“Se o sertão está dentro da gente,
não estranha que o sertão esteja
em toda parte, que o sertão seja o mundoâ€.
Guimarães Rosa
Dia 13 de outubro. Durante três horas, das duas à s cinco horas da tarde, eu, meu primo Jonathas Mamede, o biólogo Gustavo Soares (cunhado de Jonathas) e o argentino, também biólogo, Juan Pablo Aldatz tentamos subir a Serra do Pai Pedro, no municÃpio de Acari, região do Seridó norteriograndense. Naquela ocasião apenas tentamos. No último dia 24 de dezembro conseguimos...
De volta à Serra do Pai Pedro
Dessa vez, a volta à Serra do Pai do Pedro foi diferente. A começar pelo guia que nos acompanhou até um certo ponto da subida. Infelizmente não pudemos contar com a sapiência de seu Zé de Lino. O pobre se encontrava amargando 14 pontos no pé, em decorrência de uma machadada desferida em si mesmo por acidente. Não podendo nos acompanhar, ele logo indicou outro nome: “Júnior, filho de Netoâ€. De cara ficamos nos perguntando: “Como alguém se chama Júnior tendo como pai alguém chamado Neto?†– Isso nos deu um verdadeiro nó nas têmporas. Coisas dos homens do sertão...
“A casa de Neto fica lá no assentamento. Chame Júnior que ele vai com vocês!â€, disse Zé de Lino muito solÃcito. Sobre o nome ‘Júnior’, cabe uma ressalva. A simplicidade do fala do sertanejo transforma nomes como Júnior automaticamente em “Júinoâ€. Mas não convém explicar essa derivação sociolinguÃsticamente. Mais uma vez, coisas dos homens do sertão...
Chegando à casa de Neto, uma morada simples com uma cisterna, fruteiras e plantas ao redor, batemos palmas e apareceu uma senhora que se mostrou muito atrapalhada. Meu primo Jonathas, que esteve no primeiro ataque ao Pai Pedro, perguntou: “A senhora sabe onde fica a casa de Neto?â€. E a dona respondeu: “Sei não. Acho que é pra banda dacoláâ€, disse ela, apontando pra esquerda. Meu primo ainda foi mais insistente: “Aqui não é mesmo a casa de Neto, pai de Júnior não?â€. - “É não". Respondeu ela monossÃlabicamente.
Contrariado, Jonathas se lembrou que na Semana Santa tinha vindo com meu pai até a casa de Neto buscar peixe. Resolveu então ligar pra ele e tirar a prova real. “Tio, tô aqui naquela casa que a gente veio buscar peixe (...), mas a mulher disse que não é aquiâ€. Meu pai deve ter respondido de maneira meio rústica, pois ele desligou o telefone com um ar de riso e muito convicto foi logo dizendo: “Homi, é aqui mesmo!â€. Chamamos pela dona de novo e ele disparou: “A senhora conhece Jácio?â€â€“ “Conheço.â€â€“ “Pois é. No começo do ano a gente veio aqui buscar peixe. A senhora se lembra?â€â€“ “Me lembroâ€. – Pois ele falou que aqui é a casa de Neto, pai de Júniorâ€. E ela articulou com toda a displicência do mundo: “É sim!â€. Meio zangado, meu primo soltou um sonoro “oxente†e debulhou o resto: “Rapaz, eu não perguntei se aqui não era a casa de Neto?†– “Perguntou.†– “Pai de Júnior?â€. – “Perguntouâ€. – “Então porque diabo a senhora disse que não era aqui?â€. – “Viche, é mermo né?†– Rebateu a senhora coçando a cabeça meio confusa. Não verbalizei, mas o meu pensamento exclamava um sonoro “Puta que pariu!â€.
Minutos depois, lá vinha Júnior recém saÃdo do banho. Um tanto mirrado, o rapaz, que aparentava uns vinte e poucos anos, mesmo um pouco cansado, já que tinha subido a serra na noite anterior pra caçar, se prontificou em nos colocar na trilha certa para o pico da Serra do Pai Pedro. “Xô pegá minha alpercata e uma camisa que a gente sobeâ€. Depois disso, Júnior só abriu a boca quando chegamos num certo ponto da serra e ele deu as suas últimas coordenadas. Me lembrei de Graciliano Ramos e de Vidas Secas: “Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar falando altoâ€. Júnior era assim. Falava pouco, mas quando falava, falava alto.
