Ela escreve, pinta, modela, esculpe, desenha, atua, educa e cria quatro filhas. Escreve coisas assim: "O silêncio criou raÃzes dentro das palavras. A tarde emudeceu, coloriu de pálido o contorno das árvores. O respirar das folhas era azul..."
Atualmente ela está coordenando uma oficina de reaproveitamento de lixo – a arte do reaproveitamento. É um trabalho que vem fazendo com muita competência há mais de dez anos. Já é uma referência em Cuiabá. Seu lema nesse trabalho sempre foi: não descarte, faça arte. E ela o faz muito bem. Ensina a fazer e contribui para o desenvolvimento de vários talentos que suas oficinas têm revelado. Ela é uma artista que se preocupa com a questão do ambiente urbano, propõe saÃdas para várias partes, faz questão de afirmar que faz a sua parte e que cada um deveria fazer a sua.
Ela quem? Quem é ela? Anna Marimon é seu nome. Multiartista. Gaúcha de Santa Maria, mãe de quatro filhas muito lindas.
Anna tem uma história muito interessante. Faz parte do novo Mato Grosso, oriunda do Rio Grande do Sul como já disse, veio para cá em 1974 no auge da polÃtica de incentivo do governo federal para a ocupação de terras na amazônia brasileira. A grande maioria desses migrantes ocupou a região norte do Estado de Mato Grosso. A famÃlia dessa artista ficou em Cuiabá. Aqui Anna cresceu, desenvolveu seus múltiplos talentos e até hoje vive uma história bastante singular.
Antes de continuar esse texto refleti muito sobre uma questão que incomoda muita gente. Confesso que me incomodou muito também nos últimos quinze anos de minha vida profissional. Nesse perÃodo trabalhei em programas de rádio, dirigi programas de tv e escrevi para muitos jornais, mas nunca escrevi uma linha sobre o trabalho de Anna, que cobrava, cobrava... nem uma reportagem. Por quê? Pelo simples fato dela ser minha companheira, minha mulher, minha parceira em inúmeros trabalhos, me auxiliando em praticamente tudo que fiz nesses dezessete anos de vida em comum. Eu sempre respondia que achava chato escrever sobre alguém tão próximo, que uma matéria jornalÃstica perderia em credibilidade, etc, etc etc.
Com o surgimento do Overmundo vi uma janela aberta, quis voar e concluà que seria um bom momento de jogar para fora toda e qualquer hipocrisia e assumir de vez que posso escrever sobre ela sim, falar de sua vida, de suas lutas, de seu cotidiano, de seu trabalho, enfim, escrever sobre tudo sem medo de me expôr ou achar que estou puxando a farinha para meu saco. Pensei comigo que antes de ser minha mulher ela é uma pessoa, individual, una, inteira, partida. Como qualquer um, também sujeita à s delÃcias das imperfeições, sujeita a erros e falhas, mas também sujeita a acertos.
Numa das discussões nas reuniões para a formatação do Overmundo alguém colocou: e agora, somos uma trupe que está repleta de artistas e animadores culturais, e nossos trabalhos? Quem vai escrever sobre nós? Poderemos escrever sobre o que fazemos? Falar de nós pode ser crÃvel, ter credibilidade? Por que não? Eu te pergunto e estou a fim de encarar ou provocar essa discussão. Nunca acreditei nas ditas imparcialidades, na neutralização de nossos sentimentos. Ora, somos seres elétricos, sujeitos ao arrepio das emoções, sujeitos a escolher entre isso e aquilo. Não dá para se esconder por trás de um texto que busca ser neutro. Nunca vi essa neutralidade, encaro como balela de editores ou donos de jornais e outros veÃculos. Eles é que ditam para que lado pender. Bom, vamos lá.
Anna faturou o grande prêmio do 1º Salão Jovem Arte Matogrossense, em 1975, evento que se iniciou como o mais importante da história das artes plásticas de Mato Grosso que vivia um perÃodo de fertilização dessa arte com o trabalho de animação cultural que Aline Figueiredo e Humberto EspÃndola estavam fazendo. Anna era uma figura muito estranha para os padrões da época em Cuiabá. Usava roupas coloridas com seus longos cabelos louros, quase sempre de tranças, em seus inúmeros passeios pelas ruas tortas de Cuiabá, uma proto-metrópole amazônica pantaneira que se anunciava nesse grande sertão. Ela chocava os olhares mais pudicos das senhoras roliças e morenas de Cuiabá.
