Riscos, resÃduos, resquÃcios
“Viver é muito perigoso†(1) dizia o Rosa pela boca de Riobaldo, o Tatarana, rápido no gatilho como seu criador o era na invenção verbal. Fazer arte também. E muito arriscado. Porque se não for arte, não é nada: fumaça que se dissipa no vento, salto no vazio, que, às vertigens abismais iniciais, sucederá o encontro frustrado com o chão duro da previsibilidade. Como descobrir a pólvora: realizar o óbvio, aquele sentido que segundo Barthes, “vem à frente†(2) e, terra descoberta, já está lá à nossa espera.
Marcus Vinicius, como Marco Pólo, aceita o desafio desta aventura perigosa. Entre o transe e o jogo, o risco e a queda, convida o acaso para dançar, brincar com fogo e fazer artes com ele.
Na série de desenhos, a pólvora incandescente, co-autoral, incontrolável e imprevisÃvel, desvela, descobre as cartografias de novos mundos: ilhas, penÃnsulas, golfos, enseadas e baÃas, acidentes geo-gráficos que devoram o papel, lambendo sua pele com lÃngua de fogo e fazendo surgir reentrâncias e saliências, resÃduos e resquÃcios da terra virgem originária – a folha em branco -, para fascÃnio e deleite, penso, do próprio descobridor, MV, nesse momento único, de revelação, do processo de criação.
Dos mapas à Ilha
São primeiros ensaios, no entanto, estes mapas, que preparam a grande aventura de descobrimento que se seguirá. Arriscada aventura: a conquista da Ilha da Pólvora.
Isola. Isla. Ilha. Na esperança de uma cura incerta, se não, na maioria dos casos, impossÃvel, era isso que hansenianos e tÃsicos – ou mais cruamente: leprosos e tuberculosos encontravam na ilha, desde que fora destinada a recebê-los: isolamento.
A bordo de um pequeno barco e munido apenas de uma pequena caixa que aos poucos revelar-lhe-á seus verdadeiros poderes, Marcus Vinicius chega à ilha. Não sabe ainda, mas lá irá enfrentar os voláteis mas perigosos calibãs espirituais, os gênios residentes (“as pessoas não morrem. Ficam encantadasâ€) (3), contando unicamente com o apoio de sua pequena equipe de trabalho.
Lá, joão e maria, guiado exclusivamente por intuição e sensibilidade, delineará um trajeto que irá se definindo ponto a ponto por pequenos cÃrculos desenhados com pólvora em lugares especÃficos.
Se nos desenhos, figuradamente, antecipava protegido as surpresas da descoberta e da invenção, aqui, na ilha, MV se expõe às vicissitudes e acidentes do destino que se propôs enfrentar.
Agora, nu de corpo e alma, vulnerável como um diadorim sem disfarces, vivenciará a experiência explosiva da criação: como atóis de coral incandescentes, estes, de pólvora, anéis à espera de saturnos devoradores, invocarão as chagas e sufocamentos dos antigos habitantes da ilha, incendiando-se para libertá-los talvez – o que sabemos? – de suas cadeias de perene sofrimento.
À beira do transe MV cai: uma explosão especialmente forte e imprevista o derruba ao chão, deixando marcadas em sua pele, resÃduos do risco vivido. Dirige-se então ao cais em ruÃnas, resquÃcio do antigo portal de desembarque, para realizar uma última combustão. Lá, me diria depois, mostrando-me as fotos, viu a fumaça resultante retornar à ilha: “nada do que não pertencesse à ilha sairia de láâ€, me diria, querendo, no entanto, dizer o contrário: “nada do que pertencesse à ilha sairia de láâ€. Ato falho a meu ver significativo. Mais até, revelador: parece apontar para a difÃcil posição da arte e do artista em relação a estas outras “ilhasâ€: até que ponto o Einfühlung que nos projeta sobre elas, pode nos confundir com e até nos levar a nos perder e aprisionar nelas?
Do transe ao jogo, será preciso sair de si para receber o Outro?
Não: às ilhas o que são das ilhas. É preciso levantar e estar em si para aceitar o Outro sem se perder nele. Prósperos, libertar Ariel, e compreender as tempestades.
Que se dissipem as fumaças dos isolamentos passados, presentes e futuros. Que lancemos pontes, aproximemos ilhas e arquipélagos, mas que possamos sempre retornar, são e salvos ao nosso continente: o da arte.
Planejando sempre novas descobertas e descobrimentos.
Mesmo que seja muito perigoso. Como a vida.
E arriscado. Como a arte.
Ricardo MaurÃcio Gonzaga
19 de Novembro de 2007 (4)
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(1) Rosa, Guimarães, “Grande sertão: veredasâ€, Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.
(2) Barthes, Roland, “O terceiro sentido†in “O óbvio e o obtusoâ€, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
(3) Rosa, Guimarâes, discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, 16 de novembro de 1967.
(4) Por coincidência – acreditem-me – ou sincronicidade, a quarenta anos do nascimento (perdão, ato falho: falecimento) de Guimarães Rosa.
Isso foi uma performance na Ilha da Pólvora? Adoraria ter ido lá ver de perto. Tem algum site com toda a série?
O texto está muito legal. Não sei se teria a ver explicar aqui o que é a ilha da Pólvora, mas mesmo assim vou deixar nesse comentário um pouco do que sei sobre ela: a ilha fica localizada na baia interior de Vitória. Durante muitos anos funcionou ali um hospital para tuberculosos. São as ruÃnas que aparecem nas fotos. Os doentes eram isolados lá, afastados de suas famÃlias e amigos, esperando a morte, já que na época a doença não tinha cura. Sempre que olho para a ilha, de longe, imagino o sofrimento dessa gente.
Essa performance com fogo tem tudo a ver com a carga emocional que a ilha desabitada e em ruÃnas deve guardar em si.
Realizei uma série de performances na Ilha da Pólvora e os registros destas ações foram apresentados na minha exposição individual intitulada "Ilha da Pólvora", na Galeria Virginia Tamanini, em novembro de 2007.
Este texto é do curador da exposição, que conseguiu respirar todo o trabalho e expor em palavras toda a emoção por mim sentida ao adentrar nas ruÃnas do Hospital do Isolamento.
Outras imagens desta série, e também de outros trabalhos, podem ser vistos no meu site: www.marcusvinicius.tk
Abraços,
Marcus VinÃcius.
É, a morte não é morte é um encantamento. O morto está lá vivinho. Só não liga mais pra estas coisas daqui. Fica lá pretando atenção no que se passa em sua volta. E parte, larga tudo aà e pra que?
um abraço,
Legal, legal no conjunto: retratos, explanação de uma forma diferene de dizer. Muito agradável.]
andre.
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