O Seminário Internacional de Comunicação para a Transformação Social foi realizado pela TV Futura na semana passada, em São Paulo. Durante sua palestra de abertura, Warren Feek - diretor da The Communication Initiative - exibiu um filme, via YouTube, que retrata o pano de fundo "inescapável" para qualquer debate sobre a mídia/comunicação hoje. É uma história-piada do futuro, nosso provável futuro, narrada do ponto de vista de quem vive após o ano 2050. No filme, o Google, grande potência da Web 2.0, comprou a Microsoft. Lawrence Lessig, fundador do Creative Commons, virou Secretário de Justiça dos EUA. A indústria cultural tradicional é passado. Nenhuma de suas estratégias desesperadas - de DRMs a processos contra compartilhamento de arquivos - conseguiu combater a mudança: a comunicação eletrônica deixou de ser feita de poucos para muitos. Todo mundo ("de muitos para muitos") se tornou "prosumer": ao mesmo tempo consumidor e produtor de conteúdos comunicacionais e ferramentas de comunicação.
No caminho para São Paulo, eu li um novo ensaio de Mark Pesce, pioneiro da realidade virtual e da linguagem VRML, que revela alguns números impressionantes e nada proféticos: os serviços de telefonia celular demoraram 10 anos para atingir a marca de 1 bilhão de assinantes, 3 anos e meio para chegar a 2 bilhões, e apenas 18 meses para atrair o terceiro bilhão. A previsão é que em 2008 metade de toda a humanidade tenha telefones celulares. Como até o mais básico desses aparelhos já tem funções multimídias, os usos que as multidões vão fazer da facilidade de comunicação serão sempre supreendentes. Serão, não. Já são. Mark Pesce cita o caso dos pescadores pobres de Kerala, sul da Índia, que agora trocam torpedos SMS em alto-mar e descobrem que portos têm o melhor preço/demanda para o cardume que acabou de ser fisgado por seus anzóis. O mesmo acontece com pequenos agricultores do Quênia, que se comunicam diretamente com os mercados das cidades vizinhas, sem mais depender de intermediários. São experiências de comunicação que não estavam previstas pelos modelos de negócios de fabricantes de celulares. Mas são cada vez mais comuns, e aparecem espontaneamente em qualquer "buraco" do planeta.
Nenhuma iniciativa de comunicação pode ignorar esta realidade, em constante e acelerada transformação. Os debates acirrados sobre a "net neutrality" mostram que o que está acontecendo não é automaticamente a vitória da democracia informacional. Novos mecanismos de controle, cada vez mais sofisticados, aparecem em cena, ao mesmo tempo em que as ferramentas para hackear os controles também proliferam. É uma batalha complexa, difícil, apaixonante. Não dá para menosprezar nenhuma das inúmeras forças que estão batalhando, nenhuma luta está ganha. Por isso o Seminário foi tão interessante: era o encontro de experiências muito diferentes que tentam praticar/pensar a comunicação como uma arma para garantir o desenvolvimento e a justiça social. Mas isso no meio de um turbilhão, sem chão firme para ancorar muitas certezas: "comunicação para a transformação social" virou o nome comum para todas essas experiências, justo quando a própria comunicação está sendo cada vez mais profundamente transformada pela transformação social, e a comunicação transformada pode ser mais transformadora, e assim por diante, sem fim.
Numa entrevista pré-Seminário, tentei criar minha própria definição do que é "comunicação para a transformação social". Cheguei à seguinte fórmula, que pretende ser a mais sintética possível, apesar de seu contorcionismo conceitual um tanto barroco: "comunicação para a transformação social é aquela que possibilita que as próprias pessoas que se comunicam, elas mesmas, decidam (no processo de se comunicar, e como resultado da comunicação) que transformações desejam fazer em suas sociedades." Nesse sentido, a comunicação mais socialmente transformativa seria aquela que possibilita que todos os participantes possam ser produtores e receptores de informação. Isso era praticamente (e também politicamente) impossível nos meios tradicionais de comunicação eletrônica: o espectador não tinha equipamento suficiente para produzir ou distribuir suas mensagens. Mas desde o aparecimento dos computadores pessoais, das câmeras de vídeo portáteis, dos celulares etc. etc., é bem mais fácil que um computador perdido numa selva qualquer possa se transformar numa central emissora de broadcasting com público em todos os continentes.
