A brisa da manhã tem algo de indizÃvel, que nem palavras nem aquarelas são capazes de traduzir. No Mercado dos Peixes de Fortaleza, na Avenida Beira-Mar, a brisa não é o único obstáculo na tentativa de uma representação pictórica. Muito mais do que um quadro, a paisagem tem uma dinâmica própria. Duas realidades perpassam o mercado: a praia e a rua. Ao longo de sua extensão, a calçada – separada da praia por um desnÃvel de alguns centÃmetros – não só representa o urbano desbravando a natureza, confrontando o mar, mas, com seus boxes de concreto e sua organização, é o limÃtrofe de dois mundos.
Nos meus registros receei deixar de fora alguma impressão importante, mas tenho plena certeza de que, enquanto eu pintava meu quadro, meus personagens transitavam de um lado para o outro, entrando e saindo da moldura imaginária. Na calçada, eu me senti uma turista em Fortaleza, todo o tempo recebendo propostas de passeios de barco. Na areia, eu apenas observava. Os pescadores descalços empurravam seus barcos em direção ao peixe de cada dia sob o Sol escaldante. Só notei a diferença que isso fazia ao apanhar minha lapiseira que acabara de escorregar dos meus dedos, direto para a areia quente.
O meu passeio seguia até eu avistar um trio de estrangeiros conversando animadamente com um pescador, num barquinho. Tentei imaginar de onde a brancura deles provinha, mas o que mais me entretinha, para ser sincera, era como eles conseguiam se comunicar. Pena que eu não os escutava. Desprovida de meus óculos escuros, fui atingida por incômodos grãos de areia e, por instantes, só pude confiar no que ouvia. Não foi de todo ruim. Só assim prestei atenção no delicioso quebrar das ondas, na longÃnqua música que vinha de um barco e dos desagradáveis ruÃdos das construções dos arranha-céus da Beira-Mar.
Falando em Céu, havia um zeloso pescador pintando seu barco de um azul vivo, e a tinta, ainda molhada, brilhava tão vivamente, que não pude deixar de associar ao Céu. Logo chegava o fim da linha e, conseqüentemente, a hora da calçada. Confesso que peixes e frutos do mar em geral, prefiro-os vivos. Mas cada um dos vendedores com os quais conversei – salvo algumas exceções – aumentou um tiquinho os meus conhecimentos sobre frutos do mar. O primeiro vendedor disse os nomes de todos os peixes disponÃveis na barraca dele e eu perguntei quanto pesavam. Concluà que ele tinha uma balança nos olhos. Depois, claro, ao ver a precisão dos outros vendedores, percebi como a prática facilita as coisas.
Nesse ponto, já estava acostumada ao odor caracterÃstico não muito agradável. Logo aprendi que arraia se come cozida e desfiada, embora não tenha gostado muito da idéia. Apreciei o último pedaço do tubarão exposto. Era enorme e o exercÃcio de tentar imaginar as outras partes se tornou mais interessante do que vê-lo inteiro. Eu vinha observando os vendedores jogarem água e gelo sobre os frutos do mar. Encontrei um rapaz paciente, que esclareceu algumas dúvidas. A água, obviamente, era para manter os peixes frescos o máximo possÃvel. Quis saber, também, se os vendedores são pescadores. Não são. Na verdade, eles compram dos pescadores.
Quanto aos camarões, esses vêm de fora e são vendidos por “atravessadoresâ€, intermediários entre os pescadores e os vendedores finais. Tenho mais simpatia pelos camarões. Os peixes me encaravam, com os olhos inertes, os dentes ameaçadores e as lÃnguas nauseantes. Definitivamente, prefiro os camarões. Os preços entre um box e outro não variavam muito. Não vi muita diferença, aparentemente, entre os camarões de cativeiro e os do mar. Mas o preço dos camarões do mar era mais que o dobro dos de cativeiro. Segui meu caminho em busca de animais diferentes.
Porém, antes, fui apresentada a uma ova de peixe. Eu já sabia que não seria bem o meu tipo. Prestava mais atenção nas mãos do vendedor, das piabinhas para o dinheiro, do dinheiro para as ovas, das ovas para o troco. Nem preciso dizer que nos breves intervalos ele não lavava as mãos. Aliás, foi um hábito muito comum que presenciei – ou a falta de um hábito. Mas esse vendedor me conquistou. Depois que percebeu que ova no leite de coco não me agradou muito, sugeriu as piabinhas fritas com baião-de-dois, farofinha e cervejinha. O sorriso tão simpático e a satisfação dele me convenceram de que se eu fosse comprar qualquer coisa, seria lá.
Vi várias lagostas, todas pequenas e sem cabeça. Procurei, de box em box, algum que tivesse lagostas com cabeça. Quando vi lagostas grandes, achei que tivessem cabeça, mas não. Fiquei refletindo se a diferença dos tamanhos das lagostas não seria fruto da pesca de animais muito novos. Infelizmente, não conheço nada de lagostas. Então, comecei a me realizar vendo bichinhos vivos. Primeiro caranguejos, enquanto o vendedor de um box pechinchava, reclamando com o seu fornecedor – um homem com caranguejos pendurados num cabo de madeira – , que havia uns vivos e outros não.
