Coletivo Rádio Cipó- Uma inquietação cultural

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roalmeida · Belém, PA
16/5/2010 · 7 · 3
 


Coletivo Rádio Cipó- A inquietação cultural na quebrada da Amazônia

Rogério Almeida
Há cidades na Amazônia. Ao contrário da perspectiva exuberante dos que percebem a região. Uma delas, Belém, soma mais de um milhão e meio de habitantes, cresce de costas para o rio. A cidade que é quase uma ilha coleciona favelas. Os espigões proliferam por toda parte, como o mercado informal. O cimento sufoca furos, igarapés e rios em Santa Maria do Grão do Pará, nome de batismo da capital paraense.

Não há emprego para todos. A cidade é para todos?

Os condomínios verticais ou não despontam como signos da tragédia social que conforma o país. A cidade se avoluma descoberta de saneamento básico, desprovida de transporte coletivo digno, sob um calor escaldante, sufocada em engarrafamentos.

Ela é negra, índia, branca e mestiça. Inóspita para a maioria dos filhos seus. Nela os canais proliferam, assim como as gangues e a venda de balas e picolés e a mendicância nos coletivos. É a mais barulhenta da nação.

A informalidade integra a paisagem. Há vendedores de inúmeros produtos: picolé, água, água de côco e o que for possível comercializar. À noite a fumaça dos churrasquinhos nubla alguns pontos da cidade. Em várias vicinais o corpo é comercializado. Tudo parece banal.
A polícia é a presença mais constante do Estado nas baixadas, numa dessas, à Rua Álvaro Adolfo, no bairro da Pedreira, renomado pela sua boemia, abrigo de inúmeras manifestações populares germinou Coletivo Rádio Cipó.O balaio de animação cultural agrupa gente jovem e outros não tão jovens assim. A rua que é considerada celeiro de artistas, abriga uma série de grupos de carimbó.
Lá Ruy Montalvão e Carlinhos Vas encontraram D. Onete. A professora aposentada é compositora e cantora, venceu vários festivais de carimbo no estado. Mestre Bereco é outro carimbozeiro do grupo, que ainda tem o mais veterano roqueiro do Brasil, mestre Laurentino, 82 anos de praia.
O Coletivo se auto-define como um núcleo de produção de mídia sonora aliado à tecnologia de áudio digital caseira na produção de pesquisas sonoras experimentais com o objetivo de divulgar essa produção para o Brasil e no exterior. Dão seiva ao grupo MC RatoBoy (vocal), MC Jamant (vocal), Renato Chalu (guitarra), Jarede das Arabias (baixo e guitarra) e Luís Bolla (percussões), Carlinhos Vas, Mestre Laurentino e Dona Onete.
Primeiros passos
O vocalista Ruy Montalvão, “RatoBoy”, explica que a gênese de tudo se encontra no fim da década de 1990, quando o mesmo militava na banda autoral Manga Beso, ao lado de outros músicos como Carlinhos Vas, Vlad Cunha, Bernardo e Márcio Maués.

“Fervilhava o festival “Rock das 6h” na cidade e a banda iria se apresentar pela primeira vez num palco com estrutura. Ná Figueredo, conhecido animador cultural em Belém nos chamou e pediu para que um senhor, mestre Laurentino, abrisse o show da banda. Apelou que o coroa fazia um som bacana na gaita harmônica. O grupo topou e seu Laurentino caiu na graça de todos”, recorda Montalvão.

Se é necessário sorte na vida e estar num lugar certo e na hora certa, seu Laurentino foi laureado por ela. Hermano Vianna, doutor em antropologia, pesquisador na área de música e coordenador do site Overmundo, se encontrava no espetáculo. O irmão do Herbert Vianna, vocalista da banda Paralamas do Sucesso, observava o show. O intento do pesquisador era garimpar artistas locais para integrar a iniciativa Música do Brasil, e convidou Laurentino para o projeto. Foi a janela para o mestre ser conhecido em território nacional.

Após a experiência cada membro da banda tomou um rumo, voltando a se encontrar tempos depois motivados pela aprovação de um projeto com incentivo de lei municipal, Tó Teixeira. “Foi aí que fui morar com o Vas na Álvaro Adolfo, após uma temporada em São Paulo. Fizemos a experiência de uma rádio popular de poste. A gente tocava além da música do grupo a do pessoal local. A experiência durou até o chefe de uma gangue solicitar o fim da rádio, que estava prejudicando os interesses da emissora dele”, lembra Montalvão
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Foto - divulgação
O som do Coletivo mescla a musicalidade regional com batidas eletrônicas. Soa hip hop desprovido de chatice e repetição. A sonoridade que nasceu na quebrada amazônica com ensaios realizados nas ruas do próprio bairro já ganhou o país. A via foi a divulgação através da rede mundial de computadores tanto das faixas do primeiro CD, Formigando na calçada do Brasil, lançado este ano pelo selo Ná Records, como através de videoclipes.


Uma outra possibilidade de visibilidade do trabalho do grupo é a participação em festivais considerados alternativos que pipocam em todo o país. Tais festivais soam como uma afirmação que se pode produzir sem a mediação de grandes corporações do mercado fonográfico. A cada dia mais esquálido. Assim o grupo já foi aclamado em São Paulo, Rio de Janeiro Goiás, Pernambuco e Brasília.