Seguindo essa trilha, o Overmundo aproveita toda essa grande oportunidade e aposta num regime editorial radicalmente colaborativo (todo mundo pode colaborar, e as decisões sobre o que é ou não publicado e sobre quanto destaque cada colaboração ganha são tomadas pela comunidade), tentando provar que processos abertos/descentralizados conseguem gerar qualidade de conteúdo. Além disso, o próprio software do Overmundo é também aberto podendo ser usado e transformado por outras iniciativas que queiram enveredar nos caminhos da produção colaborativa de conhecimento (na abertura do Seminário, mostrei exemplos já no ar de utilização do código do Overmundo por outras iniciativas, como o iCommons e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Estamos aqui fazendo uma experiência pioneira, testando ferramentas e regras. Muitas vezes nosso dia a dia é tão absorvente que deixamos de perceber o que está acontecendo no mundo lá de fora, o mundo não Over. Por isso foi bom ter participado do Seminário, para conhecer outras experiências com objetivos semelhantes que estão sendo feitas em outras mídias e em outros cantos do mundo. Prometi, na minha fala no Seminário, que iria escrever um texto aqui no Overmundo, que teria como função principal dar continuidade às conversas iniciadas por lá. Vou publicar então algumas observações sobre coisas que me chamaram a atenção nas várias apresentações - os comentários estão abertos para outras observações, de pessoas que tenham ou não ido ao Seminário.
Os relatos de experiências diversas de comunicação para a transformação social começaram com a palestra de Arlene Centeno Guevara, da Fundação Puentos de Encuentro, da Nicarágua. Ela é uma estrela popular no seu país, pois foi uma das protagonistas da "telenovela" Sexto Sentido, produzida pela Puentos de Encuentro com o objetivo de levar para a juventude debates sobre sexualidade e direitos humanos. O interessante é que até a primeira exibição da Sexto Sentido não havia dramaturgia televisiva feita na Nicarágua. A equipe teve que aprender tudo na marra (desde a escrita de roteiros à edição final), a partir de exemplos de sucessos brasileiros e mexicanos que continuam a dominar a TV local. Apesar do uso de câmeras baratas, da inexperiência técnica, o resultado foi grande sucesso de audiência, uma espécie de Rebelde com causa, e até já foi exportado para países vizinhos e para os EUA. O que mostra que as pessoas querem ver suas experiências e realidades retratadas na mídia, não se importando tanto com comparações de qualidade técnica com produtos hollywoodianos. Arlene mostrou imagens dos atores de Sexto Sentido dando autógrafos para turbas de fãs nas ruas de Manágua. Fãs com os mesmos tipos físicos mestiços de seus ídolos. Ídolos que realizam outros trabalhos sociais atrás das câmeras, como programas de rádio, uma revista feminista, cursos e qualquer outra atividade que possa ajudar a difundir suas idéias transformadoras.
Depois da Arlene, quem falou foi Zita Carvalhosa, que dirige o Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo desde 1990. Durante o festival, na tentativa de levar os filmes para as periferias da cidade, surgiu a idéia das Oficinas Kinoforum de Realização Audiovisual, com esquema muito simples, mas com resultados estimulantes. As oficinas duram apenas três finais de semana, e terminam sempre com quatro vídeos criados e finalizados pelos alunos. Parece difícil acreditar que um curso tão relâmpago possa gerar resultados positivos, mas isso é fácilmente comprovado vendo os vídeos produzidos e também constatando que muitos dos "oficineiros" resolveram dar continuidade ao trabalho audiovisual abrindo produtoras nas suas quebradas, como a Filmagens Periféricas, da Cidade Tiradentes. Na sua fala, Zita anunciou também a estréia do KinoOikos, novo site do projeto, com ambiente mais colaborativo, fóruns e streaming de vídeo. Vale a pena dar uma olhada no vídeo Cidade do Sol, que quando eu escrevo está na home do KinoOikos - é uma mistura muito esperta de documentário e ficção, abordando histórias de migrantes nordestinos que chegam na periferia de São Paulo para "vencer na vida".
A terceira experiência apresentada no Seminário nos trouxe notícias sobre as pesquisas do IZI (sigla para Instituto Central Internacional para Televisão Jovem e Educativa). A apresentação de Elke Schlote, editora científica e coordenadora de projetos, teve como foco apenas duas iniciativas. A primeira analisou a inovação num formato antigo como uma aula de línguas na TV. A aula virou um seriado envolvente. Os alunos são imigrantes (um iraquiano, um russo etc.) e a professora alemã. As situações de aprendizagem nada têm a ver com as tediosas repetições tipo "the book is on the table". São sempre relacionadas à vida cotidiana de alguém que acaba de chegar na Alemanha: a procura de emprego, as diferenças culturais etc. A diversidade de experiências entre os próprios alunos também provoca ricas cenas dramáticas, incluindo um namoro entre a professora e o iraquiano, causador de uma polêmica nacional. A segunda iniciativa apresentada por Elke Schlote é ainda mais interessante: uma pesquisa que grava em vídeo a reação de um grupo de crianças assistindo programas na TV, tentando perceber o que prende e o que dispersa suas atenções. O resultado prova muita coisa em detalhes. Mesmo uma explicação sobre o funcionamento do esôfago, quando é encenada de maneira criativa e bem narrada, faz com que as crianças grudem os olhos na tela. Gostaria de fazer o mesmo tipo de experiência para todos os programas com os quais já trabalhei...
