Dentro do ônibus: é tudo música

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Luiz Carlos Garrocho · Belo Horizonte, MG
5/2/2007 · 107 · 18
 

Entrei num ônibus diametral, desses que atravessam Belo Horizonte de ponto a ponto. Era cedinho e me deparei com um homem e sua viola num dos primeiros bancos. Do outro lado do corredor, um homem mais gordo, com um vozeirão impressionantemente alto, porém muito musical, falava com o motorista.

Antes que eu passasse na roleta, o ônibus pára no sinal vermelho. E o que acontece? O violeiro, uma pessoa indescritível, começa a tocar alguma coisa. Ao mesmo tempo, o homem gordo sinaliza ao motorista, com malícia, sobre o outro motorista de um ônibus que também pára ao lado. Eles começam a rir do colega e o homem gordo grita pela janela, numa musicalidade impressionante:

- Ele tá perguntando cadê a camisola que você rasgou!

O motorista do ônibus ao lado, abrindo um canivete, responde:

- Vem aqui palhaço, que eu lhe mostro!

Dito assim, parece briga. Mas não é. A coisa é tão genial que a resposta mostra-se ameaçadora (“vem aqui palhaço...), mas com um tom ao mesmo tempo distanciado – caracterizando afinal uma grande brincadeira. É tudo de uma sonoridade musical e de uma cultura de bom humor. No entanto, não deixa de ter uma ponta de perigo – num átimo, sabem todos, tudo pode virar muito sério. Mas prevalece um concerto de rudes delicadezas. As vozes, quase aos gritos, vão se misturando ao som da viola.

O dois ônibus arrancam. Já são, agora, pouco mais de oito horas da manhã e o violeiro começa a cantar também. Tudo isso se mistura ao barulho dos motores, na sua voragem matinal.

O violeiro cantava música sertaneja. E de um modo que não se ouve por aí. Aquilo vinha de outro lugar. E eu fiquei suspenso, entre sons de motores, a conversa aos gritos do motorista com o passageiro, além daquele violeiro cantador e deslocado de tudo.

Uma festa para os sentidos.

E o violeiro, de onde vinha? Para onde ia? E ele, parando de tocar e cantar, olha para o lado e suspira:

- Que saudade de minha terra!

Queria saber mais sobre ele, mas percebi que o ônibus entrara numa pista onde seria impossível descer. O próximo ponto ficava muito longe dali. Pergunto ao trocador se poderia parar e ele me diz que era tarde, mas falaria com o motorista. Este grita lá da frente:

- Vai lá e prepara para descer, que os carros vão buzinar atrás de mim!

E parou, subitamente. Agradeci, surpreendido pela sua generosidade e flexibilidade em meio a um mundo com tanta pressa e tantas normas. Coisa de segundos, mas os carros já buzinavam atrás, com pressa de chegar a algum lugar.

O ônibus foi embora. E levou junto seus sons e suas histórias.

Pensei no Brasil, na nossa cultura, em nosso povo e na ignorância de nossas elites.

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Felipe Obrer
 

Cara, adorei! Muito bom de se ler!
É o que se pode chamar de uma crônica com cê de crível.

Abraço.

Felipe Obrer · Florianópolis, SC 4/2/2007 12:42
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Luiz Carlos Garrocho
 

Obrigado, Felipe

São apenas observações do cotidiano. Nunca pensei em fazer crônica.

Gosto disso: registrar aquilo que emerge no campo de percepção a partir de onde se está.

Entendo que o cotidiano contém as mais finas sensações e que podemos vivencia-las esteticamente. Uma rebelião silenciosa diante da obrigação de somente dar sentido à vida a partir do consumo de espetáculos. Nada contra, afinal, sou parte disso. Mas a sociedade do espetáculo não é tudo, não é o único modo de viver esteticamente.

Além disso, são nas pessoas que não se enquadram no modo de vida vencedor que mais nos oferecem isso que ando chamando de iluminações avulsas.

Outro abraço

Luiz Carlos Garrocho · Belo Horizonte, MG 4/2/2007 14:21
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Felipe Obrer
 

Luiz Carlos,

Sempre fui favorável às chamadas "iluminações profanas". Pode ser nesses detalhes que as cores mais intensas se mostram.
Aliás, essa expressão "iluminações profanas" vem do José Miguel Wisnik, num texto dele que figura na coletânea O Olhar. Não lembro da ficha toda, mas o curioso pesquisa.

Abraço e parabéns mais uma vez pelo texto e pela sensibilidade.

Felipe Obrer · Florianópolis, SC 4/2/2007 15:18
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Luiz Carlos Garrocho
 

Felipe,

Valeu a dica. Vou procurar o texto do Wisnik. Penso que é por aí.

Luiz Carlos Garrocho · Belo Horizonte, MG 4/2/2007 18:38
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Felipe Obrer
 

Luiz, fico contente com a tua receptividade. Acho que é por aí também. Na verdade já descobri/lembrei o título do texto do Wisnik, mas acho meio impublicável (haha).

Abraço.

Felipe Obrer · Florianópolis, SC 5/2/2007 00:09
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Camafunga
 

Muito bom o texto.

Camafunga · Pelotas, RS 5/2/2007 19:21
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Jan Moura
 

Simples... e delicadamente doce. Uma telenovela em letras. Devia mesmo escrever crônicas. Abraços.

Jan Moura · Cuiabá, MT 6/2/2007 09:44
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Egeu Laus
 

Luiz Carlos,m
Pode ter certeza de que o seu texto É uma crônica. E das boas!
Abraço!