As músicas da Rádio Cipó impregnadas da influência do rock, dubby e ragga muffy estão postadas no site da gravadora Trama e mantém o próprio site, www.coletivoradiocipo.org. O projeto mais ambicioso do Coletivo é a produção do registro da obra do mestre Laurentino em várias mídias: DVD, CD e livro.

Mestre Laurentino – o neto de escravos que virou pop depois dos 70 anos
Encontramos João Laurentino da Silva, mais conhecido no mundo pop como mestre Laurentino, numa manhã ensolarada de setembro na Praça da República. O neto de escravos veio ao mundo no dia primeiro de janeiro de 1926, no município de Ponta de Pedras, arquipélago do Marajó. Aos quatro anos foi adotado pelo juiz de direito Francisco das Costa Palmeira. Não tem mais irmãos vivos e depois de adotado não manteve mais contato com os pais biológicos.


Estudou até a quinta série. Trabalhou como técnico de manutenção de aviões na extinta empresa Real Aerovias, que existiu entre 1946 a 1961. O autor do hit Lourinha Americana, que tira um sarro do pedantismo estadunidense, também passou pela roça e pela exploração da madeira. “A música é sucesso internacional. Já recebi comentários da Itália, Portugal, França, Alemanha e até do próprio Estados Unidos”, fala com orgulho o serelepe senhor de 82 anos.


A música foi gravada pela banda pernambucana Mundo Livre S/A, no CD Por pouco. Num trecho a canção dispara: Essa lourinha americana (lourinha americana)/Está querendo me escolachar/Foi dizendo que eu sou neguinho (bem neguinho)/E que na América eu não posso entrar.

O aposentado que recebe um salário mínimo por mês reflete que o mundo se encontra cheio de bandalheira e que não gosta de lari-lari. Humilde, apesar da popularidade, considera-se pequeno, menor que um grão de mostarda. Laurentino tem memória prodigiosa. Lembra de fatos históricos e políticos antigos. Como uma eleição do tempo do interventor Magalhães Barata, quando era comum se emprenhar urnas.


O mestre em detalhes
O mestre mora na ilha do Outeiro, região metropolitana de Belém com Elza Freire da Silva, com quem teve 10 filhos. Mas, somando com outros relacionamentos Laurentino contabiliza o total de 16 rebentos. Além da companheira Elza o compositor que guarda as canções que faz na cachola, tem como xodós dona Maria Josefina, acreana descendentes de europeus e a dona Leonice dos Santos. Segundo o mestre, ele ainda confere o placar em noites chuvosas.

Por cinco mil réis comprou a primeira gaita aos 18 anos. Desde menino manifestou interesse por música. Passou por incontáveis programas de auditórios nas emissoras de rádio e TV´s locais. Narra aventuras do tempo da PRC-5, atual Rádio Clube. O hoje celebrizado mestre já foi homenageado pela câmara municipal de Ponta de Pedras e em Belém.


Recentemente recebeu um incentivo da governadora Ana Júlia para a construção de uma escolinha e aquisição de instrumentos para a sua banda de rock. “Não esquece de colocar isso” exige o artista que no CD que deve ser lançado ainda este ano versa sobre a disputa eleitoral estadunidense.

Mestre Laurentino só toma vinho e há oito anos abandonou o cigarro. Adora andar e contar causos. Diz ele que chega a percorrer até 14 km quando visita o município de São Caetano de Odivelas, onde tem uma terrinha. Sem modéstia afirma que aonde chega esbandalha tudo.

“Tomo conta”, afirma o roqueiro mais antigo do Brasil. Entre as aventuras das múltiplas viagens ele conta que no festival de Goiânia os “malucos” o apanharam do palco e o jogaram para o alto. Caiu em cima da caixa de som e quebrou os óculos.

Na manhã que comungamos nota-se a preocupação e amor do mestre pela natureza. Em certo momento da conversa ele interrompe e aponta a brincadeira de um par de passarinhos. “Coisa linda,” exclama. Além da coleção de chapéus, relógios e anéis, - as mãos sempre estão repletas deles-, o mestre coleciona cães, são mais de 14, afirma. Tirando o som com a batida das mãos ele cantarola várias canções do primeiro CD solo, em fase de produção. Numa delas filosofa: “No galho de nossas fantasias cada um tem a sua aranha”.

Notas -
Trabalho publicado originalmente na edição comemorativa de 30 anos do Jornal Resistência, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH), em outubro de 2008
Rogério Almeida é professor da Universidade da Amazônia (UNAMA), em Belém/PA.

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Jean_Narog
 

Uma bela fotografia da cidade de Belém. Salve a exuberante vida de Mestre Laurentino. Parabéns ao Coletivo Rádio Cipó.

Jean_Narog · Santa Isabel do Pará, PA 17/5/2010 17:23
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lcampelo
 

essa é a cara de Belém, viva a folk!!!!

lcampelo · Belém, PA 18/5/2010 10:19
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Djanara I.
 

eras... quando crescer quero escrever igual a voce! Muito bom o artigo!

Djanara I. · Ananindeua, PA 18/5/2010 10:33
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