Como todos que acompanham minha coluna semanal, o texto da última semana de cada mês vem sendo dedicado a contar histórias marcantes da teledramaturgia. Tudo surgiu após uma sugestão de Thiago Camelo, que pediu para que fossem contadas histórias sobre a novela Anastácia, a mulher sem destino. Decidi então passar a contar histórias de novelas marcantes no cenário televisivo brasileiro, atendendo a sugestões (como a de ilhandarilha, que sugeriu falar de Os ossos do barão) ou escolhendo através de pesquisas. Caso algum de vocês queira ler sobre uma novela especÃfica, é só escrever nos comentários, que atendo na medida do possÃvel. E, desde já, quero agradecer aos muitos comentários e aos elogios que venho recebendo em meus textos.
Em virtude da comoção causada pelos vilões de ParaÃso tropical, atual novela das 21h da TV Globo, hoje destinamos este espaço a recordar um momento anterior no qual um dos autores da trama principal da emissora do Jardim Botânico teve de lidar com os interesses do público e com outros valores designados pelo "código de ética" dos espectadores.
E a teledramaturgia contou... O dono do mundo.
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Dono de um talento peculiar para criar vilões memoráveis da teledramaturgia brasileira (são de sua autoria a Yolanda Pratini da hoje distante Dancin'days e a Laura da mais recente Celebridade), Gilberto Braga arriscou colocar em sua novela que estrearia em 20 de maio de 1991 no horário das 20h um protagonista malvado. Num molde que resiste até os dias de hoje, convenciona-se colocar a maldade como antagonista, pois os bons devem sempre protagonizar a história.
Não foi o caso de Felipe Barreto (vivido por Antônio Fagundes), cuja arrogância fazia com que ele se achasse o tÃtulo da novela de Gilberto: O dono do mundo. As caracterÃsticas de sua prepotência apareciam logo nos primeiros capÃtulos: ao descobrir que Márcia (papel de Malu Mader), noiva de Walter (funcionário de sua clÃnica de cirurgia plástica, e interpretado por Tadeu Aguiar), ainda era virgem, Felipe fazia na igreja uma aposta com o amigo Júlio (a cargo de Daniel Dantas) de que a possuiria antes do noivo.
Para isto, ele oferecia ao casal passagens para uma lua-de-mel no exterior, no mesmo paÃs onde ia viajar com a esposa Stella (interpretada por Glória Pires). Mas o fato de ele conseguir vencer a aposta trazia conseqüências para os recém-casados: Walter se matava, e Márcia se apaixonava por Felipe (mas era destratada pelo vilão).
O autor não sabia que em plena década de 1990 a questão da virgindade (em especial antes do casamento) ainda era considerado um tabu para a sociedade brasileira. Em vez de o público se solidarizar com a mocinha Márcia, ela foi vista como uma mulher "fácil" por se entregar a outro durante a lua-de-mel. Outra questão que comprometeu a idéia inicial de Gilberto Braga foi em relação a Felipe Barreto: sua criação foi inspirada no arquétipo dos vilões das décadas de 1940 e 1950 (que se caracterizavam por não terem escrúpulos mas serem charmosos). Só que, mesmo com todas as artimanhas do personagem, a imagem do ator Antônio Fagundes não despertava o ódio do público a Felipe.
Vendo sua audiência despencar da média de 40 pontos do horário para minguados 18 pontos (com direito a consagrar a novela infantil Carrossel, folhetim mexicano que era exibido no mesmo horário no SBT) em poucas semanas, a solução foi reformular a história. "Márcia tem de ser amarrada num tronco e apanhar pelo erro que cometeu", comenta-se que foi o conselho do dramaturgo SÃlvio de Abreu, convocado para ajudar nas alterações de O dono do mundo.
A primeira mudança foi dar um jeito de fazer Márcia sofrer na cadeia - depois de tentar agredir Felipe com um bisturi, ela era presa. Depois viriam outras alterações, e, aos poucos, a personagem conseguiu ter credibilidade diante do público. E, não podendo competir com a fama de "bom moço" que Antônio Fagundes manteve no decorrer de sua carreira, Felipe Barreto deixou de lado as vilanias para se tornar um malvado arrependido.
