Natal, a cidade do Sol, viveu alguns dias da sua história sob a tutela de um governo comunista. Mesmo abafado em pouco tempo pela força das tropas federais, esse evento, até hoje, causa muita polêmica quando é relembrado.
NASCE UM MITO
Quando a munição acabou, não houve alternativa para os exatos 42 soldados que defendiam o quartel da PolÃcia Militar. O comandante, LuÃs Júlio, orientou os combatentes a saÃrem pelos fundos do prédio, que ficava à s margens do rio Potengi. Na tentativa da fuga, um dos soldados foi abatido pela artilharia rebelde. Luiz Gonzaga morreu deixando a marca de sua mão manchada de sangue na parede do quartel, tornando-se herói da PolÃcia Militar do Rio Grande do Norte.
Outra versão diz que Luiz Gonzaga era apenas um agregado da PolÃcia que vivia pelas redondezas do quartel. Durante a resistência, ele teria cuidado da munição dos soldados. Sua morte teria se dado em uma situação diferente da alegada pela polÃcia. Trajando somente um calção, Luiz Gonzaga foi atingido por um tiro disparado por Sizenando Figueira, participante do levante comunista.
A insurreição de 1935 em Natal começou há pouco mais de 70, no dia 23 de novembro. Oficiais tomaram o 21º Batalhão de Caçadores, em nome do tenente LuÃs Carlos Prestes, principal liderança comunista do Brasil à época. A revolução dominou Natal em questão de horas. A única resistência armada foi oferecida pelo quartel da PolÃcia Militar, onde teria acontecido a morte de Luiz Gonzaga.
A POLÊMICA
A versão de que Luiz Gonzaga foi o herói da resistência ao levante comunista não foi contestada até 1985. Nesta data, quando a insurreição completava 50 anos, o jornalista e pesquisador Luiz Gonzaga Cortês publicou no jornal O POTI, um artigo (parte de uma série de 19 artigos publicados entre os dias 26 de maio e 24 de novembro de 1985, intitulada “O comunismo e as lutas polÃticas no Rio Grande do Norteâ€) o que viria a desmentir a história oficial. Cortês encontra algumas contradições nos testemunhos do ex-chefe de polÃcia João Medeiros Filho. No livro “Meu depoimento†de 1937, a lista oficial publicada com os combatentes mortos não trazia o nome de Luiz Gonzaga. Ao reeditar o livro, com o nome de “82 horas de subversãoâ€, em 1980, o suposto soldado teria sido incluÃdo.
O relatório citado pelo pesquisador foi feito depois que o movimento rebelde se dispersou. Na madrugada do dia 26 de novembro, chegou até Natal a notÃcia de que tropas vinham da ParaÃba com o intuito de restabelecer a ordem. Os dirigentes do Partido Comunista, em reunião, decidiram desistir do intento e, em sua maioria, fugiram.
Antes disso, Natal tinha vivido o único governo comunista estabelecido em território brasileiro. Os rebeldes tiveram o completo controle da cidade durante os dias 24, 25 e 26 de novembro. Nesse espaço de tempo, o governo constituÃdo baixou pela metade o preço do pão e do bonde, além de confiscar carros e o dinheiro que estava nos bancos da cidade.
Todos esses fatos foram largamente utilizados pela ditadura do Estado Novo, implementado por Getúlio Vargas, poucos anos depois da derrota dos comunistas, como exemplo da suposta bagunça que tinha sido a insurreição. É nessa análise que a teoria da adulteração se encaixa.
O testemunho de outros envolvidos no caso também coloca em dúvida a veracidade da condição de soldado de Luiz Gonzaga, afirmando, inclusive, se tratar de propaganda anticomunista. Giocondo Dias, um dos lÃderes da revolução declarou ao ‘POTI’, que se trata de “uma absurda falsificação histórica, mais um elemento da indústria do anticomunismoâ€. Sizenando Figueira, algoz do ‘soldado’ Luiz Gonzaga, completou: “Fazem discursos para os comunistas serem odiados pela populaçãoâ€.
