O mito é o tudo que é nada, disse Fernando Pessoa. A democracia, entendida dentro de seu conceito formal-minimalista, é um mito. O mito americano da democracia se sustenta a partir desse imaginário e, ainda que persista em cambaleante fascínio, ocupa-se mais em proteger sua terra prometida de seus próprios ocupantes que de gozá-la tal qual o imaginado. Mas a liberdade de que gozam é um fato, o amor à pátria é um fato. Mas mesmo os fatos podem ser encarados sob diferentes perspectivas.
A certeza norte-americana sobre seu mito é seu parnaso e seu barroco. A identidade por eles desfrutada, no entanto, corre no sentido mais institucional que pessoal. A bandeira, o hino e o 04 de julho constituem eventos que, sem dúvidas, despertam comoção nacional. Mas é o país uma bandeira, um hino ou uma data? Ser patriótico em que consiste? Consiste em ser a máquina ou seus operários? Mas o patriotismo também é uma certeza. E é absoluta. E já prendeu muitos ingratos. E ainda prende.
O que somos e de onde viemos é uma pergunta difícil a tal ponto que não vale a pena ser feita. Mas o que um hispano-afro-americano diria? Ele tem certeza de que é hispano-afro-americano. Está escrito na carteira de motorista e por isso todos têm certeza. E a América é a terra da liberdade. E é a terra da democracia. E disso eles também têm certeza. Está escrito. Eles votam. Eles protestam com lindos cartazes de madeira. Eles constituem o paradigma da vida associativa. Human Rights Watch, Black Power, NRA, KKK.
Nas avenidas de NY, passeando pelas calçadas, qualquer um pode comprar por 8 dólares uma camiseta do FBI ou da NYPD. Em DC, é fácil achar cartões postais com o rosto róseo do presidente. Afinal, como disse Britney Spears, ícone do pop-jovem americano, “confio no presidente, pois ele vai sempre pensar no melhor para gente”. O presidente, eleito em pleito indireto, percorre alguns estados do sul e dança valsa com a primeira dama. Gente como a gente. O presidente é a democracia encarnada. E a democracia é o país encarnado. Mas o país é a encarnação de quem mesmo?
O homem percorre e sofre em seu caminho na busca pela felicidade. Mas a despeito dos escritores russos, dos filósofos, dos poetas, de Sartre, de Freud, de Marx, de Lennon, os americanos têm certeza sobre a felicidade. E por isso, ou são perdedores ou vencedores. Ou são nerds ou populares. Ou são zagueiros do time de futebol americano ou são alvos do bowlling. E é no baile de formatura que elas perdem a virgindade. Somente as que foram convidadas, pois a humilhação do ostracismo é imperdoável. Mas eles têm certeza de que sua sociedade se encontra no ápice e que por isso é preciso espalhá-la por todo o globo. Mas não entendem porque são odiados no Iraque. Nem mesmo os soldados, libertadores. Mas mesmo incertos, ocasião rara, se o fazem, fazem por seu país. Por sua bandeira. Pelos pais fundadores. Pelo mito. Que é tudo...
O mito é o tudo que é nada, disse Fernando Pessoa. A democracia é um mito no Brasil. É incompleta, é seletiva, é deturpada. Chegam a pensar alguns que nunca existiu. Alguns chegam a pensar que nunca vai existir. No Brasil, tudo vem de cima para baixo. O Brasil foi construído de cima para baixo. Mas em qual terreno esse prédio suntuoso, que desceu dos céus, se assentará? Chegam a pensar alguns que, quando descer, esmagará os de baixo. Alguns chegam a pensar que nunca descerá. Mas vive muita gente aqui embaixo. Gente demais. Mas essa gente pensa nisso? E aquela gente de cima, nunca pensa nisso?
A incerteza brasileira é seu parnaso e seu barroco. A identidade por nós desfrutada, entretanto, é muito mais pessoal que institucional. A bandeira é feia, o 07 de setembro é só um feriado. Mas o hino é lindo. E tem gente que chora, mesmo conhecendo Brasília. Mas é o país uma bandeira, uma data ou a cidade de Brasília? E ser patriótico é ser Brasília? E o jogo de futebol é patriótico? Ser patriótico é ser a máquina ou suportá-la para lhe superar, quem sabe? O patriotismo aqui é uma incerteza. E é generalizada. Mas já salvou muitos ingratos. E ainda salva.
O que somos e de onde viemos é uma pergunta difícil a tal ponto que não pode deixar de ser feita. Mas o que o Ronaldinho Gorducho diria? Ele é branco ou negro? Ou é moreno? Ou é o que é dependendo de cada um que o vê? Ele não tem certeza nenhuma além do fato de ser brasileiro. E de ser misturado. E de achar isso tão natural que nunca lhe ocorreu que alguém pudesse ter alguma certeza. Ele, sabe que é branco. Mas ele não tem certeza, a despeito do que se encontre escrito nos relatórios do IBGE. E o Brasil é a terra da desigualdade. E disso, todos temos certeza. Mas temos a certeza de que Deus é brasileiro. Mas como ter certeza, né? Cachaça pro Santo e vela para a Virgem. Nós votamos. Também. Somos o paradigma da desconfiança recíproca. Bar, Fla, CV, CPI.