Outro personagem que mudou de perfil diante da reação do público foi Guilherme, o Beija-Flor (vivido por Ângelo Antônio). No inÃcio da trama, ele era um "surfista de trem" (termo usado para pessoas que, para não pagarem passagem, se equilibravam na parte de cima do veÃculo) próximo da marginalidade. Mas, após uma cena em que recusava uma comissão para fechar um negócio, o personagem recebeu o aplauso do público e passou a ser associado à honestidade. Seu romance com a prostituta ThaÃs (estréia de LetÃcia Sabatella) se tornou uma das tramas que mais agradaram os espectadores - o que não deixa de ser uma contradição, afinal, o mesmo público que "puniu" Márcia apoiava uma personagem ligada à prostituição.
Adequando a cada capÃtulo sua novela à s respostas dos espectadores, o autor conseguiu recuperar os pontos perdidos de O dono do mundo, evitando um perigo que vinha desde o ano anterior, quando Pantanal (novela de Benedito Ruy Barbosa exibida pela TV Manchete) ameaçou a então consolidada audiência da TV Globo no chamado "horário nobre" (causando estragos na novela Rainha da sucata, escrita por SÃlvio de Abreu). Entretanto, na última semana da história (que teve seu ponto final em 4 de janeiro de 1992), Gilberto Braga reservava uma surpresa ao público.
Felipe Barreto mostrava sua verdadeira face, e revelava ser o mesmo canalha dos primeiros momentos de O dono do mundo. A figura de "dono do mundo" foi alegoricamente mostrada na abertura da novela, que usava as imagens de Charles Chaplin no filme O grande ditador, mas dentro do globo terrestre com o qual brincava o ditador interpretado por Carlitos foram acrescentadas imagens de mulheres sensuais - uma das mais bem feitas criações de Hans Donner para aberturas de novelas.
Mas a vingança de Gilberto Braga foi além: nem mesmo as maldades e as humilhações com as pessoas e o fingimento de caráter durante tantos capÃtulos recebeu a punição dos autores. Felipe terminava a trama num altar, se casando com uma mocinha filha de um rico fazendeiro, tendo como padrinho de casamento o amigo Júlio, para quem direcionava triunfalmente uma afirmação: "é virgem!". E, num close , o personagem piscava o olho e dava um sorriso cÃnico para milhões de espectadores.
15 anos após seu final, a discussão de O dono do mundo prossegue no universo da teledramaturgia brasileira. O questionamento de quem é o "dono do mundo" contado durante meses, de segunda a sábado, na telinha.
Fontes consultadas:
Livros
O autor na televisão - Lisandro Nogueira
A Hollywood brasileira - Mauro Alencar
Memória da telenovela brasileira - Ismael Fernandes
Site
Teledramaturgia - www.teledramaturgia.com.br
Oi VinÃcius, senti falta de saber algo sobre a esposa do dono do Mundo, a Stella, que também sofreu mudanças no seu perfil no transcorrer da novela (terá sido por pressão do público também?). Se não me engano, em determinado momento ela pareceu aliar-se à Márcia contra Felipe Barreto... Foi isso mesmo?
Abraço.
Tetê, eu te confesso que era muito novo na época em que a novela foi ao ar - logo, preferia Carrossel, a febre daquele momento. Cheguei a sondar algumas coisas em relação à personagem Stella, mas todos os lugares em que pesquisei diziam apenas o seguinte: "foi um erro do autor não reservar um grande papel para Glória Pires". Por isso, não posso dizer ao certo sobre sua afirmação.
Abraço.
Parabéns, é o resgate da memória da telenovela brasileira.
ImportantÃssimo relembrar e guardar esses momentos.
Vinicius,
Tenho saudade de três novelas: O Bem Amado, Roque Santeiro e Pantanal.
O que você pode escrever sobre elas?
Abraço,
Lembro de "Roda de Fogo", na qual o protagonista também era um vilão que depois se arrependia ao descobrir que estava para morrer; a trama terminava com seu filho bastardo, ex-rebelde, assumindo os negócios do pai.
Marcelo V. · São Paulo, SP 28/7/2007 16:41Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
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