Anna Marimon pulsava futuros no final dos anos 1970 em Cuiabá, com seus olhos verdes faiscantes. Ela conta assim: “Sofri duramente um bloqueio dos matogrossenses na época. Existia uma resistência que não era assumida, não era tão perceptÃvel, mas existia. Minha linguagem não se adaptava ao que pretendiam na época, pois buscavam uma identidade local e minha pintura era surrealista demais para se enquadrar nisso. Depois desse Grande Prêmio no 1° Salão daqui, rolou uma tendência de valorização dos Ãcones locais, de valorização do imaginário regional. Não cabia aquilo no meu trabalho.†Faturou ainda dois prêmios Funarte e participou, como artista convidada, da 5ª Mostra do Desenho Brasileiro em Curitiba, na década de 80.
Em 2006, depois de muitos saltos e sobressaltos na vida, Dona Louca é a personagem que está em voga na vida de Anna. “Dona Louca, você tem que se preservar!†Repete o refrão da música que compus, em parceria com Capileh Charbel, numa homenagem a ela. O personagem da música parece ser ela mesma quando a vejo passando entre os figurinos que cria e produz, espalhados pela nossa casa, dançando silenciosos como fantasmas. Explico, ela produz figurinos para as performances do bando, onde atua como intérprete e, pasmem, ela está compondo também (coisa jamais pensada em sua vida): uma série de bulas. Explico, são músicas que criamos a partir de letras baseadas em fórmulas de produtos quÃmicos e suas estranhas nomenclaturas. O poeta cuiabano Aclyse de Matos, que é professor universitário e um inveterado piadista, afirma que são como composições tipo 'ready-made musical', à la Andy Wharol. Acabou se tornando o lado mais experimental do grupo Caximir. "Nesse intervalo de trinta anos, após faturar o Salão Matogrossense em 1975, minha arte saiu da tela e alcançou outros suportes, passei a utilizar todo tipo de material para compor meus trabalhos. Utilizo canos de PVC, telhas quebradas, cacos, musgos, cimento, lágrima, cerveja, vômito, bonecas Barbies roÃdas pelos cães e componho paisagens de um caos que vivenciamos quando o mundo todo passa a priorizar o consumismo exacerbado. Tem que prestar atenção, a vida no planeta está se exaurindo!"
Anna não consegue definir seu trabalho mas arrisco dizer que são esculturas, quase-totens que levantam questões que afligem a humanidade. Uma a uma vão surgindo obras que se parecem com cenários-paisagens de um pós-caos, criadas com restos de coisas consumidas, como restos da devoração de uma sociedade voraz que não consegue conter a gula e se auto-consome. Ela continua narrando os seus roteiros, uma viagem pela memória: "Fui estilista, atuei como educadora e finalmente (re)surgiu o Caximir, depois de dez anos de separação do grupo. Aà me libertei totalmente e finalmente encontrei os parceiros certos para experimentar uma liberdade criativa que me levou até mesmo a compor uma espécie de música que sempre foi o meu desejo mais secreto e que jamais imaginei realizar".
Anna carrega em suas entranhas o dom da oralidade como poucos, ela é pura vibração nos recitais que realizamos por aÃ, nos bares, nos shows, nas festas, nas rodas festivas. Ela sabe tudo de Fernando Pessoa, conhece bastante de T.S. Elliot, tem também na ponta da lÃngua uma infinidade de histórias do imaginário popular russo, árabe, persa, europeu, enfim, é uma exÃmia contadora de histórias, está sempre narrando. Parecia uma Sherazade nas mil e uma noites em que esteve ao lado das filhas que a ouviam e resistiam para não dormir.
Marimon mãe repousa ao lado de Talita, Isabella, Marianna e Anna Carolina, as Marimons filhas. No colégio são as Marimbondas. Marilindas.
