Dificilmente poderemos negar um traço da cultura brasileira, que é a dialética esquizofrênica entre o fetiche da preservação e a compulsão à miscigenação indiscriminada. Ocorre que esta problemática contradição é transplantada até mesmo a contextos especÃficos, como por exemplo no “BRock†ou no “BReggae†do sudeste brasileiro. Em relação ao Paralamas ou ao Barão Vermelho, certamente ouviremos a lamúria dos puristas clamando pelo grupo dos primórdios, aquele que marcou a “minha†geração, a “minha†percepção… Não que eu concorde ou discorde do juÃzo em relação as bandas citadas, não se trata disso. Desejo antes ressaltar o mecanismo psicológico que encerra certas bandas dentro de seu próprio mito, e de como esses mecanismos estão profundamente marcados por um narcisismo preguiçoso que não consegue (ou não quer) seguir os passos reais dos artistas, afobados que estão em decodificá-los e enquadrá-los no domÃnio mais ou menos seguro de suas experiências pessoais. Tenho a impressão de que no Brasil confundimos os primórdios de um artista com vigor juvenil e, por outro lado, a indefinição da atualidade com cansaço… Do ponto de vista dos artistas, os esforços de grupos do sudeste em reproduzir ritmos nordestinos ou, de forma semelhante, a tentativa de alguns novos grupos de reproduzir o samba “tradicional†(seja lá o que se queira dizer com isso…) podem até se auto-legitimar através de trabalhos corretos, regulares e bem produzidos, mas jamais esconderão que sua música é produto de um mal-estar, de um desconforto que deseja antes de mais nada recuar, regressar, destruir o futuro e dissolvê-lo em uma interpretação determinada do passado – que infelizmente não se sabe nem sequer intérprete, que dirá determinado…
O Nação Zumbi sofreu essa desconfiança e de uma forma duplamente cruel. Primeiro, porque rapidamente o grupo foi considerado herdeiro de um movimento que, sem seu herói, não se sustentaria; e mesmo depois de dar provas mais que suficientes de sua força criativa e independência em relação ao mito e à genialidade de Chico Science, o Nação ainda hoje é considerado uma sucursal da experiência dos anos noventas, mesmo que uma audição atenta demonstre exatamente o contrário. Foi pensando assim que, confesso, tive dúvidas quando aceitei o convite de um amigo para assistir o show do grupo na Cantareira, na cidade de Niterói, o primeiro no Rio após a gravação de Rádio S.amb.A.. Qual não foi o meu espanto quando percebi que se materializava no palco um verdadeiro milagre que em uma só e mesma lufada trazia Chico Science à tona, através dos tambores e do hip hop, mas acrescentava um grau de experimentação com ritmos e timbres que até então não se percebia no grupo de forma tão proeminente. Fiquei arrebatado com o lema “sem medo†em “Caranguejo da Praia das Virtudes (Madame Satã)â€, com a mistura de drum’n'bass e ritmos latinos de “Los Sebozos Postizosâ€, com o arranjo empolgante e arrojado de “Quando a Maré Encherâ€, com o instrumental firme e a melodia precisa de “Carimbó†e, sobretudo, com o tom radicalmente experimental de “Remédiosâ€, que atestou definitivamente o retorno do Nação Zumbi. Tanto que fui na semana seguinte em um show no Rio, desta vez na extinta Quinta do Bosque, em Santa Teresa, comprovar a excelência do novo trabalho, de um nÃvel de auto-determinação e criatividade que há tempos não se via na música brasileira como um todo, suplantando até mesmo a eclosão do manguebit da década anterior. Eu mal esperava para ouvir Rádio S.amb.A, fato que se deu algumas semanas depois.
Sim, é possÃvel reconhecer o “mote†do Dr. Charles Zambohead, através do som grave dos tambores e da levada hip hop… Mas os cinquenta e dois minutos de Rádio S.amb.A não só correspondiam à impressão geral dos shows como também traziam novas faixas, tão surpreendentes quanto as primeiras. O hardcore “BrasÃliaâ€, o hip hop cubista “Zumbi X Zulu†(com os vocais de Afrika Bambaata) e a lindÃssima “João Galafuzâ€, que conta com Lia de Itamaracá, figuram ao lado de faixas e vinhetas instrumentais com uma sonoridade madura, mas ao mesmo tempo urgente e profundamente enérgica. As letras também demonstravam o vigor do novo Nação Zumbi, pois ao mesmo tempo que as composições se diferenciavam consideravelmente das criadas por Science, prescindiam também do padrão de livre associação que os diluidores do tropicalismo timbraram em oficializar na música da década de 00. Trata-se, pois, de uma avis rara na música brasileira da época e de todos os tempos: uma banda sobrevivente que passou por maus bocados não só se recupera como também transgride os padrões de arranjo e composição, tanto do ponto de vista musical como também em relação à s letras. E para quem se lembra de Asian Dub Foundation, Café Tacuba, Manu Chao e outros artistas da “periferia†que obtiveram algum sucesso graças a histeria multicultural que marcou a rebordosa do discurso neoliberal, vale dizer que dentre todas essas bandas o Nação Zumbi é a mais expressiva, além de ser a mais regular e produtiva.
