Cinema popular e a questão de público no Brasil

Filmagem de "O Amuleto de Ogum" (1974)
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Mauricio Caleiro · São Paulo, SP
1/5/2008 · 116 · 6
 

Por que escrever - ou ler - um artigo sobre um filme nacional produzido há mais de 30 anos, sem que haja uma razão impositiva para tal? Em primeiro lugar, porque rever O Amuleto de Ogum hoje é ter a atenção despertada para potencialidades que o atual modelo de financiamento da atividade cinematográfica, que mantém o poder decisório nas mãos dos diretores de marketing das empresas – os “novos censores” -, está condenando ao ostracismo, com suas diretrizes que privilegiam produções caras, de tratamento temático duvidoso e estética hollywoodiana. E, o que é pior, em sua maioria desprezadas pelo público.
Em segundo lugar, pela constatação que o filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos inaugurou uma nova proposta temática, estética, mercadológica, para o cinema produzido no Brasil - proposta esta que sugere vigoroso embate dialético com o momento atual, no qual a distribuição e a exibição encontram-se estranguladas e monopolizadas.

Portanto, antes de mergulharmos no universo do filme em questão, faz-se necessária a compreensão das diretrizes que norteavam a produção cinematográfica no período: o Amuleto de Ogum foi produzido em 1974, quando o país começava a viver, após os “anos de chumbo” que se seguiram à decretação do AI-5, o início da lenta e contraditória distensão política que caracterizaria a presidência de Ernesto Geisel. Ao binômio repressão-desenvolvimento acrescentava-se a necessidade de o Estado buscar legitimizar-se ideologicamente. Além de prosseguir investindo pesadamente em telecomunicações, o governo passaria a priorizar políticas para o setor cultural, desempenhadas a partir de uma malha de estatais reestruturadas para tal fim. Diversos estudos, entre eles os de Ana Cristina César (Literatura não é documento. Funarte, 1980), de José Mário Ortiz Ramos (Cinema, Estado e lutas culturais. Paz e Terra, 1983) e de Tunico Amâncio (Artes e Manhas da EMBRAFILME. Eduff, 2000), revelam o quão complexo, para ambas as partes em questão, eram os mecanismos de produção estatal de cinema. Simplista falar em cooptação, ingênuo desprezá-la.
Assim, a intervenção do Estado na produção cinematográfica, que a partir da segunda metade da década de sessenta, com a criação do INC (Instituto Nacional de Cinema) e da EMBRAFILME (Empresa Brasileira de Filmes), acirrara-se, ganha outra dimensão após a publicação do Plano Nacional de Cultura, em 1974, com o aumento do capital da EMBRAFILME e, no ano seguinte, com a criação do CONCINE (Conselho Nacional de Cinema, órgão normativo e fiscalizador). Criado a partir de propostas de uma comissão do MEC destinada a repensar a estruturação da atividade cinematográfica brasileira, o novo modelo se revelaria, inicialmente, extremamente eficaz. Estavam criadas as condições para o cinema brasileiro viver, `a exceção da mítica belle époque (1899-1911), a melhor década de sua história em termos de presença de mercado, chegando a atingir trinta e cinco por cento do público anual de espectadores, cifra inédita em um mercado permanentemente ocupado pelo produto estrangeiro. O Amuleto de Ogum, inauguraria, nas telas do país, essa relação direta do cinema brasileiro com o universo popular, prenunciando o momento de conquista do mercado.

