Sem dúvida alguma o maior cronista das figuras que povoaram a cidade de Teresópolis, desde a sua fundação, foi Armando Vieira. Em uma obra encantadora, intitulada Theresopolis (Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 1938) o autor realizou um trabalho Ãmpar que garante uma aula da história e da geografia locais, assim como um retrato do gosto, da mentalidade e dos costumes do passado. Além disso, o livro é recheado de mapas, tabelas de temperatura e muitas outras especificidades preciosas.
Uma das personagens mais interessantes trazidas à tona pelo autor, embora citada muito rapidamente, é D. Emilia, também conhecida como Mademoiselle Brunet.
Dona Emilia morava no bairro do Comary - ainda hoje um lugar lindo, com um lago artificial, escuro e silencioso, que lhe serve de enfeite – vivia completamente sozinha, a despeito de ter um irmão que também andava por essas paragens.
Foi uma solteirona... Bem, como posso dizer sem ofender a memória de uma mulher que viveu e morreu há alguns bons punhados de anos atrás? A verdade é que Dona Emilia era um tanto machona, digamos assim. A lenda conta que tinha a voz grossa e os modos pra lá de distantes do que se esperava do sexo frágil.
Nas palavras de Armando Vieira:
“Não se fala mais em D. Emilia Brunet, nem no seu irmão Julio (agrimensor), bôas criaturas que bons serviços prestaram ao lugar, honestas e laboriosas. Eram filhos do Professor Brunet, francez, preceptor dos filhos do Engenheiro Bahiana. Brunet e esses dois filhos, alli foram ter, chamados por um outro filho, empregado de Bahiana no Dominio de Comary.
Onde morou D. Emilia e onde esteve por muito tempo a Agencia do Correio, ostenta-se hoje, transformado completamente o terreno com o desmonte parcial da pequena collina que lhe barrava a entrada, a linda portaria da Granja Comary do Dr. Carlos Guinle, cercada de artÃstico jardim guarnecido de finas plantas, inÃcio de ampla estrada pavimentada e arborizada de castanheiros que conduz á séde da Fazenda, de que adeante fallareiâ€.
Mas o que há de tão curioso afinal acerca de Mademoiselle Brunet?
Bem... A nossa senhorita tinha um hobby um tanto atÃpico para as moças da época... Imaginem isso, coisa muito curiosa e particular, quando as fêmeas se distraÃam no máximo com bordados ou panelas e, as mais modernas - quem sabe - ousariam pintar um quadro.
A sua arma contra o tédio era nada mais nada menos do que a taxidermia!
Para quem não sabe taxidermia significa – ao pé da letra – dar forma à pele. Isto é: rechear o corpo de animais mortos garantindo que conservem a forma mais próxima possÃvel daquela do espécime quando vivo.
Não posso deixar de imaginar D. Emilia, essa dona um tanto rude e acavalada, caminhando pelas montanhas daqui a procura de gambás, ratos, macaquinhos e sabe-se lá o que mais. Acredito que muito bicho servisse, conquanto estivesse bem morto (mas não tão ido a ponto de passar do ponto).
E isso quando tudo não era mais do que um nada... Arquitetem só como seriam naquela época os matagais fechados de Teresópolis!
Há de se reconhecer duas coisas. A primeira é que Mademoiselle Brunet não se deixava assombrar por coisa pouca e a segunda é que deveria ter mesmo umas coxas muito machas para subir e descer por esses barrancos carregando a sua colheita de animaizinhos finados.
Mas - excluÃdas essas considerações - sobra bem pouco... E isso tenho que confessar ainda que seja para o mal dessa crônica.
Consta apenas que a casa de Mademoiselle Brunet converteu-se, aos poucos, em um museu da fauna local que era visitado por turistas, cientistas e curiosos em geral.
Que fim a moça levou exatamente é uma coisa que ninguém sabe.
Miguens:
Uma crônica urbana-histórica-bibliográfica numa só tacada.
voltarei.
Abraço.
Lustato
Obrigada, Lustato. Eu confesso que nem sabia o que era... agora sei: crônica urbana-histórica-bibliográfica.
Gostei!
Linda foto e uma bela aula aprendi hoje meu amigo.
parabéns!
Linguagem escorrente fluidamente com graça em nosso ouvido. Gostei e votei. Parabéns.
Mari Tiscate · Rio de Janeiro, RJ 9/2/2009 12:29BelÃssimo texto e maravilhoso trabalho.Votado!
Orisvaldo Tanniy · Teresina, PI 10/2/2009 08:17
Bacana, Miguens!
