A história começou com um papo informal – quase todos os bons projetos começam assim. Elton Medeiros falava dos ranchos de sua infância, da produção musical feita para aquele estilo de festa carnavalesca que deu origem a muitas das características que vemos hoje nas escolas de samba. Tudo que ele contava soava como marcha-rancho de alta classe no ouvido dos músicos cariocas presentes: enredo pensado para o desfile, fantasias temáticas, bailes preparatórios e um timaço de compositores que, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, compuseram pepitas tão inesquecíveis que resultaram num gênero musical conhecido até hoje: a marcha-rancho.
Como seria um rancho nos dias de hoje? A pergunta logo virou ação, motivando reuniões no Bip-Bip - tradicional pé-sujo e reduto de samba em Copacabana – para pensar a criação de um novo rancho, cerca de 60 anos depois do declínio do movimento original graças à ascensão das escolas de samba. Participei daquelas primeiras conversas, no ano 2000, na carona da empolgação do meu irmão Pedro, que é um dos idealizadores da brincadeira e o regente da orquestra que se criou a partir dali. Foi lindo: a votação que elegeu o nome Flor do Sereno, a decisão das cores – verde, azul e prata -, o planejamento e a produção para desfilar na Avenida Atlântica em 2001. Sugestivo: a virada do século viu emergir a volta de uma bela festa, em moldes adaptados aos novos tempos. Agora, sete anos depois, o Rancho Flor do Sereno, quem diria, já tem uma história. E ela acaba de ser resumida em um belo disco (do qual vou falar no fim deste texto). Mais uma vez, a data é sugestiva: em 2007 o Ameno Resedá, um dos mais emblemáticos ranchos cariocas, faria 100 anos.
A trajetória do Flor do Sereno é feita de muita paixão e pouco dinheiro, como tantas celebrações carnavalescas da cidade. Mas tem particularidades e desenho próprio por se tratar de um movimento que se espelha em uma manifestação que morreu há mais de meio século. Logo se notou que era importante ver o que os tais novos tempos pediam.
Por exemplo: ranchos antigos tinham cavalos, clarins (!!), coreografia, desfile. Os cavalos e clarins de cara foram descartados, mas por que não tentar o desfile no formato ida (marcha-rancho), parada (samba-amaxixado) e volta (marcha-regresso)? Assim foi tentado em 2001.
Rapidamente grandes figuras se engajaram no processo: Elton escavou a memória e a gaveta de fitas para encontrar a marcha-regresso que compôs no início dos anos 80 com Maurício Tapajós e Cacaso. O etnomusicólogo Samuel Araújo criou a marcha-rancho “Flor do Sereno” e Aldir Blanc fez letra para o samba-amaxixado de Jayme Vignoli, “Regresso da Flor”. Quer lembrar quem eram os 171 em evidência nos anos 00?
“Já a prata se nos falta é barata e não amola.
Ninguém no Rancho é Nicolau ou é Cacciola (...)
Feito arroz de butiquim,
Unidos venceremos:
Conosco ninguém phodemos!”
O desfile saiu, graças aos esforços de Alfredinho. Caminhãozinho de som modesto com a orquestra, alas fantasiadas, cantores animados. Foi bonito e um tanto improvisado, como toda primeira vez. Para o segundo ano, já se percebiam mudanças: caminhãozão de som, vários cantores, mais estrutura e, conseqüentemente, mais gente. Cresceu demais e assustou um pouquinho. Percebeu-se que não fazia sentido ir e voltar como os ranchos de antigamente (eles voltavam para suas sedes). Então, para o terceiro ano, também por causa da grana escassa, ficou resolvido que o rancho ficaria parado, em frente ao Bip-Bip, promovendo um grande baile. É o modelo que vale até hoje.
Dá tão certo que todos os personagens típicos de Copacabana se espremem na mínima rua Almirante Gonçalves para dançar aquelas músicas cadenciadas, em ritmo inversamente proporcional ao cada vez mais acelerado andamento dos sambas-enredo que estão sendo executados a alguns quilômetros dali, no Sambódromo. Em 2003, 2004, dava para ver velhinhos levando cadeira de praia para assistir ao show sossegados, e levantar apenas para aquelas canções que mereciam um miudinho.