Três anos após o tropicalista Como Era Gostoso o Meu Francês, Nelson Pereira dos Santos troca o Brasil do século XVI pela atualidade, o tupi-guarani pelo pivete de rua, as imagens paradisíacas de Parati pela cinza urbano de Caxias, epicentro da violência então desenfreada da Baixada Fluminense. Na seqüência inicial, um cego, vivido pelo compositor e cantor Jards Macalé, está prestes a ser assaltado, quando, esquivando-se, passa a contar, através de sua música, a história do filme, narrada inicialmente em flashback. A ação remete à zona rural. Uma mulher desespera-se ante o assassinato do marido e de um filho (em claras referências a Vidas Secas, que Nelson dirigira em 1963, a atriz é Maria Ribeiro, funcionária do laboratório Líder que o diretor trouxera para o cinema naquele filme, no papel de Sinha Vitória; e o nome do filho morto é Fabiano, homônimo do personagem principal do livro de Graciliano Ramos). Temerosa de que o outro rebento tenha o mesmo destino, a mãe recorre à umbanda, para que feche o corpo do pequeno Gabriel, tornando-o invulnerável às armas. Em seguida vemos um rapaz andando pelas ruas de uma cidade. Créditos informam que dez anos se passaram. Gabriel, o menino de corpo fechado, cresceu, e acaba de chegar a Caxias.
Artifícios narrativos bem-executados e eficazes abrem o filme (utilização inventiva do narrador, flashback seguido de elipse que leva a ação dez anos à frente, mas ainda em um tempo diegético anterior ao que se passa a seqüência inicial).Assim, com um arsenal narrativo ao mesmo tempo simples e sofisticado, está estabelecida, em poucos segundos, a premissa básica da trama, que passa então a ser desenvolvida. Gabriel (Ney Santanna) é incorporado ao bando do bicheiro Severiano (vivido por Jofre Soares, outro ator descoberto por Nelson, em uma de suas mais notáveis atuações). Lúmpen-mercenário de uma guerra civil não declarada, torna-se pistoleiro.

O fime traça, em imagens diretas, desprovidas de maneirismos e centradas nas figuras humanas, a ebulição da violência no cenário desolado da Baixada, contrapondo grupos de extermínio, policiais, bandidos; antecipando, ainda, a instrumentalização da infância pelo crime organizado. A função metafórica que os "menores" perseguidos, torturados, mortos, certamente desempenhava, à época de lançamento do filme – na qual os porões da ditadura ainda não haviam sido desativados – tende, talvez, a ser ignorada pelo espectador atual, habituado à banalização do convívio entre infância e violência.
Gabriel envolve-se, como matador profissional, em uma escalada de assassinatos. Após uma desavença por um prato de comida no interior do bando, é baleado. Porém, numa seqüência de grande impacto dramático, após os disparos, seu corpo permanece intacto, desprovido de ferimentos, graças ao amuleto que traz ao pescoço. Tal invulnerabilidade, ao mesmo tempo que lhe confere poder dentro da quadrilha, o potencializa como adversário imbatível . Na tentativa de anular o que pode vir a ser uma fonte de problemas, Severiano planeja uma armadilha para Gabriel e ele cai: após assassinar, desavisadamente, um figurão, vê-se obrigado a foragir-se.

O refúgio de todo esse cotidiano de violência é a boate de Madame Moustache, onde populares, prostitutas e até mesmo o tradicional gay mestre de cerimônias (vivido pelo cineasta Luiz Carlos Lacerda, o “Bigode”) convivem sob luz avermelhada e uma trilha sonora composta de baladas dos Rolling Stones, com a qual o insinua-se um comentário a um tempo lírico e irônico sobre o Brasil pretensamente cosmopolita dos anos setenta. Música, aliás, é um dos pontos altos do filme. A excepcional trilha sonora de Jards Macalé, jamais lançada comercialmente, combina referências à obra anterior do compositor a músicas inéditas, compostas a partir da visão do filme na moviola. Macalé faz uso da percussão única de Edson Machado como contraponto à montagem frenética de cenas de assassinato, chegando ao requinte de reutilizar os agudos do carro de boi da seqüência final de Vidas Secas como ornamento sonoro (em uma seqüência censurada à época, na qual "menores de rua" são torturados). Equivale a um curso de composição para cinema.
O filme imiscui à ficção tonalidades documentais, seja no retrato da vida em São José - bairro então mal-afamado de Caxias - ou através da participação de figuras proeminentes da sociedade local protagonizando, no papel delas mesmas, sem constrangimento algum, a cena do jantar em que Gabriel é chamado a integrar o grupo de matadores. Personagem principal do argumento original de Chico Santos que inspirou o filme, Tenório Cavalcante, o folclórico político da religião, empresta dados biográficos tanto ao bicheiro Severiano quanto ao novato Gabriel. Graças ao parentesco com o ator Emannoel Cavalcante, as seqüências passadas na casa de Severiano - incluindo o tiroteio final - foram filmadas na “fortaleza” de Tenório.