A composição "Dona Louca" acabou virando tÃtulo de um monólogo escrito por Anna e esse escriba que tenta vos convencer do direito à parcialidade produzida pelas emoções que pulsam sobre esse (con)texto. É sério, não é tarefa fácil descortinar aquilo que está à luz. Uma vez por ano escrevemos e produzimos alguma coisa para o teatro, mini-temporadas, nada comercial, são experimentações que fazemos para acalmar nossas inquietações e o desejo que comungamos de fazer teatro, mas teatro dá um trabalho danado e nunca conseguimos dar continuidade. É interessante como ela (quase sempre estamos sem empregada doméstica e é ela quem segura a maior barra) desenvolveu um método para decorar e ensaiar os textos: enquanto limpa a casa, cuida das roupas e prepara a comida, aproveita para decorar e ensaiar os textos. "Sempre sonhei com o teatro. Esses dois monólogos que fiz, interpretando Fernando Pessoa na minha primeira vez com o palco só para mim e depois na pele da Dona Louca em "Um dia de Kafka", foram dois dos momentos mais felizes de toda minha vida, onde coloquei toda minha vontade e verdade".
Nossa casa está mais parecendo é com um museu de artes. Esculturas e pinturas espalhadas por toda a casa. Livros, desenhos, lixo seco, tesouras, tantas tintas, tantas folhas em branco, tanta vida por viver, tantos afazeres.
Várias artistas numa só: essa, a compreensão que chego ao resumir esses feitos de uma mulher que está sempre ali ao meu lado, acompanhando meus movimentos, meus sons, meus escritos, meus filmes, meus silêncios, minhas sombras, minha falta de paciência. Sei lá, acho que é o amor, essa coisa esquisita que ninguém sabe como lidar.
Lindo! Fo-to fo-to fo-to! (De preferência, do casal! hehehe) :)
Viktor Chagas · Rio de Janeiro, RJ 1/10/2006 13:34valeu viktor. estou selecionando uma série de fotos para postar amanhã...preparando (uma de surpresa) do casal. rs.
eduardo ferreira · Cuiabá, MT 1/10/2006 18:38
a melhor contadora de histórias que existe.
várias artistas em uma Anna.
Que declaração de amor, hein? Também achei lindo! Parabéns a Anna, que pelo visto não deixou que a rotina espantasse sua criatividade... Fica de exemplo!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 2/10/2006 14:48Lembro da primeira vez que vi Anna. Lembro de todas as (poucas) vezes que estive com Anna, me ganhou de cara, tão intensa e múltipla, única. Falou tudo Ferreira, no meu entendimento podia falar mais e mais e mais. O caso é que na época em que eu escrevia para jornais e revistas daqui não foram poucas as crÃticas por traçar o perfil de figuras que admirava e, de alguma forma, compartilhava da vida. Penso que se não podemos apresentar os nossos parceiros de história ao mundo nem compartilhar o que sabemos de figuras tão Ãmpares de nada valeram todos os questionamentos, luta e argumentos em prol desse elemento tão desejado que denominamos liberdade. Reverência pra ti, Anna e lindas meninas-mulheres que vocês criaram pro mundo.
Bia Marques · Campo Grande, MS 2/10/2006 16:57
A Anna são muitas realmente. Tá certo que choro até com Vale a pena ver de novo, mas essa alma extraordinária é algo de sublime, de êxtase... Oh Anna, dona Louca você que se cuidar! Não dá pra imaginar ficar sem vc, viu?! Mil beijos de uma pessoa que te adora e te admira muitooo!
EF, tem dois errinhos no txt se der tempo pra corrigir: exacerbado (está exarcebado) no 10 parágrafo quase no fim e auto-consome (está auto-consume) no parágrafo seguinte.
No mais parabéns o txt está delicioso e tava mais q na hora de expor um pouco desta Sherazade para o Brasil... Vamo circular o Dona Louca, vamo circular!!!
valeu helena, valeu bia e cláudio também. obrigado pelos toques - já corrigidos. bendita fila de edição. maldita função de (auto) revisor - lendo e relendo e deixando passar entre as pernas. um frango. ainda bem que o jogo da edição não havia acabado.
eduardo ferreira · Cuiabá, MT 2/10/2006 18:26
Cara, que papo de imparcialidade o que.
Com uma mulher dessas, tem que ser parcial. Sempre. E muito.
Conhecendo um pouco da Anna, conheco você um pouco mais também. E entendo melhor toda a sua inquietude e a cabeça fervilhando. Dá até pra acreditar naquele papo de duas metades da laranja.
Um abração! Parabéns!
Que coisa mais linda, Eduardo!!
Adorei o texto, as fotos, a Anna...parece que estou vendo você falar dela!
beijo
E eu achando que sua mulher devia sofrer pra acompanhar vc e a patota de filhos... Tudo ao contrário, você é que deve sofrer para acompanhá-la! Bonitão o texto.
Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 3/10/2006 17:41aewwwww eduuuu! renovou o contrato com a patroa forever agora. kkkk não podia perder a piada irmão. lindão o texto cara. a Anna merece. adorei conhece-la, sua energia extrapola os poros e atinge os peito da gente em cheio. Uma grande mulher para um grande homem! hehehehe bj
Rodrigo Teixeira · Campo Grande, MS 4/10/2006 00:52quero ver MANUAL PRÃTICO para fazer algo como este aqui! rs
Rodrigo Teixeira · Campo Grande, MS 4/10/2006 00:54
Eduardo
Que lindo! A Ana é tudo o que voce escreveu e muito mais.É um privilégio podermos conviver com uma artista tão incrivel como ela, a nossa Ana de Cuiabá. E a maneira tão lindamente apaixonada
como voce a percebe e a d(escreve) é de uma força e beleza que só a dimensão do amor traduz. E , como sabemos a neutralidade é desumana.Que bom (para todos nós) que voce rompeu com ela para nos deliciar com tão necessário texto sobre uma (a sua) tão maravilhosa mulher. Parabéns a ambos porr serem quem são. Gloria Albues
glorinha! que bom ver você aqui. quando for fazer o lançamento de seu filme avise a gente. quero escrever aqui no overblog. obrigado pelas suas palavras que me encheram de energia e emoção. valeu rodrigão, thiago, daniel e natacha (lembra na reunião...vcs botaram pilha pra mim escrever esse artigo, rs).
beijos gerais. vamos em frente.
linda matéria! uma declaração de amor sem pieguismos! parabéns aos doisssss!
Luciana Teixeira · Campo Grande, MS 4/10/2006 23:18
"Ora, somos seres elétricos, sujeitos ao arrepio das emoções, sujeitos a escolher entre isso e aquilo. Não dá para se esconder por trás de um texto que busca ser neutro." Clap! Clap! Clap! É isso mesmo!!! Amei o texto, amei a paixão, amei a Anna... porque sou um ser sujeito às emoções! Só sou! Que bom que vcs também...
Abraços!
Multiartista...adorei ! O Brasil tem personagens incrÃveis!
O verdadeiro artista não é artista de uma arte só! Navegamos por todos os campos do imaginário, somos seres realmente elétricos!!!
muito legal.
caramba, ainda bem que vc se permitiu legislar em causa própria. essa questão foi fantástica.
alguém é capaz de imaginar que seria melhor vc ter ficado quieto?
O texto tem emoção fervilhando...Muito bom!
Quantas Annas a gente não conhece. Com quantas somos casados, vizinhos, amigos e vamos deixando de gritar por elas em nome de não sei o quê, que nem mais acreditamos. Se a imparcialidade é ausência de sentimentos, me declaro sentimental!
viva o coração que não conhece o lado da razão ditada pelos ditadores de plantão!
eduardo ferreira · Cuiabá, MT 10/10/2006 12:05
UAU!!! finalmente meu login deu certo!!!!! annas todas dentro dela e tudo mais que ela mostrou pra mim quem conhece reconhece o amor do homem e dos amigos quem não conhece recebe pelo texto essa dádiva essa antidiva.
cês receberam o livro do teatro em mt nos séc XVII e XVIII quando vi foi nocê annnnnnnnnna que eu pensei.
amor de longe, de sempre
sandra viss. quero biss. o próximo texto.
eduardo ferreira · Cuiabá, MT 7/12/2006 13:21Penso que sou privilegiado de poder sentir toda essa energia cósmica da dona louca. E realmente a casa de vcs parece um baúzão mágico que a todo momento esspirra arte para todo lado. Abração alucinado à linda/louca/sempre famÃlia MarimonsFerreiras
wndrground · Cuiabá, MT 13/3/2007 11:56
eduardo ferreira,
Parabéns para ti, quão grande é o teu coração masculino que sabe exaltar toda grandeza que há nessa mulher. Principalmente sendo ela, "tua"!
Mando para ela esses versos de LUIZ GONZAGA E HUMBERTO TEIXEIRA;
...
Ai se eu tivesse asas
Inda hoje eu via Ana... (Anna)
Marluce
Perdão,errei .Que ana seja eterna eu sua vida.Obrigada por dividir um sentimento maravilhoso.dei meu voto.
clara arruda · Rio de Janeiro, RJ 14/3/2008 17:24
aqui tem mais uma anna que faz muitos artistas
adoramos o texto
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