Com Fabiana Mesquita
O distinto "boa noite" de William Bonner parece até piada. Isto porque lá fora o sol ainda brilha, embora o Jornal Nacional esteja no inÃcio. São 17h e o dia na rua corre solto. Logo, à s 18h, começa a novela das 21h. Antes, uma advertência: “Senhores pais, o horário de vocês é diferente do horário de BrasÃlia. Também nos preocupamos com a sua famÃlia, mas a palavra final é suaâ€. Enquanto o aviso é dado, um ponteiro de relógio imita uma viagem no tempo e regride algumas horas. No Acre é assim: quando o sino da Catedral Nossa Senhora de Nazaré bate à s 18h, é a deixa para que Duas Caras entre no ar.
Aliás, desde o dia 18 de fevereiro, a novela global das 21h vem começando uma hora mais tarde, à s 19h. A data marcou o término do horário de verão no Sudeste, Centro-Oeste e Sul do Brasil. Ou seja, o Acre, que não alterou o seu relógio durante o perÃodo, voltou a ficar com duas horas a menos em relação ao fuso de BrasÃlia. No horário de verão, o Estado enfrenta três horas de diferença. O que isto significa? Ligações de parentes de outros estados na madrugada, bancos funcionando das 9 à s 13h, concursos públicos nacionais à s 5h e, claro, novela das 21h iniciando quando ainda se vê luz do dia.
Com a defasagem de uma hora corrigida, o sol ao menos já se pôs quando a novela entra. Mas o fato de já ser noite ainda é pouco para apaziguar o ânimo dos donos das retransmissoras locais de TVs abertas, que vêm fazendo malabarismo para adequar a programação da rede à realidade do tempo acreano. E se agora as emissoras já têm de rebolar para não deixar o prato cair, o pior ainda está por vir: dia 7 de abril começa a vigorar a Portaria 1220/07, que regula os programas por meio de classificações indicativas. Discutida aos quatro ventos pela imprensa e opinião pública, a medida foi implantada no paÃs no ano passado em substituição à Portaria 264/07, que, entre outros itens, responsabilizava o Ministério da Justiça (MJ) pela classificação prévia dos programas. Durante boa parte de 2007, assistiu-se a uma enorme chiadeira de artistas e emissoras de televisão acusando o governo de reviver os tempos de censura. Manifestação que fez o governo repensar e, segundo suas próprias palavras, dar "um voto de confiança" aos canais – na Portaria atual, os produtores de conteúdo passaram a ser responsáveis por apontar a faixa etária e o horário adequado de exibição dos programas. Assim, o MJ acalmou a parcela mais exaltada sem, contudo, ceder e perder um de seus focos principais: a garantia da liberdade de expressão e de escolha da população, seguindo prática adotada em grande parte dos paÃses democráticos. Além disso, também bateu o martelo e confirmou que a medida deve respeitar os diferentes fusos horários do paÃs.
No Acre, a Portaria 1220/07 era para estar valendo desde janeiro. Caso não fosse uma nova portaria, que deu mais três meses para os estados com fusos diferenciados se adequarem, boa parte das emissoras locais estaria atualmente em situação irregular. Por exemplo: a novela Duas Caras passa no horário livre das 19h, mas é indicada apenas para maiores de 14 anos. Segundo os defensores da Portaria, a medida é uma questão de isonomia: por que, afinal, as crianças do Rio de Janeiro mereceriam ser protegidas de conteúdos inadequados e as do Acre não?
De fato, é uma discussão intensa, que mexe com todo o funcionamento de uma emissora. É complicado à beça montar uma grade de programação: cada minuto é colocado na ponta do lápis. Não há tempo (nem dinheiro) a perder. As retransmissoras dos estados periféricos recebem da sede uma grade fechada com a ordem do que será transmitido. No Acre, acontece o mesmo, mas ninguém se entende direito – vira e mexe ocorrem inacreditáveis desencontros: "Mas eu falei 21h daà e não daqui!", reclama um programador.
Nasce uma estrela
Alheia à confusão, Léa Lima está feliz da vida. Ela é apresentadora do Acontecimentos, programa de variedades que passa aos domingos, 22h, na TV Rio Branco, retransmissora do SBT na região. Há dois meses no ar, ela não chega a ser uma celebridade, mas já colhe os frutos de exibir seu rosto no horário nobre: não são poucas as pessoas que a reconhecem na rua. Acontecimentos é um programa sobre quase tudo: numa semana, Léa está no estúdio entrevistando uma personalidade. Na outra, está no interior do Estado mostrando uma cidade que outrora era desconhecida para os próprios acreanos. Ela ainda dá receitas gastronômicas, visita clÃnicas de estética, indica lojas de grife e acompanha desfiles de moda. Uma mistura de Ana Maria Braga com Glória Maria.