Em uma barraca de camelô, comprei um boné escrito 171. No código penal, esse é o artigo que define o estelionato. Tinha também uma camiseta escrita FÉ. Em Brasília, quem não veste terno e gravata acha que todos os políticos são iguais. E queimam um boneco do presidente no dia de malhar o Judas. Afinal, como disse Gabriel Pensador, ícone do pop-jovem brasileiro, “eu matei o presidente”. O presidente, eleito diretamente, às vezes percorre alguns estados nordestinos e diz que é gente como a gente. O presidente é o sacana encarnado. E a sacanagem é o país encarnado. Mas o país é a encarnação de quem mesmo?
O homem percorre e sofre em seu caminho na busca pela felicidade. Mas a despeito dos escritores russos, dos filósofos, dos poetas, de Sartre, de Freud, de Marx, de Lennon, os brasileiros não têm certeza alguma sobre a felicidade. Mas têm certeza de que se a canoa não virar se chega lá. E cabe espaço, acreditem, para um olê-olê-olá. E é por isso que não há vencedores ou perdedores. Há o malandro. Ou choramos ou damos um jeitinho. Ou se vira jogador de futebol ou continuamos a jogar no campinho de lama. Mas quem não gosta do campinho de lama? E é no carnaval que se perde, novamente, todo ano, a virgindade. E o obscuro põe a máscara. E sempre há uma colombina. Mas nós temos a certeza de que nossa sociedade é abençoada e que por isso é preciso espalhar todo o globo por nossa sociedade. Mas não entendemos por que somos tão amados na França. Nem mesmo os sociólogos, castradores. Mas mesmo assim, incertos, temos certeza de que chegaremos lá. Por nós mesmos. Pelo mito. Que é nada...
Gostei pra caramba!
Spírito Santo · Rio de Janeiro, RJ 4/4/2007 08:42Obrigado camaradas...
Diogo Lyra · Rio de Janeiro, RJ 4/4/2007 11:22
Tem mais por aí, com certeza.
O tom da toada é muito, muito bom.
Chega-se ao fim pensando em ter mais inclusive do mesmo.
É um estilo, homem!
Além do que: o que acontece é, independente do que seja ou de quem veja.
O Brasil e a 'democracia' que aqui 'existe' é só uma avacalhação.
O Estado de direito é avacalhado;
O respeito as leis é avacalhado;
A 'igualdade' é avacalhada...
IMPUNIDADE, DESIGUALDADE..., o Brasil é FODA!!!
O BRasil é saqueado desde o seu 'descobrimento' e, mesmo assim
ainda continua rico. O BRasil é phoda. A DEMOCRACIA é foda! }:]
Perguntas que surgem com tua contribuição: em que país do mundo a democracia não é, entre outras interpretações, também um mito? Temos uma identidade ou um remix de várias identidades? Você é o brasileiro que eu sou? Ser patriota é bom para quem e para quê?
Alê Barreto · Rio de Janeiro, RJ 7/4/2007 16:39
Se fosse bem no fundo, mas no fundão mesmo, do jeito que tá a casa no Planetinha Terra, cada vez mais conforme com a afirmação de que a democracia vivida nas sociedades de hoje não passa da ditadura do capital (e dos capitalistas em seus variados governos) e aí pode até escolher, se capital industrial, capital financeiro, monopolista, oligopolista...
Tem pra tudo que é gosto.
E, pra desgosoto, o proletariado, ó:
minguou de jeito tal que finou-se-lhe o potencial aquele.
Toca a barca que atrás vem gente!
É, as opiniões e mesmo a compreensão acerca da democracia são sempre variáveis e, por isso mesmo, extremamente interesantes. No meu caso, compreendo a democracia como um eterno projeto inacabado, em permanente transformação, uma perseguição de novos ideais e direitos. A comparação entre o formalismo americano e a organicidade brasileira é uma provocação, no sentido de demonstrar que cada um possui diferentes processos, sem que haja uma "verdade". DE qualquer forma, só existe um poder legítimo pelo qual temos que lutar, que é, justamente, aquele depositado nas mãos da sociedade civil, organizada ou não...
Diogo Lyra · Rio de Janeiro, RJ 9/4/2007 09:36
Tenho acordo contigo.
No caso dos regimes, com democracia é melhor que sem ela.
A história nos diz bem disto, mesmo a nossa mais recente.
Estamos todas aqui a ponderar conceitos, em liberdade conquistada a penas duras contra a dita aquela.
Quanto ao modelo econômico, não tenho dúvidas de que deva ser outro que não imponha tanta exploração ao trabalho produtivo.
E, com certeza, tudo dependerá de níveis acumulados de organizaçã popular, que se aproxima do que se considera exigência social.
Falando em modelo econômico, vistes na fila de votação a pesquisa do BNDES sobre a economia da cadeia produtiva do livro?
Pra cultura seria bom divulgar mais aqueles conteúdos.
Se não o fizestes, o Adroaldo Bauer me pediu que votasse nela para passar ao banco de cultura. Não é dele o texto, é do BNDES.
Passa lá, falta pouco mais de meia-hora.
Agradecida, Diogo Lyra.
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