Para o meu deleite, deparei-me com um pôster muito didático sobre camarões. Chamava-se “Garnelen Shrimp Rejer Crevettesâ€. Claro que eu não faço idéia do que significava, tive mais clareza ao ler “Scandinavian Fishing Year Book – Hedehusene – Denmarkâ€. As dúvidas se dissiparam: um pôster dinamarquês sobre camarões. Pena que era só isso que eu conseguia ler. Apesar do colorido dos camarões, a posição do pôster me mostrava muito bem uma árvore refletida no vidro que o protegia, e as pequenas legendas, não as li. Mas se eu não contei errado, havia 56 tipos diferentes de camarões. Alguns inimagináveis, mais parecidos com lagostas do que com camarões propriamente.
Deve ser um vÃcio jornalÃstico dar nome aos bois, ou aos peixes e camarões. Só que eu não me conformei com as denominações cinza, rosa e branco. Preferi o pôster dinamarquês. Mais divertido do que o cartaz, só os mariscos vivos. Os mexilhões à s vezes espirravam água, dando sinal de vida. Mas interessante mesmo – e novo para mim –, eram uns mariscos semelhantes a lesmas, a lambretas, com direito a antenas se mexendo e tudo. Foi por aà que encontrei um vendedor espirituoso. Ele me mostrou um encontro de “Lula com o povoâ€. Entenda-se: ele balançava uma lula com uma mão e um polvo com a outra.
Ele me perguntou se eu já tinha comido lula, eu respondi que não. Ele disse que eu não sabia o que era bom. Eu menti dizendo que iria experimentar. Provavelmente fui traÃda pelo meu sorriso amarelo e o meu olhar de descrença. Recapitulando meus recentes conhecimentos, voltei à praia mais uma vez. Um senhor de expressão séria, cabelos acinzentados e cachimbo na boca olhava para mim e não pude deixar de rir. Instantaneamente me lembrei do marinheiro Popeye. Uma versão tupiniquim: o meu Popeye era negro.
O sorriso nostálgico que eu ostentava foi arrefecido pela imagem de um garotinho – certamente mais jovem do que eu nas minhas lembranças da época do marinheiro Popeye – varrendo um barco. Assim, aos poucos, fui voltando à realidade. Subi na calçada, passei por dois estrangeiros, por uma mulher fazendo caminhada e me dei conta de onde estava. O cheiro de peixe ainda estava no ar. Olhei para trás, vi os boxes e as barracas e vi o meu quadro ali. Tudo se passou em um segundo, o derradeiro, para que eu percebesse. Mas acho que a minha pescaria foi frutÃfera. Quase que literalmente.
Adoro esses pequenos relatos sobre situações - aparentemente - sem importância. Parabéns pelo texto. Abraços!
Thiago Camelo · Rio de Janeiro, RJ 27/2/2007 16:09A amizade torna o comentário supespeito, mas quero te parabenizarmais um belÃssimo texto com tanta sensibilidade. Esppecialmente vindo de alguém que tem nausea com cheiro de peixe..
Raquel Thomaz · Fortaleza, CE 27/2/2007 18:40ô Andressa, belÃssimo seu texto...não sei se foi proposital, mas você acabou por fazer até denúncia, quando no texto deixa meio que sem rsolver se o tamanho dos camarões estão dentro do permitido...e o comércio da arraia não é probido?? humm...não sei...sei que tá show teu texto.
bucadantas · Natal, RN 27/2/2007 21:02Adorei o desafio de tentar casar seu lindo texto com essas imagens! Foi muito difÃcil, mas adorei o resultado. Parabéns e continue nos dando o prazer da leitura! ;p
Milena Ceará · Fortaleza, CE 27/2/2007 21:44
Bom, posso te dizer uma coisa. Eu não gosto de peixe, nem de lagosta, muito menos tubarão e principalmente o cheiro dessas maravilhas lá na beira-mar. Mas... o texto ta muito bom, bem escrito e deu para construir uma imagem de lá. Principalmente para aqueles que nunca pisaram lá.
Parabéns. =)
Esta reportagem passsou uma idéia muito real de como é o local, com os mÃnimos detalhes que chamaram muito minha atenção. A forma rebuscada da escrita não precisa de comentários.
Parabéns, Andressa.
O texto flui naturalmente e vai formando imagens na nossa mente. Sinto como se estivesse tido por lá tb. E adoro peixes e afins. Parabéns, Andressa, tá ótimo!