Muito dificilmente um semanal como o de Léa teria espaço na programação de rede do SBT. Esta hora, para a maioria do Brasil, está passando o Oito e Meia no Cinema (programa que vai ao ar, no Acre, à s 18h30!). O curioso é que o mesmo fuso horário que torna possÃvel o sucesso de Léa vem enlouquecendo empresários do ramo televisivo, mobilizando polÃticos – o senador Tião Viana tem projeto de lei para diminuir o fuso do Estado em uma hora – e causando dor de cabeça a todos que tentam se adequar à nova Portaria.
Devido a esta diferença no tempo, alguns canais vêm, aos poucos, entendendo a necessidade de gravar programas da rede para retransmiti-los mais tarde no horário nobre local. Além de já se precaverem de uma possÃvel guerra judicial, eles ainda cobrem a demanda por atrações em diferentes faixas do dia. Todas as séries e novelas da TV Gazeta/Record são gravadas e veiculadas em outro horário, prática conhecida como time delay (atraso do tempo) pelos profissionais da área. A TV Rio Branco/SBT assumiu comportamento parecido, ainda mais depois de perder, temporariamente, o finado Programa do Ratinho (as piadas do apresentador não se adequavam ao horário). A TV Acre/Rede Globo, que também já foi obrigada pela Justiça Federal, em 2005, a exibir o seu Zorra Total mais tarde, é curiosamente a emissora que menos vem mostrando preocupação até agora. Os jornais locais passam em sincronia com o restante do paÃs. Se em São Paulo a primeira edição do Bom Dia São Paulo já é cedo, à s 6h30, a versão do jornalÃstico acreano – à s 4h30 – mais parece direcionada aos insones ou a quem acorda antes de o galo cantar. O canal só agora se mexe para não ser pego desprevenido pela Portaria.
- A Globo quer que os programas feitos ao vivo entrem ao mesmo tempo no Acre. A programação não será mais engessada, aquilo que não é ao vivo será gravado e irá ao ar mais tarde. O mais provável para as quartas de futebol, por exemplo, é que os jogos ao vivo passem entre a novela das 21h e o Jornal Nacional – explica Ivan Félix, chefe de operações da TV Acre/Rede Globo.
De um fato, ao menos, não há dúvida: com a Portaria, abre-se um hiato nas programações, preenchido por programas feitos pelas emissoras locais e, também, por produções absolutamente independentes – como é o caso do Acontecimentos, de Léa Lima.
Mercado promissor
Loira, 1,70m, cabelo repicado na altura dos ombros, a apresentadora é vaidosa. Tem um corpo bonito. Não revela a idade, mas parece beirar os 35. Fala com uma voz de veludo, feita para TV, embora a dicção não seja tão boa. Léa tem um dos programas independentes mais bem feitos do Estado. Só no SBT, são mais de dez produzidos quase no mesmo esquema: apenas uma câmera, apenas um apresentador. Não há produtora – tudo é feito na raça. No caso de Léa, foi seu marido, Marcelo Costa, quem bancou a aventura. Ele, em dado momento, cansou de pagar edição e cinegrafista. O resultado não lhe satisfazia e, ainda por cima, custava caro. A solução foi aprender sozinho a filmar e montar. Para receber convidados, os dois fizeram um cenário com uma bancada, plantas e quadros ao fundo. A câmera de Marcelo não pára, procura todo o corpo do entrevistado, enquadra-o na diagonal – uma linguagem "jovem". Como todo programa independente do Acre, e o de Léa não é exceção, é o próprio apresentador quem anuncia os produtos dos patrocinadores. Não raro, ouvem-se alguns deslizes, como um "se você gosta de ação e entretendimento" ou um "isso é perca de tempo". No caso de Léa, o escorregão foi no "leite pausterizado". Nada que a faça perder a pose. Nem tampouco o orgulho. Léa gosta tanto do programa que acredita que alguns concorrentes locais já imitam o seu estilo.
- Os outros programas independentes não são tão bons. Há falhas, os enquadramentos são errados, as legendas são cortadas, áudio e imagens são ruins. No meu programa tem coisas que só eu faço, frutos da minha criatividade – conta a apresentadora.
O cuidado de Léa com o espaço que construiu é até compreensÃvel; falta recurso para a produção independente acreana e, mesmo com a ajuda do fuso do Estado, ainda não são todos que conseguem destaque na grade imposta pelas emissoras. A partir do mês que vem, com a nova Portaria, é possÃvel que os canais não vejam outra solução senão investir em novos conteúdos. No Acre, apesar dos eventuais escorregões, alguns programas já têm usado a criatividade e feito a sua parte – eles apontam o caminho num mercado televisivo tão complicado quanto promissor.
