Antes de qualquer coisa, vamos deixar claro: meus patrões são legais. Dentro do possível, nunca me sacanearam ou coisa parecida. Tenho algumas regalias e consigo algumas folgas para ver meu filho em Salvador. Por isso me sinto agora um herege. Um sacana.
Mas eis que, sendo eu um sujeito ingrato e merecedor de uma boa surra, venho aqui falar dos concorrentes. Pior até: venho elogiar. Sou cozinheiro. Tenho um emprego legal. Até o momento em que meus patrões resolverem ler este texto.
O Festival de Lençóis, na sua oitava bem sucedida edição, terá início dia 1 de setembro. Peças de teatro, apresentações de grupos folclóricos, Los Hermanos, Gerônimo (um clássico, até para mim que sou chegado num Ramones) e Gal Costa como atrações principais. Sem falar no Andrew Tosh, filho do lendário Peter. É uma época em que a cidade enche. Todo mundo se anima e vê chegar com suas mochilas um bocado de gente animadinha e faminta.
Ou você acha que agüenta vários dias sem comer decentemente?
Se a resposta for sim, faça sua inscrição para o ano que vem. Quem sabe como o tal artista faquir que jejuava num dos contos de Kafka (O Artista da Fome de 1924) .
Você quer comer. Melhor, você vai precisar comer. Isto é um fato. Então, por que não comer bem? Tem de todo tipo: asiática, contemporânea, simples e honesta, pizza, carne, natureba, mexicana, junkie food etc. Tem-se boa comida aqui. Diversa, alegre, diferente. E, como já estou atolado mesmo, venho aqui dar umas dicas úteis de como sobreviver nessa verdadeira selva de pedras (as simpáticas ruas são cheias delas).
Comecemos pelo café da manhã. Você tá de ressaca, meio chumbado ainda e afinzaço de tomar aquele banho de rio, ou conhecer aquela cachoeira linda da qual tanto te falaram. Caso sua hospedagem não inclua, eu indico um lugarzinho simplório mesmo, que fica na Rua das Pedras (nem se preocupe, esta rua você vai conhecer).
Com sete paus, a Dona Joaninha te serve café, suco, leite, pão, rosquinha de tapioca, beiju, panqueca, ovo e frutas. Eu falei sete reais! O rango demora um pouco e o espaço é pequeno mesmo. Mas vale. Acabo de vim de lá e te digo.
Caso fique em pousada ou hotel, é de bom tom acordar cedo. Não tô dizendo que vão tirar a mesa e te deixar na mão. Mas, como representante da classe, confesso que é irritante ter de esperar um ou outro hóspede retardatário, sendo que a gente também vai estar meio chumbado. Se sua opção for comprar coisinhas no mercado, leve grana. Aqui as coisas andam caras. Bananas, mamão e outras frutas podem faltar já que a feira acontece somente às segundas e sextas. E é raro encontrar frutas nos mercados.
O almoço é a refeição mais incerta dessa jornada. Geralmente são quatro horas quando você, depois de ter visto o tal rio, tomado banho e tirado uma ondinha de integrado a natureza, vai ouvir a barriga roncar. Com pouca grana, geralmente se deixa para mais tarde. E a escolha mais óbvia é a combinação cerveja e resenha até umas sete horas. Se ainda sobrar algum, o destino mais certo é Grisante.
Grisante. Mil vezes Grisante.Comida boa. Honesta, sem pirotecnias nem frescuras. Em tempos bicudos, encontrar um Filet Mignon à Parmegiana de verdade é uma dádiva. Pagando pouco ainda por cima. Só peço atenção para a sopa. Em si, ela é gostosa. Contudo, o pão que acompanha já me veio duas vezes com o miolo congelado.
Eu de vez em quando pratico o dom do perdão. Ainda mais sendo uma sexta e vendo que o namorado da cozinheira a esperava na porta do restaurante com sua moto 125 cilindradas. Sou do ramo. A coitada devia estar com pressa. Eu entendi e comi o pão resignado.
Coisas do amor (falo do pão, claro!).
Mas eis que você tá a fim de impressionar, mostrar que sabe das coisas. Meio cansado desses mexicanos meia boca de sua cidade, onde os garçons chegam vestidos de mariachis mal-remunerados te servindo uma tortilla de gordura vegetal (confesso que já fiz algumas assim), você vai ligar para eles e fazer uma reserva. Na rua depois da igreja, perto da feira, Taquitos e Burritos, do gente fina Joseph e seu sócio e também gente boa, André.