D. EmÃlia Brunet (será que tem alguma ligação com a feminÃssima Luiza Brunet?) era mesmo uma figuraça, pelo visto.
Só fiquei com pena dos macaquinhos, caçados para serem taxidermartirizados taxidermatados, sei lá. Como você disse que ela era rude cheguei até que me apareceu a idéia da La Brunet sambando. Ufa!
Bela matéria.
Abs
(consertando:) ...cheguei até a pensar nela como um megera...que me apareceu a idéia da La Brunet sambando. Ufa!
SpÃrito Santo · Rio de Janeiro, RJ 10/2/2009 10:24
Obrigada pelo seu voto, Orisvaldo!
Sabe, SpÃrito ... Se D. Brunet taxidermista evoluiu para La Brunet sambista – isso pressupondo o seu parentesco – para mim é um sinal de que Darwin deu com os burros n´água!
Ai... ai!
...Ou então que os burros deram com o Darwin n'água. Ha ha ha ha ha !
SpÃrito Santo · Rio de Janeiro, RJ 10/2/2009 19:33parabéns pela cronica, nos tempos atuais serÃamos levados a pensar no sacrifÃcio dos bichinhos não fosse a suavidade com que o texto foi escrito. Àquela época e da forma como foi colocado, foi uma atitude inédita que transformou a austera Sra.Brunet numa inovadora.
siqueira,solange · Teresópolis, RJ 10/2/2009 22:45
Oi Miguens, resolvi mudar de postado porque aquele lá estava me deixando um tanto ou quanto cansada, e me deparei com essa delÃcia de crônica. Além dela própria, a troca de comentários entre vc e o SpÃrito sobre evolução e involução me arrancou boas risadas. E olha, vc se diz uma operária das letrinhas lá no seu perfil. Que nada, elas não mandam em vc, é vc que manda nelas e manda muito bem. Eu quase diria que vc é uma "gigolô das palavras". Só não digo pq se vc não conhecer a hilária crônica do VerÃssimo, assim denominada, vai pensar que estou fazendo grosseria. Mas vai no google e depois me diz se não estou com a razão.
Bj
Miguens,
(Com licença: Vim só pra dizer que fugi de lá também. Eu heim!)
Ha ha ha!
Ize,
fico muito feliz mesmo com o seu elogio, nem imagina. Não conheço essa crônica do VerÃssimo, mas vou ler e, de todo modo, “gigolô das palavras†não me pareceria ofensivo. E ainda mais vindo de você, sempre tão elegante nas suas colocações.
Então, vamos os três ficar por aqui?
Estou morrendo de rir sozinha! É muito engraçado esse Overmundo!!!
Beijos.
Por mim vamos ficando onde der pra ficar.
Neste propósito de ir ficando, me peguei imaginando aqui umas palavrinhas bem catitas, abusadas, fogosas e supermaquiadas, rodando bolsinhas num post-calçadão destes que, vez por outra bombam por aqui, na home do site. Me ocorreu até a imagem da (do) tal 'gigolô' briosa (o), com o bigodinho fino (falso, é claro) exigindo mais trabalho das 'meninas', pobres palavrinhas de 'vida fácil', com ameças veladas, do tipo:
_"AÃ, ó! Porrada eu não dô que não sou violento, mas, já viu, né? A mina que trouxé menos que 100 merréis por dia, aqui pro papaizinho, tá fora! Vai ralar do meu dicionário, morô?
Pronto, como estou vendo que vcs estão com preguiça de procurar a crônica, recortei e colei. Divirtam-se.
Bjs
"O gigolô das palavras
LuÃs Fernando VerÃssimo
Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra lÃngua. Cada grupo portava seu gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saÃda que o tal professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com suas afrontas à s leis da lÃngua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, à s pressas, minha defesa ("Culpa da revisão! Culpa da revisão !"). Mas os alunos desfizeram o equÃvoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o VerÃssimo errado? Não. Então vamos em frente.
Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princÃpios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer "escrever claro" não é certo mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possÃvel surpreender, iluminar, divertir, mover... Mas aà entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.) A Gramática é o esqueleto da lÃngua. Só predomina nas lÃnguas mortas, e aà é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da lÃngua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura.
Claro que eu não disse isso tudo para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas - isso eu disse - vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão indispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo à s suas custas. E tenho com elas exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua famÃlia nem o que outros já fizeram com elas. Se bem que não tenho o mÃnimo escrúpulo em roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladÃssimas. Algumas são de baixÃssimo calão. Não merecem o mÃnimo respeito.
Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria a sua patroa ! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção dos lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias pra saber quem é que manda."
...Qui dilÃcia! Devia ter revelado a minha cena imaginária do gigolô com suas 'meninas' depois de ler a crônica do VerÃssimo. Ia poder dizer que me inspirei nele, na verve no número e me gabar da reverência de rufião aprendiz.
