareth, Radamés Gnatali, Pixinguinha, e também Piazzola, que não é brasileiro, mas é sulamericano. E é um programa básico. Não é que ele seja fácil de tocar, mas não sei porque motivo algumas músicas tanto populares quanto clássicas caem no gosto do público. Talvez a melodia faça você guardar no ouvido. Nem sempre são as melhores músicas, ou são? Isso é uma discussão filosófica. São ou não são? Não sei. Acho que por um lado são. Se uma coisa atravessa séculos tendo sucesso é porque tem valor. Não é verdade? Olha as pirâmides do Egito. São essas maravilhas da arte.
Dentre essas viagens tem alguma que você possa destacar algum acontecimento ou história que lhe chamou a atenção?
A.M.L: Por onde passamos, conhecemos prefeitos simples, rudes, de cidades do interior, que dizem: "olha, eu não entendo nada, eu sabia que isso aà era importante, e trouxe isso pra cá, mas eu não sabia que isso era tão bonito". Ou seja, vale tudo. Já aconteceu do padre de uma cidade do Acre não deixar a gente se apresentar porque tinha festa da Igreja. Outro em Xique-Xique (BA) que disse "eu não quero isso aqui não", mas isso é muito raro.
Outra vez, o prefeito de Cabrobó (PE), em 2003, fez uma coisa linda. A gente ia fazer o "São Francisco - Um rio de música" e quando o prefeito soube que a gente ia se apresentar em Petrolina, telefonou pra gente e falou: "aqui só tem uma pousada em cima do posto de gasolina, mas vocês ficam na minha casa". E fizemos.
Ao mesmo tempo tem um que insiste e outro que não entende. No final o show foi lindo, ou seja, essas coisas não tem preço, o resto é Mast... (risos). Até que podia fazer esse anúncio, né? Você não pode nunca generalizar o comportamento das pessoas. Mas em geral é bom porque você mobiliza toda a cidade: o delegado, o destacamento da polÃcia, os secretários de governo, enfim. Em alguns lugares os prefeitos mandavam caminhões para recolher os seringueiros, os trabalhadores rurais para assistir ao espetáculo.
Toquei uma vez na Central do Brasil, na hora em que o pessoal ia pegar o trem. Então eu tocava pra uma porção de gente. Uns ouviam e iam embora, outros ficavam. O Noca da Portela foi meu convidado pra tocar também, cantou "se você sentir saudade ligar pro meu celular...". (risos).
Qual a sua opinião sobre o conceito de erudito referente ao paradigma alta cultura X baixa cultura?
A.M.L: Erudita é a música clássica ocidental, que evoluiu com a Revolução Industrial, com o aperfeiçoamento dos instrumentos, com as Escolas Filosóficas, até porque a música sempre foi atrelada à Literatura, agora isso não quer dizer nada. Por exemplo, eu não conheço nada de música javanesa. E música é música. Eu adoro música clássica, mas tem determinadas músicas que agradam de cara o público.
Mas respondendo a sua pergunta, acho que esse conceito já mudou muito. Você vê que os grandes concertos ao ar livre nos Estados Unidos, na Europa e mesmo no Brasil de música clássica ficam lotadÃssimos. Ou seja, há público. O negócio é que é muito caro fazer música clássica. Muito caro. Quando você vê uma orquestra sinfônica, aquele cara que tá tocando ali estudou durante vinte anos. É o tal negócio da chamada mão-de-obra utra-especializada.
Quais são as suas expectativas e planos para o projeto "Um Piano pela Estrada"?
A.M.L: Eu não quero completar mil concertos com o caminhão, como o Romário com essa história do futebol. Hoje é o número 154, mas pretendo chegar, sei lá, ainda não sei. Vai haver um momento em que não vai ser mais necessário, que vai ser mais difÃcil de fazer, que vou ficar mais velho ou que não vou conseguir mais patrocÃnio, mas não penso nisso. Para alguém conseguir fazer isso é preciso muita força de vontade e persistência. E à s vezes é difÃcil esse tino para administração vir do artista. É muito trabalho. Quando não estou na estrada, eu estou conversando com as prefeituras, buscando patrocÃnio. Esse circuito dos "Nos Caminhos de JK" vou acabar no Rio. Porque uma coisa é o que você planeja e outra coisa é quando você consegue mais do que o estipulado no começo.
Que conselhos você daria à nova geração de pianistas brasileiros e àqueles que alimentam o sonho de tocar o instrumento?
A.M.L: Eu não sei como se faz uma carreira de pianista hoje em dia. No meu tempo eu sabia, hoje em dia tudo mudou. Dentro da música você tem muitas coisas pra fazer: empresário, programador, disc-jóquei de música clássica, diretor do departamento musical de uma emissora de rádio, trabalhar na organização de concertos de óperas.
A música em si, a arte e a cultura tem um campo em que você pode ser um trabalhador cultural, um operário da cultura. Acho que a gente chega num momento da vida em que a gente precisa dar, utilizando aquela frase do Kennedy, que diz "não é o que o seu paÃs pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo seu paÃs". Acho que o meu paÃs já fez muito por mim. Me educando, me mandando estudar na Europa, e agora é a hora de devolver isso.