Acho que ao dizer que Joseph é natural de Santa Fé, que sua Guacamole é genial e que seus molhos são bons pacas, já dá para te convencer. Some a isso o fato de que você não vai gastar nenhuma fortuna. Aí, é só esquecer os mariachis insones da capital e comer uma Carne Adobada, por exemplo. Lá o som é mecânico – Santana e etc. – e o garçom, além de ser colega no hotel onde trabalho, é boa praça, bilingue e atencioso.
No quesito Junkie Food (o termo serve apenas para o impacto, mas prefiro “rango de lanchonete”) algumas opções legais. Em frente ao mercado temos o Açaí Art Café, que serve uns sandubas de ricota, tomate seco e coisas afins. Ao lado, o Ki Lanches com seu imperdível “American Galinha”!
Tudo bem, o nome do tal sanduíche é assim... incomum. Mas caso queria algo menos inovador, sugiro os clássicos Cheese Bacon, Chesse Burger, Egg-cheese-bacon-burger bla bla bla. O suco de laranja também é honesto e barato.
Vale a espera.
Se seu caixa anda mais ou menos gordo, vai lá onde eu cozinho. Bem, não vou citar o nome assim fácil. Preciso do emprego. Mas pergunta onde é que se pode achar uma carne do sol bacana, e um purê de aipim com noz moscada, num hotel com um cozinheiro metido a besta. Não se assuste com a fachada austera, o muro alto. Pode entrar e ficar à vontade. O lugar é bacana. A comida é boa. Os garçons são atenciosos. E o papai aqui vai estar à frente da comida. Ao menos por enquanto.
Agora se você é daqueles que, mesmo dando um tempo em outra cidade, não largam algumas manias “mezzo urbanas, mezzo mussarela”, e não passam uma noite sem comer pizza, sugiro a Pizza na Pedra. Logo no início da cidade. Ou melhor, “fica lá na pista”, como a gente costuma falar aqui.
Pizza com sabores e recheios muito bons; massa de ótima qualidade e garçons ligados, que não deixam a peteca cair, além de conseguirem rir de qualquer piada estúpida que você faça. O dono e pizzaiolo, Renato, passou um bom tempo na Itália e no Canadá. E os garçons “Lé” e “Maicol” (não ria do nome dele) nunca vão te deixar na mão.
Tome um chocolate da casa no final. E, “pelamordedeus”, não peça uma pizza somente para você e seus dezesseis amigos famintos. Invista no seu bem estar: afinal de contas você é um homem ou um rato?
Não precisa responder agora.
Logo perto do coreto, a Picanha na Praça vai ter música ao vivo. A comida é legal, porém nunca comi a tal “picanha” carro chefe. Agora a música... se você ainda (importante esse “ainda”) curte ouvir Dia Branco, se jogue. Tome umas Bohemias e chore de emoção. O preço é razoável.
Bem no meio da folia, Girassol. Deliciosa comida asiática e aventureira. Afeganistão, Vietnã, além do tradicionalíssimo Frango Xadrez. Custa uma grana. Mas vale o paladar em sua boca durante horas e horas.
Comida roots? O Godó de Banana do Neco´s Bar. O cara é meio que um baluarte aqui. Todo mundo que vem, e que tem algum interesse nas coisas do mundo, marca um horário, desembolsa pouca grana e come bem.
O Godó é típico da região da Chapada Diamantina. Feito com banana verde e temperos, serve como acompanhamento à carne do sol ou a um carneiro belamente cozido.
Claro que tem muitos outros lugares aqui. Interessantes, caros, baratos, simples e cheios de firulas. Mas nestes nunca comi e, portanto, não vou arriscar minha reputação. Arriscar o emprego já tá de bom tamanho.
Agora vocês me dão licença que vou digitar um currículo.
Bom apetite!
Que texto mais doido! Gostei, que jeito mais insólito de passar "dicas". Pode fazer um currículo não só de cozinheiro mas de escritor também...
ronaldo lemos · Rio de Janeiro, RJ 30/8/2006 18:09Adorei. E se quando cozinha você deixa a gente tentada como me deixou ao ler esse texto, deve ser o mestre-cuca! Fiquei mto a fim de ir pra esse festival, quem me dera!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 30/8/2006 18:28Esse menino vai longe! um abração meu caro. Gustavo, é sim, escritor, ou melhor ele cozinha palavras e tempera sentimentos. Um beatnik das panelas vejam o blog dele.
andre stangl · Salvador, BA 30/8/2006 19:44
Ronaldo e Helena, valeu
Andre, você é da casa. Abração meu velho
Gostei muito do texto também. O cara sabe escrever. Ainda não sei se cozinha tão bem. :) Mas me fez lembrar o Apicius, que escrevia no Globo.