De uns anos para cá, como tudo no carnaval carioca, a coisa bombou. Até demais. Então, o pessoal do rancho está convivendo com as dúvidas de boa parte dos blocos: como fazer para não crescer mais do que é razoável? Como meus dois irmãos fazem parte da parada, observo tudo de perto e posso dizer: dá muito trabalho e gera muitos dilemas, que envolvem as responsabilidades de atrair uma multidão sem ter garantias de segurança pelo poder público. Veremos cenas do próximo capítulo no carnaval de 2008.
Seja como for, os bailes continuam inesquecíveis. Para mim e para a senhorinha muito, mas muito velhinha que “é descida” em sua cadeira de rodas para a portaria do prédio vizinho ao palco. Ela fica ali, quietinha, do lado de dentro da grade, com a acompanhante, que sorri quando alguém as nota e manda beijos. Todo ano olho para o prédio e, enquanto a vejo lá, sinto que o Rancho continua indo muito bem, obrigado!
Disco verde-azul-e-prata
O disco do Flor do Sereno tem projeto gráfico com desenhos de Paulo Villela, pai do cavaquinista/compositor Jayme Vignoli. Tem uma flautista japonesa, a Naomi, um clarinetista português, o Rui (que divide a direção musical do disco com meu irmão Pedro) e um percussionista, o Bolão, que tem pinta do Leôncio do Pica-Pau (que já seria suficientemente figura parado, mas ainda assim dança e sorri o tempo todo no palco). Não dá para citar todos, mas tem também músicos de bandas de sopro do interior, figurinhas fáceis de outros blocos, cantores de samba com perucas chamativas, chorões de estirpe. Tem pais e filhos, irmãos e irmãs, bem-te-vis e rouxinóis.
Essa família se reuniu no disco para apresentar a marcha-regresso do trio Elton-Mauricio-Cacaso (que estava inédita até então); a polca Ameno Resedá, de Ernesto Nazareth (um clássico do gênero, em arranjo-gafieira do meu irmão Paulo*) e o choro Flor do Abacate, do rancho de mesmo nome que, em outras épocas, rivalizava com o Ameno Resedá. De resto, são onze músicas feitas especialmente para os desfiles, de gente como Cristóvão Bastos, Paulo César Pinheiro, Maurício Carrilho, Luiz Cláudio Ramos, Luciana Rabello e o já citado Aldir Blanc, entre outros. Tem letras arrojadas, melodias de tirar o fôlego (no bom sentido) e arranjos modernos. Deixando claro que modernidade aqui não tem nenhuma relação com scratches de DJs e sons eletrônicos (nada contra eles!), mas sim com ousadia harmônica aliada à busca incessante do que pode funcionar bem nos bailes do século 21.
Dá gosto de ver que o surgimento do rancho estimulou gente nova a começar (e gente veterana a voltar) a compor em estilos variados para o carnaval. Nostalgia? Só se for a do futuro, desejo de todo e qualquer carnaval de qualquer tempo, vontade de botar o povo para "cantar em paz”, como diz uma das faixas. E, claro, de fazer a velhinha da cadeira de rodas ter uma nova serenata todo ano à sua porta.
***Infelizmente, não vai dar tempo de o texto ter votação antes do show de lançamento, dia 7 à noite, na bat-rua de sempre, em Copacabana. O Egeu foi mais rápido no gatilho! :)
****Adoraria colocar todas as músicas do disco por aqui, mas ainda não é possível. Fico contente de poder mostrar esta Ameno Resedá, a única em domínio público, que afinal é um ótimo link passado/presente. Dá para ouvir mais uma aqui.
*****Uma última história, que só ouvi ontem. A música Santo Amaro (Franklin da Flauta, Luiz Claudio Ramos e Aldir) levou um tempão para ser completada. Era um choro, mas neste disco entrou com arranjo de marcha-rancho. Franklin ficou surpreso e foi conferir a gravação. Caiu em prantos no estúdio, como se reencontrasse um filho que não via há tempos. Como se não fosse suficiente a emoção, alguém levou uma gravação - a única de que se tem notícia, segundo o pessoal - do Rancho Ameno Resedá, justamente de 1907. Assim que acabou a execução de Santo Amaro, perceberam que a faixa do rancho antigo estava exatamente no mesmo tom (Dó Menor) e no mesmo andamento da gravação que acabava de ser feita. Santo Amaro emendou no trechinho de 100 anos atrás do jeito mais natural do mundo. Mais uma coincidência?
Parabéns Helena.
Novamente uma boa história. Bem contada porque bela.