Antes que ele fosse embora e nos deixasse ali na solidão do pÃncaro, pedimos que ele tirasse uma fotografia com a gente. Mas o lacônico cicerone sertanejo se negou dizendo: “Deixe pra lá, deixe pra láâ€. Esse fato nos descontraiu nos primeiros minutos sem o nosso guia. Confesso que fui o primeiro a soltar um comentário satÃrico: “Ele deve achar que a alma dele vai ficar presa na máquina...â€.
A subida
Durante as cinco horas da subida, o sol quente foi o principal inimigo. Não tÃnhamos nenhum termômetro, mas a julgar pelo suor em nossas testas e pela sede constante, posso garantir que a temperatura naquela geografia serrana ultrapassava os quarenta graus fácil fácil... Diferente da primeira tentativa, a nossa peregrinação pela trilhas da Serra do Pai Pedra foi, de certo modo, mais tranqüila. Pelo menos em relação à subida. Pegamos uma vereda aberta do pé até o pico da serra e depois de uma hora de caminhada chegamos a uma casa abandonada*, que em outras épocas serviu de base ou moradia para alguém da região.
Atapetado ora por pedras soltas, ora por areia quente, o caminho era um misto de cactos, xiquexiques, catingueiros, pereiros e pés de mofumbo. Além da flora agressiva e bucólica, era comum a presença de calangos nos espreitando por entre os pedregulhos, lagartixas se esgueirando pelas árvores, preás sorrateiros e animais peçonhentos como a Jararaca que avistamos. Eu e o argentino Juan tentamos fotografar a cobra, mas a serpente se perdeu rapidamente pelas gretas do Pai Pedro.
Com a fotografia frustrada pela agilidade do animal, o jeito foi seguir o rumo até o bendito topo da serra. Com mais algumas passadas, goles d´água e pequenas pausas para o consumo de barras de cereais ou bananinhas desidratadas, como era o caso de nosso amigo Gustavo, demos de encontro com mais uma casinha perdida na imensidão da cordilheira. O pauperismo da construção se traduzia em paredes de tijolos aparentes e telhas feitas nas coxas, já que olhando para o teto, ficava patente a tamanha diferença entre uma e outra.
Mesmo com a possibilidade de aquilo tudo vir abaixo a qualquer momento, a casa que, atualmente era sustentada por algumas vigas de madeira nos serviu muito bem. Ali pudemos comer, dormir um pouco e produzir alguns contrastes. Sacamos das mochilas multifuncionais e repletas de compartimentos, nossas comidas industrializadas como pão integral, salame, barras de cereais, isotônicos e outras maravilhas da engenharia alimentÃcia e nos fartamos. Muito diferente de um outro grupo que também utiliza aquela casa como ponto de apoio: os caçadores e seus bizacos artesanais.
Dicotomias à parte, depois de forrada a pança e terminada a siesta, seguimos de uma vez por todas até o final da nossa expedição. TÃnhamos um sentimento em comum; acontecesse o que acontecesse, dessa vez só sairÃamos dali depois de conseguirmos domar o velho Pai Pedro. E assim o fizemos. Com pouco mais de cinco horas de caminhada entre pedras, areia, mato seco, goles d’água, conversas mirabolantes, alguns arranhões, aulas de obscenidades ditas em castelhano pelo argentino Juan, pausas para fotografias, “idas ao banheiroâ€, mais goles d’água, aforismos e falação da vida alheia, alcançamos finalmente o topo da Serra do Pai Pedro. Aleluia!
