Mundo, mundo, vasto mundo
se eu me chamasse Brilhantino
não seria uma rima, talvez uma solução *
Brasileiros e gente de todo o mundo que foram ao 5º Cine Fest Petrobras Brasil, em Nova York, no inÃcio de agosto, puderam assistir, dentre curtas e longas da produção recente do cinema brasileiro, ao documentário de curta-metragem Brilhantino, um dos 40 vÃdeos produzidos pelo Projeto Revelando os Brasis ano 1. Escrito e conduzido por mim – com muito medo de fazer algo que nunca havia feito - o curta mostra o dia-a-dia de João José Brilhantino, um senhor de 71 anos que há mais de 20 vive em uma espécie de caverna, numa região montanhosa, de difÃcil acesso, a 7km da sede do municÃpio de Muqui, sul do EspÃrito Santo.
Com a notÃcia de que Brilhantino seria tema de “filmeâ€, os ânimos de todos na pequena cidade, de 15 mil habitantes, ficaram aguçados. O homem da caverna, um cidadão que sempre transitou à s margens - sentado em um bar, falando pouco, repudiando falácias a seu respeito, esbravejando com pessoas inconvenientes que o tiravam do sério e, algumas vezes, sendo gentil com os que o tratavam com o devido respeito – ganhou visibilidade.
Estive com ele várias vezes desde nosso primeiro contato. Minha aproximação não foi fácil, Brilhantino sempre se mostrava muito arredio, até que um dia aceitou fazer o vÃdeo, mas, mesmo assim, sob a desconfiança de quem, muitas vezes, só dispunha de um lugar à margem para ser. As pessoas começaram a indagar-lhe na rua sobre o tal “filme†e ele me dizia: “Olha o que você foi me arrumar...â€.
Em 2005, o vÃdeo ficou pronto e foi lançado no Rio, junto com os outros 39 produzidos pelo Projeto Revelando os Brasis. Brilhantino foi comigo. Era sua primeira viagem de avião. Enquanto eu me preocupava com o seu bem-estar, ele achava tudo muito natural, nada que o deslumbrasse. “Andar de avião é igual andar de roda gigante, só que é mais alto†e, olhando pra mim, “Você tá morreno de medo, né?â€. Eu estava.
No Rio – onde ele já havia ido outras vezes - passeou sozinho pelo Centro e por Copacabana, onde moram duas de suas filhas. E mesmo na cidade maravilhosa, não abriu mão do saco que carrega nas costas com seus pertences. Por onde passava – no aeroporto, no hotel, nas ruas – era seguido por olhares curiosos.
Depois de ter sido exibido na TV, em mostras e festivais de cinema e vÃdeo no Brasil e no exterior – como o festival Brasil Plural, em paÃses da Europa, em 2005; a mostra realizada pelo Projeto Copa da Cultura durante a Copa do Mundo na Alemanha, em 2006; e o Festival Internacional de Guadalajara, no México, em 2007 –, em maio deste ano, “Brilhantino†foi exibido em Muqui, num telão de cinco por oito metros, na praça central da cidade. Foi o vÃdeo de abertura do Circuito de exibição das cidades participantes do Projeto Revelando os Brasis.
Mais de três mil pessoas foram assistir ao documentário. Brilhantino era o centro das atenções. Seus filhos vieram de Vitória e do Rio, veÃculos da imprensa nacional também vieram – entre eles o Overmundo, com a Helena Aragão. Foi uma festa! Gente que nunca tinha ido ao cinema se sentiu em um. Ver o Brilhantino da rua no telão foi uma novidade. Perceber que aquele homem era maior que as dimensões da tela, pelo seu caráter, sua humanidade, sua postura diante da vida, foi uma surpresa para muitos.
Depois da esperada exibição em Muqui, ele me disse estar muito feliz e que queria saber quando Ãamos fazer outra festa igual à quela. Mas, segundo ele, mesmo com o sucesso do documentário, sua vida continua a mesma. “Eu fiz isso aÃ, mas eu não sou um homem de televisão, eu sou um homem da terra. Eu cuido das minhas plantas, eu vivo a minha vidaâ€. Ele continua morando em sua caverna, de onde jamais pretende sair. “Daqui não saio, daqui ninguém me tiraâ€.