O que deveria ser feito no Brasil para que a música clássica se difundisse e ficasse cada vez mais acessÃvel a todas as camadas sociais?
A.M.L: O Brasil não tem dinheiro, tem tanta coisa que ainda tem que passar na frente da música clássica. O esporte e a cultura devem estar presentes, mas, por exemplo, quando eu morei na União Soviética, se perguntavam por que não se comprava mais pão e se deixava de lado essa história de mandar o homem pra Lua. E a resposta era que não, que havia um dever com a humanidade. Mas pra isso você tem que ter muito dinheiro.
Você não vai poder montar uma Orquestra Sinfônica no Haiti, vai? Não dá, não é ambiente pra isso. Em compensação, a Venezuela já tem há muitos anos um programa de orquestras jovens, maravilhoso. Mesmo um paÃs pobre, algum dinheiro ele tem que gastar com música. Porque isso faz parte da formação da sua elite cultural, intelectual, e quanto mais gente você puder incluir nisso é melhor. Acho que esse meu projeto gera um olhar muito positivo sobre a inclusão social. Acredito que estou fazendo a minha parte, mesmo que pequena, pela inclusão social.
MAJU... que belo depoimento e como é deprimente nós todos "admitirmos" que o Brasil não tem dinheiro para essas coisas. Costumo escrever que nas Prefeituras "há dinheiro PARA TUDO, menos para a Cultura". Malas e malssd de dinheiro nos hotéis e aeroportos e um projeto como este tendo que mendigar verba. Que paÃs é este?! CONTINUEM, têm meu apoio e incentivo ! Abraços do escritor 'NATO" AZEVEDO
"NATO" AZEVEDO · Ananindeua, PA 21/5/2007 20:30
Maju, seguem algumas sugestões de edição.
A frase "nunca foram ao teatro e como eles gostam." tá meio confusa. Acho que uma vÃrgula depois de 'teatro' ajudaria a frase a soar melhor;
"AÃ tem os brasileiros: Villa_Lobos, Nazareth": seria bacana trocar o _ por um hÃfen;
"Piazzola, que não é brasileiro, mas e sul-americano", acho que seria 'é'.
Acho que é só.
No mais, fiquei muito feliz com a matéria. Feliz por saber que existem ações inclusivas como esta; por ler que o Arthur paga com música aquilo que recebeu com instrução; por teres colocado uma matéria tão bacana 'neste' ar.
Um grande abraço.
Maju, parabéns por essa entrevista. Ela é um incentivo a projetos culturais que promovam o acesso dos brasileiros à arte e à cultura.
Um grande abraço
Galera, não sei o que aconteceu na hora da edição, mas eu havia enviado o tÃtulo assim Cinco Anos de "Um piano pela estrada" e pelo visto não foi.
Desculpe as reticências no tÃtulo, mas eu tb não entendi porque a edição saiu desse jeito, mesmo após a correção.
Obrigada pelos comentários e sigamos na divulgação de movimentos como esse!
Abraços
No Acre, mas especÃficamente em Rio Branco, à s margens do Rio Acre, num domingo como tantos outros, deparo-me com um palco, um instigante e inusitado piano. É isso mesmo, ele já veio aqui. Parabéns pela matéria.
Francisco Ralph · Rio Branco, AC 24/5/2007 13:29Oi Maju! Notamos agora que sua matéria está em destaque o pequeno defeito do tÃtulo. É um "bug" que nós, da moderação, já conhecemos e estamos trabalhando para solucioná-lo. Ele sempre ocorre quando é colocado alguma palavra ou frase entre aspas no tÃtulo. Consertei o seu tÃtulo, ok? Colocando, em vez de aspas duplas, aspas simples. Grande abraço e parabéns pela colaboração!
Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 25/5/2007 13:04PARABÉNS PELO TRABALHO, MESMO QUEM ESTà ACOSTUMADO A VER MATÉRIAS DE CULTURA EM JORNAIS FAZIA TEMPO QUE NÃO LIA MATÉRIA TÃO INSPIRADORA COMO ESTA , ONDE "O ARTISTA DEVE ESTAR AONDE O POVO ESTÃ". O MAESTRO SEGUINDO OS PASSOS DE DARCY RIBEIRO BUSCA MULTIPLICAR A CULTURA - SEMEANDO-A DE FORMA DEMOCRÃTICA. FELICIDADES
esmuniz · Rio de Janeiro, RJ 25/5/2007 18:27
Já tinha ouvido falar sobre esse projeto do Arthur Moreira Lima mas não tinha todas essas informações. Dá vontade de fazer o mesmo. Faço meu mestrado com uma bolsa estadual e isso é uma excelente contrapartida que podemos dar à sociedade que nos paga para estudar e pesquisar música. Algo que, à primeira vista, é tão supérfulo. Não dá pra fazer, pelo menos por enquanto, um projeto desses de nÃvel nacional mas dá pra pensar num âmbito das periferias onde moramos.
Parabéns pela matéria!
Obrigada a todos pelos comentários e crÃticas!!!
Abraços,
Maju
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