Aqui fazíamos bandas, para sair na rua no sábado de Carnaval.
A DK foi de 76 a 98, no último século do milênio passado.
A Da Saldanha ainda resiste, um pouco modificada, sem regresso, porque já não mais vai, fica na frente de um palco, como também ficava, desde que nasceu, a Banda do Dorinho.
Acho que dia desses escrevo algo sobre isso pra deixar registro.
Quase choro. Lembro que em 1984 a DK deu capa de caderno de variedades: "O Folião volta à rua".
E era eu e uma linda passista, pegos de surpresa, num flagrante à frente da Banda.
Dia desses voltamos, com certeza.
Gratíssimo.
Helena,
Coicindência é a gente sair de um boteco de biritas e passear nas ruas cantando e o povo saber que aquilo é festa, ainda que seja loucura.
Banda, bloco, rancho, tribo, como eram aqui em Porto Alegre, cordões são carnaval de participação, de foliões. E isso é bater lata e cantar. Daí, logo aparecem os que gostam e, porque gostam, sabem tocar, compor, cantar e alegrar.
Tua resenha do Resendá (que nome lindo!) é um quitude.
E a música, ai, ai, ai. Uma festa.
Fechei os olhos e sai rodopiando feito piorra nova em mão de moleque.
Beijin
Helena, que texto bacana! Viva a folia, o futuro, esse novo século - com rancho - e tudo mais que a gente merece! Beijos
Lázaro Magalhães · Belém, PA 10/9/2007 00:52Fantástico Helena! Você escreve talentosamente.Parabéns!
geovanisantos · Cabo Frio, RJ 10/9/2007 15:30
Que maravilha Helena!
Realmente há confusão entre modernidade e modernosidade.rs.
Como você mesma diz, nada contra nada, mas que o conceito fique claro. Parabéns.
Obrigada pelos comentários. Na sexta a festa foi bonita, na rua, aberta, mas sem muvuca, confusão, só alegria. A velhinha da cadeira de rodas estava lá e ganhou até uma salva de palmas dos presentes ao ser anunciada no microfone. É a mascote do rancho!
Helena Aragão · Rio de Janeiro, RJ 10/9/2007 19:50
Helena, sempre fui encantada pelo nome do rancho, adorei saber do seu envolvimento com isso tudo.
E, quando eu crescer, quero saber contar histórias igual a você.
Beijo!
Só faltou umas fotografias pra ilustrar legal... gostei muito. Um abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 11/9/2007 08:39
Eu gosto de samba de um modo geral, mas as coisas que rolam no carnaval-off são o que tem de mais bacana aqui no Rio!
Os blocos que desfilam na Rio Branco são uma atração e tanto, acompanhei a produção de um video chamado "Coroado" que mostra a trajetória do bloco da Cidade de Deus que compete nesse desfile de blocos. Foi uma experiência e tanto!
Acho que o samba é um monstrinho incontrolável, movido mesmo a paixão de quem vive e faz samba. Sentimentos que vão muito além da institucionalização do carnaval.
Que interessante, Xavi. Vocês não pilham para botar esse vídeo no Banco de Cultura? Tenho MUITA curiosidade sobre esses blocos e escolas de samba de grupos de acesso. Deve ser incrível mesmo. Depois conte mais sobre essa experiência do vídeo.
Paula e Mamede, maravilha. Desculpa pela falta de fotos, agora tenho várias do show de sexta, mas não dá mais para incluir! Abraços
Belo texto!
Bom para se ler num fim de tarde e entrar à noite enlevado.
Parabéns.
MarcoSanto
Mensagens Personalizadas
Grande Helena, parabéns por esse excelente texto! Me deu muita vontade de assistir ao desfile de marchas rancho do Flor do Sereno. Agora, o grande brinde da noite foi esta gravação incrível do Ameno Resedá que você disponibilizou do CD do Rancho Flor do Sereno. É provavelmente o arranjo mais rico que já ouvi desta peça (das 35 gravações que conheço, agora 36, com esta que não tinha :). Parabéns redobrado ao Paulo Aragão! Esse CD definitivamente eu tenho que comprar. Que legal eles terem gravado Os Rouxinóis também. Esta é considerada o "canto do cisne" do Lamartine, pois foi seu último grande sucesso depois de algum tempo sem produzir (cantamos esta peça na homenagem que a minha profª e amiga dele, Neusa França, fez no centenário do Lamartine há alguns poucos anos).