Maria Samara · Fortaleza, CE 27/2/2007 23:18
isso não é um texto....é uma verdadeira fotografia da feira de peixes da Beira Mar fortalezense...a Andressa é incrÃvel. Sou fã do texto dela. Me facina o poder de transformar um detalhe em o detalhe.
valeu, Back
A leveza e a cadência do texto transfiguraram o Mercado dos Peixes quase num parque de rosas.
Parabéns, querida.
Tu conseguiu algo difÃcil: me fez sorrir em diversos momentos da leitura. BelÃssima descrição de pessoas e coisas. E é sempre bom ler um texto espirituoso :) Valeu, Andressa!
Bruno Pontes · Fortaleza, CE 28/2/2007 03:05Para quem não gosta de peixe, o texto foi até muito gentil com os alimentos. hehehehe.
Tiago Coutinho - Grupo TR.E.M.A. · Fortaleza, CE 1/3/2007 01:15
O tÃtulo poderia ser: camarões ao vento...rs!
Brincadeira à parte, o texto está ótimo! Até pela sensibilidade que a Raquel mencionou.
Continue colaborando, Andressa!
Do mar, nunca se volta ileso. Nunca.
Belo texto.
Adorei essa pescaria do seu olhar atento. Até me vi novamente no mercado de peixes de Fortaleza. Bela paisagem e belas imagens nessa sua prosa poética. Parabéns. Fui levada do começo ao fim.
Cida Almeida · Goiânia, GO 1/3/2007 13:52belo que me trouxe de volta um lado muito querido do nordeste... coisas que vão ficando para trás de repente estão aqui, novamente, diante dos meus olhos no teu texto.
toinho.castro · Rio de Janeiro, RJ 2/3/2007 06:09Gostei muito! Me fez lembrar meus 10 anos de praia quando bem menino pescava siri e catava ostras, mariscos e tatuÃ, que, diga-se de passagem, tão gostoso como camarão. Rs.. Excelente texto Andressa!
Georges Kirsteller · São Paulo, SP 3/3/2007 16:45
O texto para mim trouxe uma experiência mediada, que pôde ofertar sensações de presenciamento, a qual só se tornou possÃvel pela riqueza de detalhes e competência de quem o escreveu. Ainda assim, faço algumas considerações resultantes de não identificações com o texto. Penso que há uma discrepância de linguagem. Ele relata um espaço entrecortado, um espaço de fronteiras entre dois “mundosâ€. No entanto, a linguagem do próprio texto não assume essa dinâmica. Privilegia-se uma linguagem formal, que quase nada aproveita a rica forma de falar dos que ali estão, da sua cultura, do seu modus operandi lingüÃstico e relacional.
Boa parte do texto relata uma preocupação sobre conhecimentos gerais dos frutos do mar. Tais parágrafos, na minha perspectiva, mediam algo desncessário. Se o objetivo do texto era saber sobre nomes de molúsculos e afins, uma pesquisa em uma enciclopédia ou uma entrevista com algum doutor em Engenharia de Pesca seria mais frutÃfera (rs). Os momentos em que esse conhecimento são passados pelos vendedores me parecem aà sim relevantes nessa circunstância de “crônica reporteiraâ€, que é o que me parece que tenta ser feito.
Há uma sinceridade extrema da perspectiva de gosto da autora em relação ao que ali é vendido. A preocupação com a higiene passa a ser, entretanto, algo meio que obsessivo no texto. Os furtos são vendidos para serem cozidos. Nesse processo, a maioria dos germes morrem. Totalmente desnecessária a observação “dinheiro, comida, dinheiroâ€. Essa parte demonstrou fatalmente um olhar antipático e pouco aberto ao conjunto de relações e contradições mais amplas que dali emergem, o que denuncia que efetivamente que a sensação de “turista†é mais verdadeira de todas.
Um olhar um pouco mais imerso seria capaz de tornar a experiência mediada ainda mais densa, ainda mais poética e inquietadora.
Abraços
Por alguns pequenos impedimentos de humor e técnicos, não pude dizer antes o quanto seu texto é belo e requintado sensorialmente.
Sinto muito orgulho... Vai longe! =*
Legal Andressa! Me imaginei verificando os produtos nas barracas. Adoro frutos do mar, principalmente na panela (moqueca é divino). Parabéns pelo seu texto.
MeninaCor · São Martinho, SC 9/3/2007 06:55Nem sei se dar nome a impressão sobre textos é bom, mas achei muito bom o texto. Lembra muito a imagem que eu tenho sua freqüentando as aulas da UFC. Para mim este é tipicamente um diário de viagem, até mesmo com o vai-e-vém dos olhos.
André Gurjão · Fortaleza, CE 16/3/2007 17:48Impressionante... acabo de me sentir andando pelo calçadão da Beira Mar, sentindo o cheiro de maresia, desviando das pessoas, sentindo a brisa, olhando o artesanato... Andressa, voce realmente consegue decifrar a realizadade e traduzi-la no papel... Parabens pelo texto e pelo talento! Um beijo pra voce!
Bruna Pellegrini · Fortaleza, CE 16/3/2007 22:44Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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