Para os moradores da pequena Muqui, cujo olhar sobre o gauche homem já era gasto e quase ignorado, foi impossÃvel não reacender as opiniões sobre o conterrâneo, que saiu na TV e está (o vÃdeo apenas) rodando o mundo. “Antes eu ouvia algumas histórias, mas não sabia muita coisa do Brilhantino. Depois do documentário, eu passei a prestar mais atenção neleâ€, disse-me a funcionária pública aposentada, Angela Maria Fernandes.
“Eu ri muito vendo o filme! Eu o via na rua e sabia que ele morava numa oca. Depois do filme, eu percebi que as pessoas começaram a falar mais com ele, dar mais atençãoâ€, conta a comerciante Rosemary de Souza Gorçani Cordeiro. “Ele é meio de veneta. Tem dia que tá bem, tem dia que tá atirando fogo pelas ventas. Ia todo dia no bar. Nos dias que saÃram as matérias no jornal, ele ficou diferente. As pessoas falavam: ‘você tá famoso!’. Ele dizia: ‘eu sou o mesmo Brilhantino que eu era’â€, contou-me Seu Kito (Roque Neves Junior), antigo dono do Bar Vitória, freqüentado há décadas por Brilhantino.
Minha intenção – pobre intenção do autor – era a de que o olhar marginalizante de alguns moradores pudesse ser colocado em questão, pois muitos conheciam Brilhantino, mas poucos o conheciam como um homem alegre, que tira poesia – não poemas - das coisas; canta e parodia músicas que ouvia no radinho de pilha, ou em fitas K7, na década de 70. Poucos tinham ouvido Brilhantino interpretando Roberto Carlos e expondo tão emocionado, e às vezes irônico, suas impressões sobre si e sobre o mundo. Tudo isso porque, antes, talvez poucos tivessem parado para ouvi-lo de maneira respeitosa.
A vida e o vÃdeo
Brilhantino optou por esta peculiar moradia após evolver-se em conflitos de terra e ser expulso de sua casa. Resistindo a tudo e a todos, até mesmo ao apelo dos filhos, ele passou a viver sozinho sob uma rocha em forma de concha, no alto de um morro, nas terras que havia comprado com muito esforço. Sua vida ganhou narrativa audiovisual graças ao Projeto Revelando os Brasis, fruto de uma parceria entre o Ministério da Cultura e o Instituto Marlin Azul.
Vai, João! ser gauche na vida
O termo gauche, gentilmente “surrupiado†do poema de Drummond, vem do francês e pode significar “à esquerdaâ€, “desajustadoâ€, “tortoâ€. Ser gauche não é, necessariamente, algo pejorativo. Muito pelo contrário, ser desajustado é estar na contra-corrente da cultura repetidora de padrões sociais sob os quais vivemos, e de dentro dos quais raramente ousamos sair. Brilhantino não só tem uma estatura encurvada, como também vive à esquerda do mundo, na contra-mão do que poderÃamos chamar de estilo de vida comum. Além disso, ele é gauche no que fala, no que pensa, na forma como o faz, sempre convicto, superior.
Vem daÃ, desse desprendimento de Brilhantino diante do mundo, a minha idéia em mostrá-lo, no vÃdeo, como um ser grandioso, com sua humanidade evidenciada. A câmera baixa, num ângulo de baixo pra cima (contra-plongé) valoriza o personagem. O enquadramento, sem a preocupação de trazer Brilhantino sempre dentro da tela, é, também, uma estratégia que remete a este homem que ora transita pelo centro, ora pela margem, um homem que não se enquadra no “quadro†quadrado, talvez ultrapassado, da vida.
No inÃcio do vÃdeo, no bar, outro plano, o fechado, adentra a emoção do personagem que se revela, por um momento, saudoso com a lembrança do pai. No decorrer da narrativa visual, outros planos fechados do fotógrafo Orlando da Rosa Farya buscam o interior do personagem à medida que ele adentra o interior de sua caverna.
Apesar da curiosa moradia de Brilhantino, o que mais me chamou a atenção foi a sua humanidade fervorosa, sua vontade de viver, sua relação singular com o mundo, com a solidão, com a morte. Ele, que não gosta de se olhar no espelho – talvez, como disse Arnaldo Bloch, para se sentir sempre jovem – tem em seu cantar a tradução lÃrica para sua vida, já que, para cada situação do cotidiano, busca uma música que ritme aquele instante. Quando da gravação do vÃdeo, eu pedi que nos mostrasse fotos, das quais irÃamos pegar detalhes, e ele, prontamente, disse: “Vai pegar detalhes? Detalhes tão pequenos de nós dois são coisas muito grandes pra esquecer...â€.