O envolvimento de Gabriel com a amante do bicheiro, Eneida (atuação luminosa de Anecy Rocha), causa a ira enfurecida de Severiano, que, frustrado após várias tentativas de assassinar o rapaz de corpo fechado, decide recorrer aos serviços de Gogó, um pai-de-santo de caráter duvidoso. Gabriel, por sua vez, retorna à umbanda, buscando força e proteção. É a chance para o filme contrapor o embuste mercantilista de aproveitadores à umbanda tradicional, com a mise en scène sublinhando a dimensão mítica da religiosidade afro-brasileira. Nelson alcança momentos superlativos de uso da técnica cinematográfica para efetuar tal contraposição, dialogando, entre outros, com o cinema do indiano Satyajit Ray. O retrato da religião popular sem sociologismos paternalistas causou a ira enfurecida da esquerda comunista. A imprescindível biografia do cineasta escrita pela jornalista Helena Salem (Nelson Pereira dos Santos - O Sonho Possível do Cinema Nacional. Record, 1996), cita o reconhecimento dos umbandistas pelo papel que o filme teria supostamente desempenhado no processo de legalização dos cultos, então vítimas de intensa discriminação.
A visita de Eneida e Gabriel à família dela, em um bairro de migrantes nordestinos em São Paulo, onde são recebidos com festa e música, é um momento do filme que carrega, como observa José Mário Ortiz Ramos na História do Cinema Brasileiro, “a energia do momento da filmagem impressa em cada fotograma”. Filmado de maneira semi-documental durante uma feijoada em família, logo após o casamento (na vida real) de Ney Santanna (que vem a ser filho de Nelson) com a atriz Nádia Lippi, a sequëncia capta emoção e alegria genuína nos olhares e gestos das pessoas que circundam a mesa, expressando, como aponta o pesquisador João Luiz Vieira, “um tom antropológico sempre excelente”.
Aliás, a construção da personagem Eneida, pivô do conflito entre Gabriel e Severino, representa um dos momentos em que o olhar de Nelson para o universo feminino, rica linha de estudo de seu cinema que permanece inexplorada, revela-se mais generoso e libertário. Ela não se deixa aprisionar pelo poder de Severiano ou pelo amor possessivo de Gabriel. Do confronto com o machismo dos amantes produzirá a conquista da independência, partindo livre e senhora de si.

As seqüências finais apresentam uma elaborada montagem - quesito usualmente em destaque em se tratando de Nelson Pereira dos Santos. Alteram-se entre o tiroteio na casa de Severiano, o destino da mãe de Gabriel, ameaçada de morte, e a consumação da aparente morte dele. Antes de, no flashforward que encerra o fime, o cego proferir sua última e surpreendente revelação, a penúltima seqüência, com Gabriel ressurgindo do fundo do mar, merece figurar com destaque na antologia do filme nacional. Gustavo Dahl, em seu belo artigo de homenagem aos 70 anos de Nelson, O primeiro descolonizador, enxerga na “ressurreição catártica do herói, sua reaparição, forte e purificado mas com armas na mão... uma metáfora do país, do cinema brasileiro, do próprio Nelson. Há sempre um novo que não se deixa matar e que renasce” (Cinemais (14)).

O filme faz um pastiche do cinema de ação norte-americano com condimentos brasileiros, sem abdicar da auto-ironia e do apelo popular. Filma tiroteios e até mesmo perseguições, desfazendo o mito – então renitente - da incapacidade do cinema brasileiro para a ação. À defesa de um cinema popular (que, para desgosto das “elites culturais” radicalizaria ainda mais no filme seguinte, Na Estrada da Vida, sobre a dupla sertaneja Milionário e José Rico), Nelson soma uma investigação sobre o misticismo religioso brasileiro e a violência cotidiana dos centros urbanos. buscando, em suas próprias palavras, colhidas por Helena Salem, “a procura da origem - de onde vim, quem são meus pais, quais são minhas raízes, como destransar a repressão que sofri na escola, no colégio, na universidade”. Investigação essa que resultou numa obra de perfil verdadeiramente popular e que apontou caminhos para o cinema então produzido no Brasil. Sem deixar de levar em conta os diferentes contextos que separam o país de hoje daquele de 30 anos atrás, talvez valha a pena rever O Amuleto de Ogum e refletir sobre a relação entre cultura popular, cinema brasileiro e – essa entidade hoje fugidia - público espectador.