A RESPOSTA
Pouco mais de sete décadas depois a história não está completamente esclarecida. A PolÃcia Militar, através da pesquisa da sargento Célia, amparada por extensa documentação, atesta que Luis Gonzaga realmente foi soldado. O comprovante do alistamento é datado de 31 de outubro de 1935. Essa versão condiz com o que disse João Medeiros Filho: “Ele era um dos municiadores da metralhadora, a cargo do tenente Pedro Vicenteâ€. Quanto ao relatório, o ex-chefe de polÃcia admitiu a adulteração, mas afirmou ter feito de “boa féâ€. “Houve uma adulteração de um livro para o outro visando harmonizar os textosâ€, disse João Medeiros.
O alistamento se deu menos de um mês antes da insurreição comunista. Segundo o Coronel Ângelo Mário de Azevedo, o pequeno espaço de tempo de tempo entre o alistamento e a efetiva participação na resistência se deve ao fato de, naquela época, ainda não havia concurso para soldado. “Qualquer um que quisesse poderia entrar na corporaçãoâ€.
A sargento Célia ainda apresenta como comprovação, a nota de falecimento e exclusão do soldado, datada de 24 de novembro de 1935. Além do documento que trata da promoção por bravura ao posto de Cabo. Posteriormente, Luiz Gonzaga também foi promovido ao posto de 3° Sargento, em 1º de janeiro de 1952. Porém o decreto só veio a ser publicado em 22 de março de 1954. Em 15 de agosto de 1977 o governo do Rio Grande do Norte instituiu a ‘Medalha do Mérito Policial Luiz Gonzaga’, sendo uma das mais altas honrarias do Estado.
OUTRAS HISTÓRIAS
A história da Insurreição de 35 sempre foi repleta de informações desencontradas e boatos. Os acontecimentos foram contados de diversas formas diferentes e muitas vezes contraditórias. Por exemplo: o paradeiro do governador Rafael Fernandes. Jornais da época, como a Folha da Manhã (atual Folha de S.Paulo), atestavam que o governador se encontrava abordo de uma ‘canhoneira mexicana’. Outras versões falam de asilo no consulado do Chile; de fuga em avião francês, até à versão mais acertada, que afirma o governador ter se abrigado no consulado da Itália.
Conta-se, também, que os revoltosos teriam feito grande número de saques no comércio da cidade, quando, na verdade, foram efetuados pela própria população. Segundo Praxedes de Andrade, um dos lÃderes do movimento, disse, em entrevista ao jornalista Moacyr de Oliveira há alguns, que “isso só teria ocorrido por conta do comércio não ter aberto as portas, apesar de o governo ter ordenado o funcionamento normalâ€.
O próprio nome como ficou conhecido a Insurreição abriga uma polêmica. ‘Intentona’ é uma palavra pejorativa que vem do castelhano e é traduzida como “tentativa loucaâ€. Segundo o historiador Hélio Silva, seu uso era parte de uma campanha do governo Vargas para desqualificar o movimento comunista brasileiro. Outra polêmica trata de uma suposta “ordem de Moscouâ€. A história oficial relata que a Revolução fez parte de uma estratégia para implantar um governo comunista no Brasil.
Historiadores como Marly Almeida Viana discordam dessa versão. “Nunca houve qualquer diretiva da Internacional no sentido de um levante armado no Brasilâ€. A veracidade de um bilhete que foi enviado para a coordenação estadual do Partido Comunista é mais um ponto que precisa ser esclarecido. Apesar de ter sido planejado para ocorrer no dia 27, o levante em Natal foi antecipado para 23 de novembro de 1935. Mesmo depois sete décadas passadas e diversos estudos, as dúvidas permanecem.
Filipe Mamede
Isaac Lira
VEJA TAMBEM:
Conheça a história de Amélia, umas das 29 mulheres que fizeram parte da Insurreição Comunista de Novembro de 1935.
Filipe.
Texto excelente. Uma contribuição sem limites para a cultura e para a nossa literatura.
Parabéns, amigo, eu estava certo em inclui-lo entre meus favoritos.
Abraços
Noélio Mello
Vez por outra, a história nos revela nuaces pouco exploradas. Tentei abordar por aqui, mais um pouquinho de uma história que é contada de maneira diferente nos livros didáticos. Obrigado pela leitura 'Noélio'. Fico feliz pela 'inclusão'. Um abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 5/7/2007 10:21
Grande matéria, Filipe! Nossa história, nesta época aà é muito rica de mitos e fatos, tudo embaralhado. cabe a pessoas como você (ou nós, sei lá) desembaralhar, descontruir pro trem voltar aos trilhos bons.
Grande abraço.
