Dinamarca Venezolana

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Maurício Alcântara · São Paulo, SP
18/8/2007 · 100 · 4
 

Sempre penso duas ou três vezes antes de assistir peças de William Shakespeare, e o motivo é muito simples: os textos são tão conhecidos (é indelicado dizer que são batidos, até porque Shakespeare é foda. Vai que ele tá lendo isso lá do céu ou do inferno...) que qualquer encenação sem uma proposta cênica muito bem definida está fadada ao fracasso. Isso sem contar que sempre há montagens ou filmes que, de tão fortes, ditam os clichês para toda a eternidade. Vide o Hamlet do Lawrence Olivier e o Romeu e Julieta do Ronald Golias e da Hebe Camargo.

Neste fim de semana em que todo mundo da Bacante foi passear nos alegres bosques de Rio Preto, eu fiquei em São Paulo e conferi a terceira montagem de Hamlet apresentada na cidade nos últimos quatro meses (a primeira foi a zen-budista-emperequetada do Rubens Ewald Filho, e a segunda foi a porra-louca-experimental da Cia. dos Atores). Desta vez, os responsáveis pelas palavras, palavras, nada além de palavras foram os venezuelanos do Teatro Del Contrajuego, dirigidos por Orlando Arocha - que segundo o release, é um dos mais famosos diretores da Venezuela. Mas quem acredita em releases?

Na entrada do teatro, um banner indicava que a apresentação teria quase quatro horas de duração. Muito medo de cochilar - caso encontrasse ali dentro uma montagem nada inovadora -, mas decidi confiar no bom senso do SESC São Paulo, organizador do festival de Rio Preto (e que quase sempre acerta no que faz).

Começa o espetáculo, ambientado em um pequeno e claustrofóbico cômodo imundo. O texto de sempre, falado em espanhol, contextualizado no mundo contemporâneo (para não deixar dúvidas, Hamlet escreve a data na parede, com giz, a data em que a apresentação ocorre). Quem precisou das legendas, projetadas acima do cenário e quase no teto do teatro, se ferrou: a tradução era péssima e eu desconfio que a pessoa que controlava as legendas estava mais preocupada com o jogo Brasil x Argentina do que com o trabalho em si. Certa ela, trabalhar é um saco.

Os primeiros minutos se arrastaram muito, e eu já me perguntava: cochilar ou não cochilar, eis a questão. Mas então uma cena específica chama minha atenção: Polônio e Cláudio enfeitam Ofélia utilizando balões de gás hélio e... grampeadores. Minha consciência sonolenta desperta com os ares de novidade e não se decepciona, deste ponto em diante a peça nos traz uma série de surpresas. Até mesmo a batidíssima cena do "ser ou não ser" nos surpreende - e mais de uma vez.

É muito difícil falar de uma montagem de Hamlet com o Ensaio.Hamlet de Enrique Diaz ainda tão fresco na memória, mas esta montagem de Arocha tem um brilho especial. A cada ato, a utilização do espaço e a apropriação do cômodo apertado são cada vez mais pertinentes, e as imagens que surgem são espetaculares. O senso de humor deles também, embora seja muito difícil engolir Rosencrantz e Guildenstern em versão gangster-cucaracha depois de conhecer a versão Power Rangers da Cia. dos Atores. Um destaque especial é para a atriz Diana Peñalver, que interpreta uma das Ofélias mais interessantes que já vi na vida (sua voz rouca cantando El amor no se puede olvidar, do bizarro duo argentino Pimpinela, ecoa em minha cabeça até agora).

Em suma, apesar de não ser nenhuma experiência radical, este Hamlet traz tudo aquilo que nós da Bacante sempre procuramos em montagens teatrais: idéias e pirações criativas levadas às últimas conseqüências, conceitos de encenação que não se perdem, imagens deslumbrantes sem a necessidade de grandes firulas, atores bons e em grande sintonia... e o poder de nos deixar com vontade de acompanhar até o fim este texto que já estamos carecas de conhecer.

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Maurício Alcântara
 

Publicado originalmente na Revista Bacante.

Maurício Alcântara · São Paulo, SP 14/8/2007 15:35
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Andre Pessego
 

Mauricio eu acho legal suas colocações por duas rãzões:
- a) Quase não se escreve no Overmundo, sobre Teatro, felizmente voce, com sabedoria e desvelo nos brinda com suas apreciações;
- b) o conhecimento, as colocações em tom quase didático;[
mas:
a) Eu queria ler algo dos novos, da periferia, ou não, mas dos novos;
b) voce tem a obrigação, se me permite o termo doido, de estimular quem frequenta o Overmundo.
um abraço, andre.

Andre Pessego · São Paulo, SP 18/8/2007 08:19
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Claudia Puget
 

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Bons autores são para ser "ouvidos" por séculos...
Que nasçam os eternos autores.Serão SEMPRE BEM- VINDOS.
Um brinde a Jovem Sabedoria daqueles que montam textos clássicos.
Teatro sempre é útil !!!!!
puget

Claudia Puget · Muqui, ES 18/8/2007 10:36
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Maurício Alcântara
 

André e Claudia,
Desculpem pela demora para responder...
Bom, sobre os "novos", nós da Bacante temos acompanhado várias coisas sim, faz inclusive parte de uma proposta de falar de uma turma que nem mesmo aparece nos guias dos jornais. E na medida do possível, não deixar de falar dos grandes também (Inclusive, realmente estamos meio "ausentes" aqui no Overmundo nesses últimos dias...)
E sobre os clássicos, uma coisa engraçada... Dia desses eu falava com um amigo sobre o quanto tem coisa boa nova sendo produzida... Tanta coisa pedindo pra ser encenada... Os clássicos só valem a pena quando ganham uma leitura não-classica, senão vira mais do mesmo...
Abraços!

Maurício Alcântara · São Paulo, SP 23/8/2007 23:04
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