Sala escura: um toque de caixa invertido digitalmente permeia samplers aleatórios de trompetes e trombones, e prepara os ouvidos do público para o que virá nos próximos quarenta minutos: o espetáculo de dança contemporânea Fervo, em que a coreógrafa Valéria Vicente desmembra os movimentos do passo (a dança do frevo), para propor ao público reflexões acerca da origem e manutenção da violência urbana, arraigada e somatizada no corpo da cada brasileiro.
Sua primeira temporada (três semanas, em setembro) reuniu um público médio de 200 pessoas por apresentação. Para quem perdeu, a boa notÃcia é que Fervo volta em cartaz esta semana no Recife, no palco do Teatro Armazém (Recife Antigo), de 02 a 05 de novembro (quinta a sábado), sempre à s 20h. Os ingressos custam R$ 10 e R$ 5 (meia). Será a última chance de assistir a montagem antes dela viajar Brasil afora. A começar pelo Rio de Janeiro: dias 17 e 18 de novembro, no Teatro Cacilda Becker, ela integrará o Panorama Rio Arte , um dos mais importantes e exigentes festivais de dança do paÃs.
Para Walter Benjamin, a história é feita de fragmentos, documentos a serem coletados, recombinados e interpretados de acordo com a ótica contemporânea. Caso contrário, ela se torna linear e absoluta, um museu em prol do status quo. Prestes a completar 100 anos (data de 9 de fevereiro de 1907 o primeiro registro na imprensa pernambucana), o frevo nasceu num contexto de fortes tensões sociais. Ao desconstruir seu repertório estético e suas amarras históricas, Fervo olha para o passado de forma a explicar o presente. Algo bastante incomum, considerando os padrões conservadores em que o frevo tem normalmente sido celebrado. Ao contrário do viés folclorista-institucional visto nas apresentações de frevo durante o Carnaval, aqui tem frevo com rock, hip-hop, roda de pogo, e até valsa.
A coreografia é baseada não só nos movimentos que fazem a dança, mas também no contexto social peculiar em que ele surgiu - a libertação dos escravos e a conseqüente repressão das culturas negras. É bom situar que o frevo surgiu da necessidade de expressão dos negros alforriados, que adaptaram a capoeira, então proibida por lei, com a música das bandas marciais em desfile pela cidade. Restitui-se, assim, o contexto que rege as culturas afro-brasileiras: alegria como resposta ao sofrimento. Dor reinventada em prazer.
“As questões que nos afligem são historicamente construÃdas. A herança da escravidão não está somente no escravo que apanhava, mas também no senhor que batia. A forma como o Recife lida com isso nas relações sociais parece ser a mesma de 100 anos atrás. Existe, nos problemas sociais de hoje, uma violência no corpo das pessoas, mas que não está assumidaâ€, diz Valéria.
Cenografia - Pacotes de jornais arremessados ao palco e entre os bailarinos, como numa guerra de travesseiros, são alguns dos poucos objetos cenográficos. Eles foram incorporados ao espetáculo após uma pesquisa em arquivos públicos revelar que as notÃcias sobre violência no inÃcio do século 20 são muito parecidas com veiculadas na imprensa de hoje. Naquela época o Recife vivia um sem número de conflitos sociais, fazendo encher as páginas dos diários de mortes, espancamentos e caçada por "marginais".
No espetáculo, manchetes de diferentes épocas são gritadas e projetadas sobre os bailarinos, dando a entender que a overdose de notÃcias acaba por se tornar uma modalidade a mais de violência. "A imprensa faz parte da sociedade. Assim como as obras artÃsticas ela é um lugar bastante interessante para compreensão das estruturas sociais. Em Fervo, a gente evoca esse papel das notÃcias", explica Valéria.
De olho no potencial dos bailarinos, Valéria optou pela criação coletiva. "Atualmente esta é única opção que eu enxergo para que o espetáculo não seja uma imagem pré-criada. É verdade que saÃmos de um lugar mais seguro, por ser mais conhecido. Mas assim que o elenco assume seu papel criador, as movimentações são 'defendidas' com mais propriedade e, principalmente, o público pode ver o processo do corpo vivo, e não apenas esculpido por uma técnica", considera Valéria. Desta forma, a singularidade de cada um foi aproveitada ao máximo: da força dramática de Leda Santos, à versatilidade e improviso de Jaflis Nascimento (filho de Nascimento do Passo, o primeiro artista a sistematizar um método para o frevo); da espontaneidade brincante de Iane Costa à suavidade e precisão dos movimentos de Calixto Neto.
A trilha - Boa parte da força do espetáculo vem da música, uma trilha sonora original composta no capricho por Silvério Pessoa, Yuri Queiroga e uma equipe de músicos, batizada de Coletivo DerrubaJazz. Todas as faixas estão postadas no Overmundo, em formato Torrent. Vantagens do copyright flexÃvel: Vermelho Medo, uma associação da faixa "Medo, parte II" com as imagens Fotos Vermelhas foi recentemente postada no Banco de Cultura.
Esta é a experiência de estréia do coletivo na confecção de trilhas sonoras, uma nova fase que começou como uma brincadeira. "Estávamos em Paris, quando Yuri teve a idéia do nome, um tanto insólito e divertido. Mas, é isso mesmo, começamos a colecionar as mais diferentes experiências com o jazz, e resolvi colocar 'coletivo', pois compomos com a participação de vários músicos", explica Silvério.
A trilha é uma viagem não-linear pelo frevo, composta por samplers, efeitos eletrônicos, ruÃdos, vozes processadas e, claro, pandeiro, caixa (tambor) e trombone. "Procuramos deixar os temas objetivando emocionar, seja na tensão, seja na emoção, ou nos passos dos dançarinos. Algo que particularmente me estimulou bastante foram os gestos, a linguagem dos olhos e das mãos em perfeito contraponto rÃtmico com a trilha. Eu chamaria a trilha uma "desconstrução" do conceito tradicional de frevo - assim como é a coreografia", afirma o compositor. Mais fotos e depoimentos sobre a gravação estão no blog de Silvério.
Pra quem quer conhecer mais de seu trabalho em trilhas sonoras, Silvério compôs trilhas para o Canal Futura, e também o tema do premiado curta de ficção Vinil Verde, de Kleber Mendonça Filho, intitulado “Luvas Verdesâ€, disponÃvel para download.
Que ferveção bonita!
Fábio Fernandes · São Paulo, SP 1/11/2006 08:45
O frevo me hipnotiza. Realmente parece ser incrÃvel esse espetáculo. Pena ele não rodar pelo nordeste todo... Só sei que próximo ano serão cem anos de frevo e Pernambuco vai ferver. Esse espetáculo eu poderei assistir.
Valeu André.
Pedro, está nos planos do grupo viajar o Brasil após as apresentações no Rio de Janeiro. Fortaleza é um destino provavel, não acha?
André Dib · Recife, PE 4/11/2006 19:46Bom isso, hein? Nossa, fiquei com vontade de ir ver...
Roberto Maxwell · Japão , WW 13/11/2006 03:30Muito bom o artigo. Silvério Pessoa é um artista fantástico de Pernambuco. Desde o dia 1 de janeiro venho postando desenhos de minha autoria e textos de pesquisa sobre o frevo no meu fotolog: http://fotolog.terra.com.br/ivanmauricio
Ivan MaurÃcio · Fortaleza, CE 23/1/2007 12:23Que beleza! Adoro frevo! Seu texto é muito bom!
silviaraujomotta · Belo Horizonte, MG 7/2/2008 22:18Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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