Filipe
Ótima matéria sobre um tema que, como você bem o disse, é até hoje controverso e, portanto, aberto a investigações históricas, como a que faz Aristóteles Estevam no artigo A insurreição Comunista de 1935 em Natal, o qual você pode ler no site História do Rio Grande do Norte na WEB disponÃvel em
No artigo, ele diz que o levante do 21o BC, embora tenha durado apenas três dias, chegou lançar o jornal revolucionário “A Liberdade†e a se espalhar por 17 das 47 cidades do estado à época, entre as quais encontrou total apoio apenas em Santa Cruz:
“Rumo ao interior, o movimento ampliou-se e conseguiu dominar 17 cidades das 47 existentes. ConstituÃdo por colunas o movimento comunista espalha-se pelo nosso território, promovendo a tomada das prefeituras, incêndio dos cartórios, soltura dos prisioneiros da cadeia e nomeação de um novo prefeito. Requisitam o dinheiro da prefeitura e da mesa de rendas, além de destituÃrem o delegado e o tabelião público.
Em direção ao Seridó, os rebeldes tomam Santa Cruz, única cidade do Estado que aclama e aplaude o movimento. A partir dali, o movimento dirige-se a Currais Novos. No entanto, encontram resistência, especificamente na Serra do Doutor, através de um grupo armado sob a liderança de Dinarte Mariz, que consegue desmontar os rebeldes, que saem em fuga.â€
Acho que vale a pena visitar este site. Você vai gostar. E, novamente, parabéns pela matéria.
Abração.
Filipe
Não sei o que aconteceu. Além de parte do texto sair em azul, não consegui colocar o link da matéria no site sobre o Rio Grande do Norte, que é este: http://www.seol.com.br/rnnaweb/historia/republica/insurreicao.htm
Desculpe-me.
Abraço.
Filipe
Eu de novo. Descobri o que houve. Na verdade linkei o texto todo em azul com o referido site. Só não sei como.
Sem crise Nivaldo. Na verdade eu já conhecia esse artigo. Outro fato bastante controverso, foi o conflito entre os rebeldes fugidos de Natal e as tropas supostamente encabeçadas por Dinarte Mariz. Na verdade, segundo às entrevistas feitas pelo pesquisador e jornalista Luiz Gonzaga Cortês com participantes do levante, leva a crer que Dinarte Mariz nunca esteve na Serra do Doutor naquele dia. Esse é outro que foi exaltado pela historiografia existente. No lugar onde o conflito se deu, existe um monumento. Mas isso já sou outros quinhentos. Abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 5/7/2007 11:25
Felipe, eu já tinha lido seu outro artigo sobre Amélia. Este deve ir pelo mesmo e bom caminho. Vou ler com mais calma depois, pois merece.
Aliás, no ano que vem (referência ao texto no seu perfil), você já pode trabalhar em alguma revista dedicada à História.
Imagina se você fica sem função e ação na vida? Fica não.
Abraços
O que vovó me diz aqui ao lado, sobre o episódio de 35, contemporânea que ela é de Prestes e ainda comunista (graças a Deus, ela ri) é que a propaganda não é a alma, mas a arma do negócio.
O internacionalismo (a ordem de Moscou) havia há muito entrando em baixa no perÃodo pós-NEP (1929>), de afirmação por Stálin do Socialismo num só paÃs, razão porque o PCUs não tinha qualquer vontade forte e estratégica além fronteiras que não fosse aquela antiga afirmação do desenvolvimento do capital local para que o desenvolvimento das forças produtivas de cada paÃs desse cabo das tarefas da revolução.
Lembra vovó que isso era chamado de etapa onde a revolução burguesa não se completara (o que até hoje não aconteceu no Brasil:
reforma agrária nem pensar,
desigualdade de direitos entre as gentes,
nem fraternidade
e liberdade pouca).
De resto, aprendemos na dureza da vida que a história oficial é escrita até aqui pelos vencedores, ainda que a vitória aproveite a poucos contra a maioria.
Spartacus,
Ataualpa,
Ganza Zumba,
Anastácia,
Zumbi,
Joaquim José da Silva Xavier,
Filipe dos Santos,
Sepé Tiaraju,
Lanceiros Negros
Zapata,
Machado de Assis,
Bilac,
Anita,
João Cândido,
Olga,
Iara I.,
Lamarca,
Gonzaguinha,
Elise muitas outras pessoas,
PRE-SEN-TES!