Entrelinhas
Até lá no topo do Pai Pedro a figura já mitológica do Capitão Nascimento se fez presente. Meu primo Jonathas, que deve ter visto o filme Tropa de Elite pelo menos umas sete vezes resumiu, de certo modo, o sentimento do grupo verbalizando mais um famoso bordão do cinematográfico Capitão: “Missão dada, é missão cumpridaâ€. Chegando em cima da Serra do Pai Pedro, a primeira sensação que tive foi de contemplação. Lembrei dessa vez de Jack Kerouac e dos seus “Vagabundos Iluminadosâ€. Um clássico da literatura beatnik, o livro narra as aventuras de jovens adeptos do montanhismo que vivem com o mÃnimo de dinheiro e são alheios à sociedade de consumo norte-americana. Lá para as tantas uma das personagens solta o seguinte aforismo: “É, cara, sabe que para mim uma montanha é um Buda. Pense na paciência, centenas de milhares de anos só paradas ali perfeitamente silenciosas...â€
O silêncio da cordilheira foi quebrado quando chegamos numa das escarpas do Pai Pedro e Jonathas começou a gritar na tentativa de produzir ecos. Não preciso dizer que o resto da equipe entrou na brincadeira e que ficamos por uns cinco minutos gritando feitos uns doidos naquela imensidão de pedra, não é mesmo?
Sobre as casinhas abandonadas...
Nas serras do Seridó, é muito comum encontrarmos casebres que,
à primeira vista, parecem não ter um propósito bem definido. O incauto deve pensar: “Como alguém pode viver aqui em cima, sem água e sem ninguém por perto?â€. Existem pelo menos dois motivos consideráveis sobre essas casas aparentemente despropositadas. O primeiro deles se deve ao fato de que na envernada, os fazendeiros mandavam suas boiadas para passar uma temporada na serra engordando. O segundo fica por conta do plantio do algodão mocó, comum na região. Por isso, a construção dessas casas.
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FILIPE MAMEDE · Natal (RN)
Um Trabalho Admirável.
Uma Viagem gratificante pela nossa terra Brasileira.
Um Trabalho que fazdespertar orgulho pela Nacionalidade e até pela Latinidade.
Um Orgulho Fraterno como que ter a felicidade de pertencer a uma irmandade de uma Geografia útil e Libertadora.
Um Bom Trabalho que esta em bom Lugar.
Parabéns pela grande |Contribuição ao nosso Overmundo e a Cultura do Brasil.
com todo Orgulho voltarei para participarda Votação.
Gostei Muito.
Felipe, meu reporter.
Não poderia ter me dado uma ante-sala melhor para o sono . A Luiza e eu primeiro nos embasbacamos com os retratos, a que ela me corrige - "pai foto, e não retrato".
Felizmente está no inicio da edição. Amanhã à noite vou ler mais atentatamente.
E, um abraço, andre.
Filipe,
Na acepção da palavra: Que viagem!
Abs
Azuir, André e SpÃrito, obrigado pela visita antecipada. Fico feliz que tenham gostado dessa "viagem" como disse o amigo SpÃrito. Desde criança eu tinha curiosidade de saber como era lá em cima da serra. E é do jeito que eu imaginava; é fantástico.
Um abraço.
Filipe, Bom trabalho Jornalista!
Que "desbravar", rs!
O sertão é o mundo...que perfeita o teu descorrer destes lugares...Imagens belÃssimas ...
Um presente mesmo. Vou até copiar e ver os outros anteriores...abçs.
Olá meu amigo.
Obrigado pelo convite! Estou em Recife conforme lhe comentei e procurei esquecer um pouco o computador, essas coisas de internet você sabe.
Adorei seu texto e sua viagem. Sempre bem feita toda narração e melhor ainda são suas fotografias e pelo visto é onde você procura se aventurar mais e mais.
Obrigado por tão ela colaboração.
Volto para votar, apreciar mais teu trabalho, tua "viagem", realização de teu sonho...acompanharei os próximos comentários.
Tudo bem feito, impecável Filipe
abçs.
Felipe, estou mesmo é com muita vontade de refazer esse caminho, em pensamento é claro. Rsrsrs!!
Muitas vezes na vida aventurei-me como vc e seu magnifico texto lembrou-me algumas passagens nos detalhes.