Ai qui dilÃcia!
O que VerÃssimo diz aà sobre a gramática tem a ver com a discussão do outro postado sobre a diferença entre lÃngua e dialeto, certo? Porque é a gramática - conjunto de regras que devem ser seguidas por quem quer falar e escrever corretamente - que confere letimidade à lÃngua.
O doutor Armando Borges, personagem do "Triste Fim de Policarpo Quaresma" usava dos seguintes truques pra dar a sua escrita a mesma feição dos clássicos:
"O processo era simples: escrevia do modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o perÃodo com vÃrgulas e substituia incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés, empós, e assim obtinha o seu estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral"(l.Barreto)
bjs
Ei SpÃrito nos desencontramos nos comentários, caraca o post é da Miguens. Genial a crônica, né? Uso muito qdo as alunas começam a ficar cheia de dedos pra escrever. O problema é qdo o texto vem daquele jeito, eu reclamo, e elas dizem: fazer o que professora, as "meninas" são insubmissas, já não se fazem mais gigolôs como antigamente. rs rs rs
Ize · Rio de Janeiro, RJ 27/2/2009 13:48
Lima genial ensina aÃ, simplesmente como se lida com qualquer literatura. Aula de romancista, de ficionista isto aà porque, como se sabe, a melhor maneira de comunicar algo é fazê-lo de forma que o interlocutor entenda e se emocione, se toque.
Armando Borges, por certo sabia como agradar os amantes dos clássicos. Lima sabia que os clássicos não agradvam a todo mundo.
(O nÃvel destes comentários está supimpa. O mais engraçado é a elegãncia com que fugimos e voltamos do assunto, divagando)
Ai, meu deus, o trabalho me chama hoje... E muito!
Mas peraà que eu volto, vejam bem!
Beijos!
Que crônica maravilhosa a do VerÃssimo... Do mesmo modo é a técnica do doutor Armando Borges, na qual qualquer escritor – que ainda não transgrediu as raias da salubridade, é claro - vai encontrar uma identificação!
É mesmo a absorção da realidade pelas palavras e não a absorção das palavras pela realidade. Lindo!
Eu sinto assim mesmo, um corta e recorta, estica e repuxa. Sentar todo dia e ter uma penca de coisas para escrever é uma briga de foice. E bota floreio nisso: oração invertida, perÃodo picado e, o melhor de tudo, os bons e velhos sinônimos e antônimos. Sabe o que é mais engraçado? Não sei se isso ocorre com vocês também, mas quando vou descansar acabo permanecendo na frente do computador e escrevendo uma coisinha. Chega a me dar raiva algumas vezes! rs
A coisa de operária passa por aÃ. Acho que as pessoas romanceiam muito a atividade de escrever, não concordam?
Miguens
Concordo sim. Plenamente. Eu já devo ter dito isto por aqui, mas, comigo as vezes é escritinho como espiritismo, macumba, santo incorporado, estas coisas: Não faço a menor idéia de onde as coisas que escrevo estão vindo, aos borbotões, principalmente aquelas com pinta de serem as mais refletidas. Estas é que não são. São estas as que jorram mais, facilmente, sem a menor lógica prevista. É psicografia, juro. O pÃor é que, sei lá como, elas sempre acabam se encadeando e fazendo fazendo sentido.
Dizem até que as histórias todas já foram escritas e a gente só faz recontá-las.
Claro que depois tem (ou não) este rever, reler, alinhavar aqui e ali, suprimir, inverter, dando aÃ, nesta hora, um encadeamento para parecer o mais coloquial possÃvel, tentando ser aquele que vai ler. É meio neurose mesmo, artesanto de viciado, mas, como é prazeiroso. O verÃssimo está totalmente certo, quem se preocupa, cartesianamente com a forma, a gramática, se afoga em jargões e conceitos esotéricos e produz calhamaços de nada, alfarrábios que ninguém lê, ou finge que lê para parecer inteligente e culto.
Pra mim é o mesmo que fazer música...de improviso, na beira do abismo, olhando no olho do ouvinte, domando e sendo domado. Coisa de doido, maluco beleza.
Miguens,
tb me sinto às vezes uma "operária das letrinhas", principalmente quando elas se transformam em verdadeiros capatazes. Minha válvula de escape são essas conversas boas por aqui. Se vc quiser saber um pouquinho mais do penso sobre isso, dá uma olhadinha nesse link aà do lado do seu postado "Porque escrevo no overmundo".
Bjs
É, é coisa de doido sim. Para mim uma coisa atávica... Como cozinhar também. Isso inclusive é uma relação sobre a qual eu quero escrever, mas ainda não me clarearam as idéias.
Vou ler o seu post, Ize! E aà a gente continua.
Beijos!
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