Saravá, Filipe. Belo texto.
Conta pra gente, Filipe: você e Isaac mergulham nessas pesquisas só por prazer ou trabalham com isso de alguma forma?? Bem bacana mesmo! Abs, Helena, a curiosa.
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 5/7/2007 13:46
Filipi, desculpe por ter escrito Felipe no meu comentário acima...
Abs
Muito esclarecedor e devemos lembrar que a nossa História realmente é recheada, entremeada e enxertada de mentiras pelos instrumentos de educação dos governos brasileiros. Gostaria de sugerir uma pesquisa pela história verdadeira da guerra (ou genocÃdio) do Paraguai, baseada nos documento ingleses que eram os financiadores da trÃplice aliança e que ainda têm vasta documentação sobre o ocorrido, mas que desmente completamente a versão brazuca oficial.
marcossph · Rio de Janeiro, RJ 5/7/2007 17:13
Uma aula de História, que não conhecia! Parabéns pelo texto!
Cris
Pois é Filipi, O Brasil tem dois feitos lamentáveis:
a) Vem lutando para dar um salto na História, a questão da História e da Indenização da Escravidão Africana e da Reparação IndÃgena;
b) Na mesma direção "escrever" a História que interessa à nobreza, aqui entendido como "o grupo, ou agrupamento que vive de estado.
Sou dos que não ver outra forma de armonia entre pessoas e povos, que não pelo comunismo.
Parabens, andre.
Beleza Filipe esse resgate.
Em toda história, em todo fato histórico, há sempre contradições que o tempo encarrega de tornar um mistério a ser desvendado.
abcs
olá.. esclarecedor e informativo, presta um serviço prá quem é daqui ... Mais um parabéns. Abraços
analuizadapenha · Natal, RN 5/7/2007 23:10
Fantástico, Felipe, Fantástico.
Parabéns!!!
Vamos resgatar a história...ela merece. Agradeço a visita de todos. Obrigado, e podem esperar, que sempre tem mais. Afinal, a história é feita todo dia não é mesmo. Um abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 6/7/2007 08:03
Filipe.
Parabéns muleque. É isso ai!
Grande contribuição, Filipe. Parabéns e espero que nos brinde com outras passagens históricas da tua terra.
Abraço,
Leandroide.
Uma revisão, um documento e uma ótima história.
Boa Filipe!
já dizia aquele moço lá do outro lado do mundo - "queres ser universal? canta tua aldeia..."
Bia Marques · Campo Grande, MS 6/7/2007 19:05
Oi Filipe e Isaas, é muito bom conhecer mais um pouco da nossa história (quase) esquecida. Aproveitei e li também o texto que vcs escreveram antes, falando sobre a Amélia.
Gostaria de fazer duas sugestões:
1) se quiserem conhecer um pouco sobre o movimento comunista nas favelas do Rio, lerem Esperança Vermelha, reportagem escrita pelo jornalista Marcelo Monteiro e publicada no site Favela Tem Memória,
2) caso queiram prosseguir nessa linha de pesquisa e resgate histórico, acho que seria muito interessante ouvir o depoimento de potiguares que viveram essas 82 horas de governo comunista. Ouvir de quem fez parte daquele momento histórico, como foram aqueles dias, quais são suas memórias mais marcantes, como a população reagiu à redução de preços, ao medo de "comerem as criancinhas", e até confrontar com essas versões oficiais e de historiadores (por exemplo, os saques ao comércio).
Abraço.
Felipe...
Estou na fila de edição Literatura e Cultura -Consciência Fêmea.
http://www.overmundo.com.br/banco/consciencia-femea
Obrigado se lá for dar teu comentario
Abraços
Filipe Mamede, duvido muito que você venha a engrossar qualquer fila de desempregados ao concluir seu curso de jornalismo.
Somos colegas - já posso te considerar assim -, porque um verdadeiro jornalista não se manda fazer... Faz-se a si mesmo - ou nasce pronto... A formação universitária é mais um polimentozinho... O importante é ler de forma consistente - e isto já notei que você faz. Meus cumprimentos pelo texto agradabilÃssimo e substancioso. Vai, que o mundo é teu!
Grande abraço.
O nom jornailismo ainda resiste e bons jornalistas estão saindo do forno. Que bom!!!
Joana Eleutério · BrasÃlia, DF 27/9/2007 12:50Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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