Brilhantino e Noel Rosa
No 5º Cine Fest Petrobras Brasil, em Nova York, Brilhantino foi exibido antes do filme Noel - Poeta da Vila, de Ricardo Van Steen. Noel Rosa revolucionou, ou "gaucheou", a música ao unir periferia e asfalto em torno do samba. Brilhantino é o reflexo de um gauche que também transita entre o meio e a margem, a caverna e a rua, com a naturalidade de quem colhe jaca na Serra da Morubia e anda no centro do Rio, cantando a vida.
No Bar Vitória ou no Bar Ideal, em Muqui, Brilhantino também se descontrai numa Conversa de Botequim e pouco se importa com que roupa vai a este ou à quele lugar. Até porque não está preocupado com o sucesso, nem com o que falam dele. Como ele bem diz: “Eu nunca precisei disso (do vÃdeo sobre ele), eu tô fazendo isso pra te ajudar. Artista? Eu sou artista desde quando eu nasci!â€.
No Banco de Cultura
A Comunidade Overmundo poderá conferir o vÃdeo na Ãntegra aqui no Banco de Cultura. O vÃdeo tem apenas 15 min. de duração.
* A estrofe que epigrafa o texto é uma adaptação de “Poema de Sete Facesâ€, de Carlos Drummond de Andrade.
Salve! Bom encontrar Sêo Brilhantino aqui no Over. Meus parabéns, pelo filme e pelo texto, bem legal!
Volto para votar!
Abraço!
Ériton, é animador ver que dois anos após a conclusão do filme, ele ainda faça tanto sentido. Ainda não o assisti - está baixando na outra janela - mas talvez não precisasse. Teu caloroso texto sobre Brilhantino já estaria em conversas e falas calorosas.
O mais bacana é que, outro dia, alguém disse: "pois que o cinema brasileiro só fala de favela e seca". Agora fala também de caverna e de um ilustre cidadão brasileiro que somente é.
Parabéns pelo filme e por ter levado Brilhantino - o filme - ao redor do mundo. E é um prazer poder te escrever isso diretamente.
Grande abraço.
Olá CÃcero e Labes,
Brilhantino encanta sim. Quando falo do vÃdeo, sinto total liberdade para elogiá-lo, pois é do encanto desse ser tão cativante que estou falando. Diante de tamanha humanidade, foi impossÃvel que eu e a pequena equipe que me acompanhava não nos surpreendêssemos.
Meu argumento para o vÃdeo se baseava no fato de ele morar numa caverna. Mas, depois, com o contato direto com Brilhantino, vi que ele era muito maior que isso.
Labes, o prazer é todo meu!
Grande abraço
Acabei de assistir ao vÃdeo e, por enquanto, não tenho muito o que dizer a respeito. Sinto-me emocionado (e envergonhado) pelos brilhantinos que colocamos à margem de nossos dias. E sinto-me emocionado em conversar contigo a respeito; o cara que teve a sensibilidade cativante de transformar em cinema a vida do Brilhantinho.
Cara, demais!
Labes,
eu me irrito sempre quando penso que a margem é o lugar de muitos, e somos nós, muitas vezes, que deixamos à margem gente tão importante como o sr. Brilhantino. Como ele, há muitos por aÃ. E como somos pequenos diante de gente tão cheia de luz e alegria, não é? A margem é o lugar do não-ser.
Saber olhar nos olhos do outro é se permitir ir até o que o outro tem de melhor.
Às vezes me pergunto: em que margem nos colocamos, quando exluÃmos alguém do nosso meio?
Conviver com este senhor, que hoje virou meu amigo, foi e é um grande aprendizado pra mim!
Abraço!
Eu já te falei que quando crescer quero ser Brilhantino?
Parabéns pelo texto, Ériton.
rs...
que legal, Claudia, gostei da idéia: crescer e ser Brilhantino.
Bjos
Perfeito, Ériton! Concordo com você, quando refelete sobre a exclusão. Costumo dizer que não existe o marginal, e sim marginalizado. Ninguem vive a margem por própria vontade. O fato dele ser diferente não o torna necessariamente marginal. É preciso respeitar as diferenças, sempre... É preciso olhar o mundo com compaixão, que não é pena, mas amor e respeito em alto grau! Seu Brilhantino me fez lembrar meu pai... careca, magrinho... olhar sereno... quando já se despedia da vida! Abçs. emocionados...