Depois do IZI, foi a vez da Beatriz Lindenberg apresentar os projetos do Instituto Marlin Azul, já bem conhecido aqui no Overmundo por intermédio do seu projeto Revelando os Brasis. Como o tempo era curto, Beatriz só conseguiu falar sobre o Projeto Animação, que desde 2002 ensina a produção de desenhos animados para alunos da rede pública de Vitória, Espírito Santo. Gostei de saber que as oficinas de animação conseguem também incentivar outros tipos de trocas culturais na cidade. Por exemplo: ao buscar músicos para a trilha sonora de seu filme, uma turma se lembrou de um grupo de congos que havia perto da escola. A parceria deu tão certo que esse grupo já tocou para outras animações, inclusive acompanhando uma orquestra sinfônica. Isso mostra como não só o produto final, mas o próprio processo de produção, se pensado de forma não óbvia, pode dar início a outras transformações sociais importantes para uma rede cada vez mais ampla de grupos e indivíduos envolvidos na sua criação.
CONTINUA EM Comunicação e Mundo em Transformação - PARTE 2
Hermano, o filme esta linkado pra o site da Communication Iniciative
Roberto Maxwell · Japão , WW 14/10/2007 14:04Hermano, senti muitíssimo não ter conseguido ir ao seminário...ultimamente tenho pensado em como essas ações [como as oficinas de animamção da Marlin Azul e Fundação Puentos de Encuentro] estão transformando as ocupações nas comunidades: com os jovens acreditando e investindo suas existências em funções de cultura/comunicação e criando seu próprio ambiente/destinação de trabalho.
bucadantas · Natal, RN 16/10/2007 16:38
Estive aqui, mas não votei.
Salvo e votado...
Bacana mesmo, Hermano.
Uma "aula " imperdível!
A divulgação destas discussões é muito importante. Gostaria de sugerir um texto ou uma espécie de glossário com termos como prosumer, net neutrality, não no sentido que não estejam devidamente referenciados/linkados na matéria, mas para sistematizar estes conceitos-chaves deste mobilização social tão ampla feita através da internet
Evandro Bonfim · Rio de Janeiro, RJ 18/10/2007 01:38oi Evandro: muito boa a sugestão: acho que essa é uma tarefa a ser feita colaborativamente, cada pessoa dando a sua contribuição para o glossário, de preferência (pois estamos no Overmundo) relacionando os termos à situação da internet no Brasil - você não quer dar o ponta-pé inicial?
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 18/10/2007 01:46
Oi Hermano
"comunicação para a transformação social é aquela que possibilita que as próprias pessoas que se comunicam, elas mesmas, decidam (no processo de se comunicar, e como resultado da comunicação) que transformações desejam fazer em suas sociedades."
É o velho desafio (transformação social) com novos meios(comunicação), concorda? Cabe até aquela frase já surrada: "A luta continua". Com novos paradigmas é claro. Lendo em Spinoza o conceito de cosmocracia vejo isso tudo acontecer na minha frente e penso que um dia poderemos até ter uma civilização mesmo. Mas sempre dependemos de um elemento imprevisível: o homem. É uma "variável" que "ninguém merece"...rsrs...imprevisível.
Prof. Hermanno,
A primeira grande paixão do homem, depois da mulher, foi a velocidade. Começando pelo cavalo, a mais antiga e permanente; milênios depois, para nossa era, veio o revólver,
não durou muito e foi proibido. A micro eletronica, seus ramos de comunicação, a internet (a jóia da coroa), durou menos que o revolver e já começa a sofrer restrições.
A pergunta é: Em que ponto os resultados de tanto esforço, via seminários, escritos, tratados - tudo venha atingir
o homem como pessoa comum., no dia a dia. ?
Mas, um apnahdo, uma exposição na altura das suas
vontades, das suas investidas.
um abraço, andre.
Andre, acho que o seminario nao estava discutindo o futuro das pessoas. Ja foi o tempo em que seminarios faziam isso. O que os seminarios andam fazendo eh tentando entender o que as pessoas andam fazendo nesse mundo tao veloz. O resultado do seminario nao vira a atingir as pessoas comum. As pessoas comuns que atingiram em cheio o seminario. Veja, por exemplo, o caso da pirataria que explodiu com o assunto do filme Tropa de Elite, por exemplo. Apesar da imprensa vir abordando o tema marginalmente com frequencia, essa eh uma realidade da populacao brasileira ha muitos anos, uma forma de acesso a bens culturais de forma mais barata. Se eh correto ou nao, os seminarios que andam debatendo por ai. Mas, eh fato. Alias, recentemente assisti os documentarios - altamente recomendados - Steal This Movie e Good Copy, Bad Copy. Eles mostram, por um lado, "iluminados" ou "visionarios" ou "piratas" como queiram as pessoas chama-los que pensam e agem na cabeca do movimento (se eh que se pode chamar essa acao de lideranca, no sentido antigo da palavra). Por outro lado, estao os usuarios comuns e esses sao parte importante do processo, nao apenas porque colocam dinheiro nas maos de quem produz mas, sim, porque mais que nunca usam seu direito de escolha e, ainda, tornaram-se produtores tambem.
Enfim, a discussao vai longe...
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