E para quem acha que já está de bom tamanho os quatro horários do Brasil, cabe a lembrança: a Rússia tem 11 fusos.
Tiago, eu li o que vce escreve. Infelizmente, ainda não havia entrado no seu texto para te falar isso durante a edição. Mas a minha pergunta é muito simples: você leu o manual de classificação indicativa. Sinceramente, eu acho que assumir o ponto de vista da "proteção" das crianças e adolescentes é dar vazão a um pensamento obscurantista que tem as suas origens na Idade Média quando eles buscavam queimar livros. Esse, por exemplo, é o conceito de "adequação" da programação à faixa etária.
gic · Rio de Janeiro, RJ 24/3/2008 12:40
Oi gic, tudo bem?
Respondendo a sua pergunta: sim, li o manual de classificação indicativa, assim como matérias, entrevistas e debates sobre o tema (alguns links estão no meu texto).
Quanto à comparação da classificação indicativa com "pensamento obscurantista que tem as suas origens na Idade Média", perdão, acabei ficando no meio do caminho da compreensão do que vc quis dizer. O texto que escrevi, acredito, não é exatamente sobre a classificação indicativa ser boa ou má, e sim sobre como ela se reflete num estado com o Acre, que tem o fuso diferente da maioria do paÃs. Verdade, afirmo que a medida é prática comum na maioria dos paÃses democráticos (basta uma pesquisa na legislação de outros locais), que houve um debate público intenso a respeito do tema e que o governo foi firme e coerente nas decisões que seguiram este debate. Foi como vi os fatos na época e agora, após uma pesquisa retroativa sobre o assunto.
Mas, na minha opinião, o mais interessante no texto (e acho que sua opinião pode somar muito a ele, gic) seria o relato daquilo que vem acontecendo no Acre por conta do fuso. Muitos dizem ser impossÃvel adequar a programação do lugar ao horário. Mas alguns produtores independentes já provaram que isso pode acontecer.
Seria bacana saber sua opinião a respeito. Qual seria a solução para a televisão do Acre? Acho que daria um bom debate. Um forte abraço e obrigado por ter opinado no texto!
O horário da programação televisiva no Acre é diferente de qualquer outro estado, e fomos nós que até hoje nos adaptamos a ele. Por isso alguns canais abertos exibem tantos programas independentes, uns legais, outros não (com qualidade péssima). Mas o bacana disso é que os acreanos assistem, participam, comentam. Não ficam presos àquela programação engessada das grandes emissoras.
Não é ruim assistir aos jornais da madrugada (por exemplo) às 22 horas, mas é bom que sejamos avisados sobre o conteúdo antes de o programa começar.
Primeiro, eu não acho que forçar a emissora a passar a programação obedecendo a um fuso-horário seja a solução para a regionalização da programação. Como diz a Fabiana Mesquita, o horário do Acre é diferente e alguns canais abertos exibem programas independentes. Pergunto, isso acontecia antes ou depois da portaria? Eu acho que é antes porque ao que me parece o prazo da portaria foi prorrogado.
Portanto, não é a portaria que regionaliza a programação. Eu sinceramente acho que vce forçar as emissoras a retransmitirem a programação gravada engessa ainda mais.
IncrÃvel tudo isso, esse Acre do Brasyl !
muito boa a abordagem.
abração
Tiago
MUITO pertinente este assunto, muito bom seu texto, mesmo com uma diferença bem menor, (uma hora) em Mato Grosso doSul, onde vivi por quinze anos, acontecem coisas parecidas.
É bem legal que as produções locais ganhem espaço na grade das TVs de Sampa e Rio, apesar das "precariedades" de equipamentos ou produção... para quem tem filhos pequenos É MUITO IMPORTANTE sim a classificação etária e o deslocamento de horários da programação e não vejo censura nenhuma nisso, afinal por mais que a gente cuide dos pequenos, um dia ou outro acontece de chegar até eles um assunto (ou vários) ou uma cena (ou várias...) que, além de não ajudar pode atrapalhar e MUITO no desenvolvimento mais tranquilo e sadio de suas personalidades, já passei apertos no coração e na alma por causa de anúncios de filmes e programas chocantes e inadequados...
PARABÉNS
Muito interessante sua abordagem, texto, relatos. Confesso que nunca tinha pensado sobre isso, muito legal.
Acho válido ter classificação indicativa, e não só no começo, mas durante a programação também. No caso dos acreanos...acho que melhor é ficar com os independentes, se o povo gosta, é isso...sem programa de massa...
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