Egeu Laus · Rio de Janeiro, RJ 6/2/2007 10:58
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Ernesto Valença
 

Luis,

Conheço pouco Belo Horizonte, mas pude perceber que é um lugar onde o povo impressiona bastante, mais do que a cidade construída. Muito bom perceber essa vitalidade através do seu texto...

Ernesto Valença · Salvador, BA 6/2/2007 11:41
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Rodolfo Noronha
 

Cara, muito bacana. Tanto a história real quanto a narrativa.
Aqui no RJ tem um cara que, há anos, circula na linha 571 pela cidade. Da Glória ao Leblon, vai tocando sanfona e alegrando a viagem. Não tem como continuar estressado depois de encontrá-lo.
Parabéns pela crônica do real.

Rodolfo Noronha · Rio de Janeiro, RJ 6/2/2007 11:50
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Bernardo Biagioni
 

sensacional.
é exatamente essa musicalidade que eu vejo nos onibus aqui em bh.
muito bom mesmo!

Bernardo Biagioni · Belo Horizonte, MG 6/2/2007 12:06
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Luiz Carlos Garrocho
 

Estou até gostando dessa idéia de crônicas. Como disse antes, vivo de observar - e anotar. Isso faz parte do meu trabalho, desde a observação do brincar, coisa que venho fazendo há pelos menos 30 anos. E de observação de pessoas. Como diretor e pesquisador teatral, a observação é uma ferramenta preciosa.

Mas, aqui, trata-se também de outro plano que emerge. Que tenho chamado de iluminações avulsas. Felipe Obrer (ver comentário) lembrou das iluminações profanas de que fala Wisnik.

Observar os seres humanos, as coisas, os animais, é o que há. Não para cravar o olho no outro e sugar o que ele tem, mas para deixar ser, captar o instante que se oferece aos sentidos.

Isso é um programa, podem crer. E funciona.

Ando muito. E vejo que as coisas mais fecundas ocorrem nas misturas mais impuras. Infelizmente, nesse país vive-se em shoppings e obliterando-se os sentidos com todo o tipo de consumo.

Um modo de pensar arte como atitude e não somente como obra (mas sem excluir as obras). Experiências estéticas que não precisam esperar o consumo artístico. Talvez, esteja podendo fruir de um instante na crosta de um planeta girando no cosmos.

Duchamp propunha o seguinte exercicio: sair às ruas e deixar o olhar flutuar, pousando naquilo que você jamais procuraria por hábito. John Cage diria que se trata de abrir-se para tudo o que emerge no campo de visão e audição.

Um grande mestre Zen, que viveu no século XIII no Japão, Dogen, disse: - É ser iluminado por tudo o que existe!


Luiz Carlos Garrocho · Belo Horizonte, MG 6/2/2007 12:12
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Luiz Carlos Garrocho
 

Ernesto,

Belo Horizonte é uma cidade estranha. Ela foi concebida dentro do espírito positivista burguês e com um toque de classicismo, lógico, para ressaltar o bom gosto dessa classe.

Queriam afastar-se do barroco de Ouro Preto, antiga Capital do Estado de Minas Gerais. E com isso, do contato com a arte popular, do contato com os negros. Estes, na antiga Capital, faziam parte de sociedades musicais. Com a mudança, afastaram os negros para uma região menos nobre (a Lagoinha), que mais tarde também foi o lugar da zona de prostituição e boemia da cidade.

Fiz um espetáculo em homenagem a esse povo que vivia nas ruas nas décadas de 40 e 50, em meio a boemia, mas trazendo o impacato da prostituição pobre. Chamou-se Fudidos.
E foi feito na própria rua Guaicurus, numa interveção cênica urbana, que teve a presença de prostitutas, inclusive.

Assim, é uma cidade pensada, pela elite construtora, para ser limpa de cultura popular. Mas não deu certo o plano. E pior, muitas outras coisas viriam...

Um abraço

Luiz Carlos Garrocho · Belo Horizonte, MG 6/2/2007 12:21
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zengzung
 

belíssima crônica.
Conheci BH no último mês...andei muito pela cidade, pelas veias entupidas de gente, comi no mercado central o fígado com jiló e visitei as praças.Vivenciar esteticamente as pessoas, as ladeiras, detalhes...isso o que você disse realmente faz muito sentido pra mim.


zengzung · Brasília, DF 6/2/2007 15:57
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Felipe Obrer
 

Luiz Carlos, acho que vais ter que te assumir cronista. Todos te declaram cronista em uníssono!
Abraço,
Felipe

Felipe Obrer · Florianópolis, SC 6/2/2007 16:48
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Pedro Vianna
 

Ser crônista é uma patologia crônica.

Pedro Vianna · Belém, PA 13/2/2007 18:54
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Luiz Carlos Garrocho
 

Pedro,

Como disse antes, fiquei surpreso. O Felipe disse que vou ter que assumir. Agora você me diz que isso é uma patologia. Bom, deixemos que essa coisa tome o caminho que quiser. Pensei que estava falando sobre estética!

Vamos lá. Quando a torcida é demais o goleiro treme nas bases.

Luiz Carlos Garrocho · Belo Horizonte, MG 14/2/2007 11:56
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Felipe Obrer
 

Luiz Carlos, acho que o Pedro ali em cima só brincou com a rima. Crônica não tem nada de patologia. Patológico é passar por situações "mágicas" na vida e não se encantar com elas. Gostei muito do teu texto (que na minha opinião é uma crônica) e reitero o elogio.

Abraço grande.

Felipe Obrer · Florianópolis, SC 14/2/2007 12:36
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