Vc escreve muito bem e sua aventura foi maravilhosa, sem contar as fotos extasiantes.
Parabens!
Um bj
Obrigado pela visita LÃgia. Quanto à s fotografias, no final do texto existe um link que te levará para o restante das fotografias. Se tiver curiosidade, basta clicar. Um abraço.
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 17/1/2008 09:34Rapaz, que fôlego!
crispinga · Nova Friburgo, RJ 17/1/2008 12:05
Pra tú... bandeirante a descrever esse sertão de céu azul, sol escaldante, curvas sinuosas, mas tremendamente belo na sua formação, na relação do mundo com outros mundo (pessoais). Obrigado por trazer este pedaço... Abraço.
Caicó (Cantiga)Milton Nascimento
Composição: Villa Lobos e Teca Calazans
Ó, mana, deixa eu ir
ó, mana, eu vou só
ó, mana, deixa eu ir
para o sertão do Caicó
Eu vou cantando
com uma aliança no dedo
eu aqui só tenho medo
do mestre Zé Mariano
Mariazinha botou flores na janela
pensando em vestido branco
véu e flores na capela
Valeu pela visita e pela cantiga Ana Luiza. Como diz o amigo Joca lá de Oeiras no PiauÃ, "O sertão é a nossa cara".
Um abraço.
Olá Filipe, já havia lido ontem.
Fiquei encantada com a singeleza dessa pequena casa da foto, no meio da brancura do sertão.
Imaginei, na minha urbanidade preguiçosa, as sensações e as emoções que sentiram nesta volta ao mato (se mato houvesse).
Obrigada por dividir conosco.
beijos
Trabalho muito bem elaborado , parabens!
victorvapf · Belo Horizonte, MG 17/1/2008 18:54como sempre, muito bom, Filipe! adorei a conversa com a 'cumade' lá no começo..."viche, é mermo". Adorei!!
Natacha Maranhão · Teresina, PI 17/1/2008 23:40
Obrigado pela visita, Saramar, Victor e Natacha. Essa casinha aà Saramar, fiquei sabendo à pouco que, na década de oitenta ela serviu de abrigo pra um pistoleiro procurado pela polÃcia. Que coisa né?
Pois é Natacha, sempre me admiro com a inteligência do homem do sertão, mas essa daÃ, meu Deus, era uma verdadeira 'fanfarrona'...
Um abraço.
Voltando com todo carinho paraparticipar da consagração
deste Trabalho tão esoecial do nosso Poeta Felipe Mamede.
Muita Sensibilidade e Criação
Parabéns e abração fraterno
Abração de quem junto aspira e luta por um mundo mais fraterno para todos sem exploração e exclusão.
Felipe, o sertão não é só seca e esquecimento. Muito massa tudo o que li de você.
abço.
Filipe, amigo e parceiro.
Faltava o comentário. O tempo anda curto, por conta de muitas viagens. Leio e novamente e me encanto com teu texto excelente. Para quem leu o primeiro fica,ainda, mais interessante. Teu trabalho jornalistico é fantástico. Tuas aventuras são para ser contadas num livro.
Parabéns, amigo.
Abraços
Noélio
Filipe,
As fotografias parecem locação para uma filme, o lugar é fantástico!!!
Obrigado pela leitura, Sérgio, Noelio e Marcos. A presença de vocês aqui é imprescindÃve. O lugar realmente é fantástico Marcos, a região do seridó potiguar é repleto de serras como essa. Pretendo de tempos em tempos visitá-las uma a uma...Um agrande abraço
FILIPE MAMEDE · Natal, RN 21/1/2008 10:57
RAPAZ, estava com "preguiça" de subir a Serra contigo, esse negócio de exercÃcios não é bem a minha "praia".
Mas, vendo as fotos, vejo que valeu a pena me embrenhar nesse "deserto" catingueiro... linda paisagem, belamente registrada por ti, em ângulo & iluminação impecáveis.
Sò espero que estes megasites da Internet inventem uma maneira de IDENTIFICAR o Autor das obras que utilizam, sob a ótica de promoção (?!) do Artista. E os Direitos Autorais, onde ficam?
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