Obrigado por esse excelente texto, Helena, e tomara que as Marchas-Rancho voltem para ficar!
Alexandre Dias
Grande Alexandre, pois é! Nem me toquei que este arranjo, além de ser lindo, seria um valoroso adendo na sua pesquisa! Também achei bárbaro o arranjo. A gravação do Rouxinóis é com a voz do Elton Medeiros (também com arranjo do Paulo), ficou muito bonita. Legal saber esse histórico da música!
Anjosdoamor, que a sua noite tenha sido embalada no astral das marchas-rancho!
Cara Helena: aqui, nesse site sou nova, porém, para falar em cultura poderás encontrar alguma coisa minha em oito coletâneas e em vários números da revista Dartis, para qual escrevo. E no meu blog, ‘Porto das Crônicas’. Minhas crônicas tratam do ser humano na sua essência: seus medos, agressividades, frustrações, invejas, tristezas e relacionamentos de modo geral. Cultura é algo muito abrangente e é feita por gente e para gente. Li seu texto ‘Convocação...’ E de que se trata? De gente, de festa, de cabelo, de sapato... Não existe vida cultural sem gente e, essas, com seus problemas, não? Portanto, amiga, recebo suas boas-vindas, mas cultura não é somente cinema, teatro, baile e futebol... É literatura, e sobre gente e seus dramas poderás encontrar lendo Camus, Dostoiévsky, Tchekhov, Kafka etc. Mas, pelo que estou sentindo, segundo seu critério, estes nomes que citei, não teriam muita vez aqui, nesse site... Mas de qualquer maneira, posso lhe enviar o calendário cultural de Porto Alegre.
Abraço!
Taís Luso
RESPOSTA DE HELENA ARAGÃO PARA TAÍS, EX-INTEGRANDE DESTE SITE
Helena Aragão • 18/9/2007 09:28
Oi Tais,
Em primeiro lugar queria te pedir desculpas se meu tom pareceu ríspido, como disse o Higor, no meu comentário. Não foi a intenção e mostra que ainda tenho muito o que aprender no que se trata da comunicação escrita.
Por favor, jamais quis dizer que sua colaboração deveria ser retirada do site (como você preferiu fazer, pelo visto). O tom no Overmundo é de sugestão e não de imposição - e se não foi isso que pareceu o meu comentário, peço desculpas mais uma vez. Talvez pela correria do dia de ontem, eu não tenha me explicado como deveria. Como vi que você era nova no site, quis passar o link explicativo pois talvez você não conhecesse as seções. Muitas vezes isso acontece e é normal - inclusive sabemos que o site precisa melhorar muito, sobretudo para quem está começando a explorá-lo. Pelo visto não foi o caso e sua escolha pela seção foi consciente. Tudo bem!
O Overmundo tem uma equipe de administração, mas quem decide os rumos do site é a comunidade, por meio de voto. Se tentei - ainda que por linhas tortas - dar minha opinião de que aquela seção não era mais adequada, foi justamente porque achei que o texto era bacana para correr risco de não entrar, pois acredito que alguns usuários teriam a mesma opinião que eu. Mas ninguém é dono da verdade por aqui não. Só a comunidade, como um todo.
Sobre seu comentário sobre cultura e até sobre meus textos: sei que a discussão é ampla, inclusive ela está sempre viva no Fórum do Overmundo. Torço que você traga um pouco de produção de suas oito coletâneas e do blog para este espaço. Em geral a recomendação da comunidade é que textos literários sejam publicados no Banco de Cultura e textos jornalísticos, ensaísticos, entrevistas e resenhas sejam publicadas no Overblog. É apenas uma maneira de organizar a casa. Você tem todo o direito de aceitar as sugestões dadas por mim e outros usuários ou não.
Abraço e, mais uma vez, bem-vinda.
Eu sou meio burrinha, embora pateta por completo.
Alguém poderia informar essa alminha d'eu dizendo onde foi que as locomotivas colidiram.
Até agora, tô na linha, e só escutei o estrondo.
Higor não postou qualquer comentário aqui.
Aqui Helena nada havia sugerido a Tais.
Taís atravessa a linha e me pega esperando uma Maria Ffumaça e segue feito trem bala.
E esse cara aqui do meu lado buzinando no meu ouvido querendo vender rapadura.
Nada entendi, mas compreendi.
Lindo texto, e lindo desenho. Sempre volto a esta postagem.
Abraços
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