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Tacilda Aquino
 

MUito bom o seu texto. Uma verdadeira aula de história do cinema nacional dos tempos da Embrafilme. Particularmente acho que todo, ou pelo menos a maioria dos filmes brasileiro merece mais atenção por parte do público. Infelizmente, porém muitas pessoas, principalmente os mais jovens têm um pré-conceito do cinema nacional e não acreditam que santo de casa faz milagres que até Deus duvida. Tive a sorte de assistir O Amuleto de Ogum e outras produções da Época da Embrafilme. Recentemente revi Macunaína e Guerra Conjugal, lançados em DVD pela VideoFilmes e outro grande filme de Joaquim Pedro de Andrade, O Padre e a Moça, o primeiro filme de Joaquim Pedro, de 1965. O DVD, de quebra, tem em seus extra o média Estréia no longa do diretor Joaquim Pedro de Andrade (1932 - 1988) e no cinema do ator Paulo José, O Padre e a Moça (Brasil, 1965, 90min) mergulha em um poema de Carlos Drummond de Andrade para emergir como um dos mais belos filmes brasileiros. E só isso valeria a pena.

Tacilda Aquino · Goiânia, GO 29/4/2008 22:35
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Tacilda Aquino
 

Meu texto acabou saindo truncado. Desculpa. Quando falava dos extras do filme de Joaquim Pedfo, me referia ao o média O Mundo de um Filme, documentário que recupera as filmagens de O Padre e a Moça em São Gonçalo do Rio das Pedras, cidade do interior de Minas Gerais.

Tacilda Aquino · Goiânia, GO 29/4/2008 22:39
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Mauricio Caleiro
 

Obrigado, Tacilda. Por coincidência, recentemente vi O Padre e a Moça. Que belo filme, e que atuação do Mário Lago, não é mesmo? Aliás, do elenco todo...

Mauricio Caleiro · São Paulo, SP 30/4/2008 00:09
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 Profeta  Teatro
 

Gostei e votei !!!!

Abraços

Profeta Teatro · Campo Grande, MS 30/4/2008 21:56
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Roberto Maxwell
 

Bacana seu texto. Bem reflexivo. Acho que vale uma segunda reflexão falando sobre a repercussão do filme de forma mais detalhada.
Quanto à questão do público, não acredito que todos os filmes devam ser feitos para arrombar bilheterias. Acredito em filmes que podem ser apreciados por determinadas fatias de público, bem como em filmes que podem atingir amplas camadas. A verdade é que o cinema brasileiro não é feito para atingir público, seja ele qual for. O que ocorre é que os filmes não são pensados em termos de viabilidade. Pensa-se em quanto se pode abater no imposto, quantos amigos serão empregados e outros detalhes nada cinematográficos ou de negócios.

Roberto Maxwell · Japão , WW 1/5/2008 04:18
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Andre Pessego
 

Bacana, Maurício
da mesma época foi as duas capoeragem "Liberdade Camará" originado de O Segredo de S. Cosme, quem sabe é S. Damião capitaneado por Miroel
Silveira. E que na verdade pode-se dizer sem exagero foi, na II
medata de Séc. XX, a única ´serie, talvez meia duzia, de teatro
verdadeirmente popular.
Liberdade Camará fez grande sucesso, repercussão e atingiu
o operariado no ABC.
- Daí a distensão militar, abafou toda e qualquer insersão neste
sentido, sob o argumento de que o momento era imp´roprio.
E o que é pior até hoje.
O Brasil hoje, nos últimos 30 anos, não tem teatro mambembe. Nós na Capoeira, uns gatos pingados, as vezes nos aventuramos com a cara e acoragem.
E o teatro é isto - o termometro do estado e estagio da sociedade.
um abraço,
andre.

Andre Pessego · São Paulo, SP 2/5/2008 08:00
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