Daniel Cariello · Brasília, DF 31/8/2006 14:12
vale Daniel
o Apicius realmente era um semi deus. tem até uma entrevista com ele na extinta e querida revista Bundas
procure. é boa pacas!
Que delícia de texto! Parecia até que eu tava chegando na casa de um velho amigo que mudou pra outra cidade e tá me explicando como funciona sua nova vida! Adorei...
Ana Cullen · Brasília, DF 1/9/2006 19:52Véio, me deu fome e vontade de ser amiga sua, daquelas que frequenta a casa, sabe ?
Ana Murta · Vitória, ES 1/9/2006 21:41Gu, fiquei impressionada com a habilidade e facilidade que vc tem em escrever e prender o leitor com sua dissertação, um texto criativo, divertido e informativo. Parabéns!Amei!
Suzane · Salvador, BA 2/9/2006 17:43
as duas Anas
sejam bem vindas. casa e amizade disponiveis
na boa. bjs
PORRA GALERA
VOTEI NO MEU PRÓPRIO TEXTO SEM QUERER.
foi mal
Oi primo, é realmente uma delícia ler esta matéria. Li para minha irmã e ela adorou...claro né?Quem não gosta!Genial!
Suzane · Salvador, BA 3/9/2006 18:11
Gustavo, que delícia de texto!!
Fiquei doida pra ir a Lençóis,hahaha.
Na próxima visita à família em Salvador eu estico até aí! Carne de sol com purê de aipim com noz moscada...UAU!
adoro quando encontro um texto que tem o poder de me invadir é,de me tomar...gostoso demais...o texto,os lugares,as comidas...hum...tu é muito bom.
ca_co · Juazeiro, BA 4/9/2006 20:24Quero ir p/ o festival! Só não sei se pra comer ou pra ver os shows :)
Nanna Pôssa · Salvador, BA 5/9/2006 23:20
E eu não descobri que uma colega minha vai pro festival? Deu a dica do seu texto, ela já leu e adorou!
Abraço!
Adorei o roteiro, em Lençóis dá pra comer bem mesmo. Só acho que faltou o café da manhã da pousada do Alcino, uma maravilha que faz o almoço desnecessário... Parabéns pelo texto!
André Dib · Recife, PE 8/9/2006 10:55Natacha, valeu. purê com a noz é muito bom. tem até uma lenda que diz que a dita cuja tem propriedades alucinogenas. em quantidades muuuuuito superiores ao meu singelo purê
SILVASSA · Salvador, BA 8/9/2006 13:34caco. eu moreiaì. tive umas experiencias com poesia e um zine chamado art pop zine. se nao conhece, procure um cara chamado Angelo. é facil, ele tem cara de londrino e curte Smiths
SILVASSA · Salvador, BA 8/9/2006 13:35
Andre, o Alcino realmente é um clássico. nunca ranguei lá, por isso não coloquei. mas sei, de longe, e eu o conheço, que o café dele é o um dos melhores.
tem ate materia na revista Viagem. acho que de março
O texto é mto legal, morri de rir (e de fome) aqui.
Mariana Reis · Olinda, PE 18/9/2006 16:21
Gustavo, gostei de seu texto.
Fiz um texto sobre o Pavê e Comê em Lençóis e André me falou do seu. Minha contribuição é: eu comi no Picanha da Praça assim que cheguei lá. Gostei, é legal. Nada enlouquecedor, mas vale a pena.
:)
Puxa.
estou com fome.E essa leitura é bem provocante!
incrivel
(mas,pode dixar q nao vou matar o homem e comer)
Amei seu texto! estava procurando algo para me localizar na cidade, mas... No meio da busca tinha um texto
tinha um texto no meio da busca
tinha um texto
no meio da busca tinha um texto... Continuo sem saber uma rua legal para ficar na cidade durante o festival, mas tinha um texto!
foi para o festival este ano. tomara que seja tão bom qto seu texto.
axés
vou para o festival este ano. tomara que seja tão bom qto seu texto.
axés
Gustavo,
Então, perdeu o emprego?
Tem um trem gostoso no texto que adorei.
É seu jeito natural de passar tanta informação.
Parabéns!
Um abraço mineiro.
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