Mesmo um certo desequilÃbrio em relação ao número de faixas e alguns excessos de arranjo são caracterÃsticos de uma profusão criativa desta natureza, que considera o máximo de idéias porque quer valorizar todas elas, sem titubeios nem dúvidas. Um ethos de pura afirmação, como foram os álbuns dos Mutantes, dos Novos Baianos, do Patife Band e do Sepultura, as quatro bandas precursoras do espÃrito desbravador do Nação Zumbi. Os discos seguintes só vieram pavimentar o campo extremamente fértil e desconcatenado legado por Rádio S.amb.A e desde então o Nação não cessou de surpreender seus fãs, para o bem e para o mal. Positivamente pela qualidade irretocável de seus shows e álbuns. Mas negativamente quando, em coro com um irreconhecÃvel Fred 04, invocam o discurso liberal para defender a indústria contra a internet e a troca de informação. Uma atitude à s antÃpodas do significado profundo de Rádio S.Amb.A, qual seja: a superação na diferença, a busca pela diferença à s custas até mesmo do próprio passado. Com sua mistura particular de Public Enemy, ritmos e sonoridades consideradas preconceituosamente enquanto “regionaisâ€, procedimentos do dub, da música eletrônica e de muitas vertentes do rock, Rádio S.Amb.A é sem sombra de dúvida o melhor álbum realizado no Brasil nesta década. (Bernardo Oliveira)
Publicado originalmente no blog Camarilha dos Quatro (http://camarilhadosquatro.wordpress.com)
valeu Felipe! Vê se ficou legal...
Bernardo Carvalho · Rio de Janeiro, RJ 6/1/2010 22:34
Li agora o texto todo. Bem bom.
Admito que também tive essa visão da Nação Zumbi como amputada ou incompleta sem o Chico Ciência (em português, como gostaria o Suassuna). Mais que pelas emanações simbólicas do mito, por algo bem perceptÃvel na realidade concreta: colocação da voz daquele jeito bem dele e presença no palco (fuçando uns vÃdeos faz algum tempo, me surpreendi com a energia que o Science emanava, nada cartesianamente).
Um exercÃcio de elucubração sobre o que poderia ser e não é: qual seria a postura da Nação Zumbi a respeito da flexibilização da propriedade intelectual e das formas abertas de distribuição se o Chico ainda estivesse aÃ?
Depois de te ler, também vou atrás de ouvir essa Rádio Samb.A. nova.
Abraço e de nada pelas sugestões de edição (fico contente por retomar a prática da edição colaborativa, pra mim essência do Overmundo).
Eu escrevi este texto não só para defender o disco daqueles que falavam mal dele sem nem sequer ter ouvido, como tb pq acho das melhores coisas feitas na década que passou!
Abs
Sou distraÃdo: só agora entendi que o texto se refere ao ano 2000, ou por aÃ.
Com razão Quando a Maré Encher (que se não me engano foi música de trabalho do álbum) fez eco e evocou lembrança de um clipe imageticamente ruidoso visto na emetevê naquela época que já dista uma década (gostou do repente rimadinho?)
KKKKK, isso ai...
Eu lembro que até o clipe já prenunciava que o Nação continuaria a nos surpreender... Acho q editaram no DVD Propagando, se não me engano...
Da-lhe os caranguejos. Os cara tão foda! ......som''zão'' equalizad(aço) ,,,tambores letras
Matheus José · Petrópolis, RJ 9/1/2010 13:01
Salve Bernardo!
Que massa... já curtia este disco, mas depois deste texto até tô ouvindo aqui de novo e tô curtindo mais ainda.
Fui no show de lançamento deste disco aqui em Beagá, e foi uma porrada na muleira... fiquei em extado de êxtase neste dia. Vi a Nação Zumbi fazendo um som forte e pulsante que contagiava e mostrava a direção que eles tomaram, talvez se o Chico tivesse vivo não teria feito este disco. Percebi a vontade deles desgarrarem da sombra do Science, do Manguebit, da Lama... este foi um dos melhores shows do Nação que eu fui.
No mais... aquele abrAÇO
Yuga
Bernardo, sua retrospectiva de sensações por meio do disco do Nação foi super bem sucedida! Lembro de ter o mesmo feeling ao ouvir os primeiros discos pós-Chico, ter uma impressão de que eles levaram muito a sério a máximo "o show tem que continuar" e até se renovar... Seu texto me remeteu a muitas coisas, sobretudo o começo, em que lançou uma frase que pra mim resume muita coisa: "A dialética esquizofrênica entre o fetiche da preservação e a compulsão à miscigenação indiscriminada". É verdade, há um desconforto visÃvel na música em relação ao passado, ao futuro. É uma coisa que não me sai da cabeça, e que ainda tento entender que impacto tem dentro de mim ouvinte.
Quanto ao final do teu texto, confesso que só acompanhei de longe as declarações de zeroquatro e do povo do Nação sobre a questão da música na internet. Fiquei surpresa sim, mas não quero deixar de enxergar isso como uma etapa dentro do processo, uma etapa não definitiva e que vai se seguir de outras. Vamos ver...
Abraço!
E é engraçado porque essa questão do passado/futuro povoa tudo mas é tão matratada, vc não acha? Eu percebo as pessoas "resolvendo" isso tudo muito rápido, buscando soluções à s vezes generalizantes, à s vezes excessivamente subjetivas... Agora, cometi um equÃvoco tremendo em não incluir os Titãs nessa lista das bandas brasileiras desbravadoras...
Com relação à opção do Fred e do Du Peixe em engrossar o mesmo caldo que o Bono Vox engrossou semana passada, o mesmo caldo azedo defendido por artistas que de alguma forma cresceram à s margens de um modo extremamente desigual e improlÃfico de produzir e distribuir música, representa apenas um deslize... Tenho certeza de que é só pingar uma grana dos próximos discos e shows e o desespero se transformará novamente em militância bolivariana e, claro, grandes momentos para a música...
Abraços
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