Nydia Bonetti · Piracaia, SP 20/9/2007 23:11
Beleza de trabalho Ériton!!! Que gostinho que dá de conhecer o Sr. Brilhantino, de pedir a benção a ele. E que bonito vc incluÃ-lo, tirando-o da margem. Mas engraçado, no caso dele, cuja história não conheço bem (só vou ver o vÃdeo amanhã), me ocorre outra margem. A do rio, que deixa entrever cheirinho de terra, gosto de fruta, barulho de passarinho.
Muito lindo
Amanhã volto pra falar do video.
Abrç grande
Ériton,
Baixei, assisti e adorei conhecer o Brilhantino, ser humano
especial que brilha como tantos outros, perdidos e excluÃdos do
"mundo civilizado", por este Brasil a fora. OuvÃ-lo cantando Roberto Carlos, e sobrevivendo com uma auto estima incomum
me dá esperança de que tudo é possÃvel superar, com uma alma como a dele: rica demais.
Abraços!
Ériton,
Belo o teu trabalho. Bonito texto que nos informa e revela. Tema apaixonante do postado e do filme.
Penso que Brilhantino vive muito bem com ele mesmo, a partir dele, e dentro dele, mais que na caverna em um canto do mundo.
Penso que Brilhantino optou pelo lugar certo para ele, embora não seja um lugar para todos ainda: Brilhantino optou por viver no Planeta Terra, em harmonia e intensa subjetividade.
Parabéns!
votadÃssimo - demora a baixar ms a narrativa tao boa leva já ao videoo.
Belo trabalho, alias, 'brilhant'ino e mais ainda por presentear conhece-lo
Nydia,
se pensarmos bem, todos vivemos em alguma margem. A margem nesse sentido forma o que denominamos "meio". Mas, acredito, que há margens mais marginalizadas q outras. Depende de como nos sentimos nela e de como olhamos pra ela. O olhar sereno dele, também me lembra o olhar do meu pai.
Ize,
eu sempre penso que, assim como o personagem de "A terceira margem do rio, do Guimarães Rosa, Brilhantino ocupa uma margem semelhante. A pedra, neste caso, equivaleria à canoa do conto do Rosa.
Roberta Tum,
Acho q foi essa alma rica do Brilhantino q mais me encantou para fazer o vÃdeo.
Adroaldo,
falando em harmonia com a natureza, perguntei o que ele faz quando aparece algum animal, tipo cobra, morcego, na caverna. Ele disse q esses animais vêm, sentem o cheiro dele, e seguem seu caminho sem incomodá-lo. Interessante né?
CecÃlia,
Fico muito feliz do vÃdeo estar aqui no Overmundo. O site é maravilhoso e visitado por gente de todo o lugar. Isso é mágico.
ha.. e quanto as imagens, muito bem editadas ao texto.. com certeza vou assistir outras vezes e apresentar para alguns olhos e ouvidos que precisam de J J B..
Cecilia de Paiva · Campo Grande, MS 21/9/2007 13:39
Por favor, faça isso CecÃlia. Apresente pra outras pessoas.
Bjs!
Parabéns meu Querido Amigo !
Você não só conseguiu contornar as acentuadas curvas do "de veneta" do tal do Seu Brilhantino, como também superou as expectativas da nossa pequenina cidade da roça como as Capitais desses Brasis,não foi ? Sou testemunha !
Agora o curta taÃ, agora pra OverMundo ver, e isso é lindo !
Um Mega sucesso! vc. merece.
um super beijo
com carinho
puget
PS. PROFETIZANDO : Sei que esse não será o unico!
Claudia,
devo MUITÃSSIMO a vc, por te sido ASSITENTE DE DIREÇÃO do Brilhantino e, mais q isso, foi pareceirona. Te adoro. E saiba q o sucesso é de todos nós, da equipe toda.
E vc é sempre uma base de inspiração. Uma base de amizade, enfim: uma grande companheira!!!
Beijo
Ériton
Perfeito..tão quanto Brilhantino
Votei, abçs.
Quando eu crescer, juro que vou querer ser um Brilhantino.
SpÃrito Santo · Rio de Janeiro, RJ 23/9/2007 19:41Pegando carona na profecia da Cláudia... se Brilhantino brilhou tanto que acordou Muqui... por que parar por aÃ? Lindo!
Ana Luiza Moraes · Petrópolis, RJ 25/9/2007 14:25Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Você conhece a Revista Overmundo? Baixe já no seu iPad ou em formato PDF -- é grátis!
+conheça agora
No Overmixter você encontra samples, vocais e remixes em licenças livres. Confira os mais votados, ou envie seu próprio remix!